sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O EGIPTO VISTO POR GÉRARD DE NERVAL

A viagem de Gérard de Nerval (1808-1855) ao Oriente não foi verdadeiramente uma mas duas. O escritor efectuou uma viagem pela Suíça, Alemanha e Áustria em 1839-1840 e só em 1843 realizou a sua viagem ao Oriente. Todavia, no seu livro Voyage en Orient (1851), Nerval incorpora na viagem ao Oriente o percurso da viagem na Europa. É mesmo possível, segundo os especialistas, que Nerval se tenha socorrido de algumas obras, já então publicadas por outros autores sobre a matéria, para compor a sua narrativa.

A primeira viagem levou Nerval a Lyon, Genève, Lausanne, Zurich, Constanze, Augsburg, Munich, Salzburg, Linz, Viena e Estrasburgo. 

A segunda viagem teve por itinerário Marselha, Malta, Syra, Alexandria, Cairo, Damieta, Beirute, Chipre, Rhodes, Esmirna, Constantinopla, regresso por Syra e Malta, Nápoles, Livorno, Génova e, de novo, Marselha.

O livro, de cerca de 1 000 páginas, encontra-se dividido em quatro partes: "Introduction (Vers l'Orient)"; "Les Femmes du Caire"; "Druses et Maronites" e "Les Nuits du Ramazan". As segunda, terceira e quarta partes estão divididas em sub-partes, e todas em capítulos.

Anteriormente, em 1848, fora publicado o livro Les Femmes du Caire (na actual edição de 2004, Le Caire) que inclui as sub-partes "Les Mariages Cophtes", "Les Esclaves", "Le Harém" e "Les Pyramides", deixando de fora "La Cange", "La Santa-Barbara"e "La Montagne" da edição de 1851.

A parte dedicada ao Cairo merece uma menção especial. O escritor, considerando dispendiosos os hotéis "turísticos", resolveu, por aconselhamento do drogman, alugar uma casa para a qual adquiriu um mobiliário rudimentar. Mas surgiu um imprevisto: o sheikh do bairro onde alugou a casa, e que exercia uma espécie de tutela do sítio (era uma prática da época) disse-lhe que não ficava bem não ter uma mulher em casa pelo que se devia casar ou comprar uma escrava no prazo de uma semana. A presença de um homem sem mulher numa casa constituía um escândalo para a vizinhança.

Ouvindo o drogman Abdallah, intérprete que contratara à chegada, sobre tal problema inesperado, este elucidou-o sobre os casamentos coptas e islâmicos, entendendo Nerval, pelas razões largamente expostas, que os mesmos não lhe convinham. Decidiu então comprar uma escrava, Zeynab, o que não deixou de lhe trazer complicações, a começar pela dificuldade em entendê-la, ainda que tivesse prescindido de relações sexuais. Escrava de que se desembaraçou para a continuação da viagem.

Ao contrário de Flaubert e Maxime Du Camp, que lhe "sucederam" nas visitas ao Egipto, Gérard de Nerval, optou por fazer uma vida de cairota, embora não conseguisse, obviamente, passar despercebido nas ruas da velha cidade. Mas frequentou os espectáculos locais, os "restaurantes" e cafés. Deslocou-se de burro nas ruelas, comeu a comida indígena confeccionada na própria casa pelo cozinheiro que contratara. Aliás, teve uma série de "empregados" em casa, cada um a tratar de uma tarefa, como era então hábito, já que o preço era irrisório.

As referências históricas são menos elaboradas que as de Flaubert ou Du Camp, por vezes muito imprecisas e confusas, e deficiente transliteração dos nomes árabes. E os monumentos do passado faraónico ou islâmico não lhe interessam particularmente, salvo as pirâmides e algumas mesquitas. Mas ele não viajou para o sul do Cairo. A sua intenção era integrar-se na vida quotidiana dos habitantes.

Também não se nota qualquer especial apreciação dos jovens egípcios que encantaram Flaubert e Du Camp, ainda que se admita que tenha tido algumas experiências "homo" em Paris, antes da sua paixão pela actriz Jenny Colon, morta em 1842, facto que o terá decidido a viajar para o Oriente.

A vida afectiva de Gérard de Nerval foi marcada por sobressaltos de que resultaram problemas de saúde. Em 1841, foi internado pela primeira vez por crises de loucura. A par do seu trabalho intenso as crises morais e nervosas sucedem-se e em 1851 é internado várias vezes. Atravessa igualmente sérias dificuldades financeiras. Em 1854, depois de uma viagem à Alemanha, é mais uma vez internado na clínica do dr. Blanche, donde sairá devido à intervenção da Société des Gens de Lettres.

Em 26 de Janeiro de 1855 é encontrado enforcado na grade de um esgoto da rue de La Vieille Lanterne (hoje desaparecida) próximo da place du Châtelet. Segundo Baudelaire «le coin le plus sordide qu'il ait pu trouver». 


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