terça-feira, 10 de setembro de 2024

O EGIPTO VISTO POR MAXIME DU CAMP


Consegui adquirir, finalmente, um exemplar usado de Un Voyage en Égypte vers 1850 - Le Nil, de Maxime du Camp (1822-1894), que há muito tempo procurava. Trata-se de uma edição de 1987, publicada sob os auspícios do Institut de France. O livro original é de 1854, teve cinco edições no século passado, ou melhor, no século XIX, já que nos encontramos agora no século XXI (para mim o século passado é ainda o século XIX, coisas da idade), foi previamente publicado parcialmente em 1853 na "Revue de Paris" e encontrava-se esgotado até à edição que hoje comento.

Depois da expedição de Bonaparte ao Egipto (1798) instalou-se na Europa o gosto pelo "Orientalismo" e muitos escritores europeus, nomeadamente franceses, rumaram a Leste no século XIX, em especial para o Egipto mas também para a Palestina, a Síria, a Turquia e mesmo a Pérsia, e também para Marrocos e Tunísia, viagens que prosseguiram no século XX.

Acompanhado pelo seu amigo Gustave Flaubert (1821-1880), Maxime Du Camp embarcou para o Egipto, em Marselha, em 4 de Novembro de 1849, no navio "Nil", chegando a Alexandria em 15 de Novembro, tendo ambos ficado instalados no Hôtel d'Orient. Flaubert tinha então 28 anos e Du Camp 27 anos. 

A viagem no Egipto e na Núbia durou até 17 de Julho de 1850, altura em que, regressados a Alexandria, ambos viajaram para Beirute. Passearam depois pelo Líbano, a Palestina, a Síria, Rhodes, a Anatólia, a Grécia e Marrocos, mas o livro termina com a sua saída do Egipto. Sobre a Palestina e a Síria (e também o Egipto e a Núbia) Du Camp publicara um resumo em 1852: Égypte, Nubie, Palestine, Syrie (reeditado pela Bibliothèque National de France). Um dos motivos de especial interesse destas publicações é o facto inovador do escritor se ter feito acompanhar por uma máquina fotográfica com a qual registou imagens dos locais percorrido, sendo que os livros incluem também reproduções de aguarelas alusivas ao texto.

Esta obra de Maxime Du Camp é dedicada a Théophile Gautier, também ele um apaixonado pelo Egipto, autor de Le roman de la momie (1858) e de outras obras sobre o Oriente. O livro tem um carácter enciclopédico: dedica-se à fauna e à flora, à arquitectura, ao clima, ao habitat, à alimentação, à economia, aos ritos de convivialidade, aos costumes, à música, à dança, aos grupos sociais, à história, às lendas, à acção dos homens.O seu objectivo é descrever, tanto quanto possível, tudo aquilo que vê. Mas nota-se uma evidente ausência, a do povo. Romance verdaeiramente sem personagens, faz do leitor, representado por Gautier,  o herói central de uma aventura da ubiquidade. Como escreve Daniel Oster na Introdução (Um curioso beduíno): «Il remplace la connivence par l'information, le moi par le tableau, le mouvement par l'obstacle et l'itinéraire par la question. Livre de synthèse plus que de syncrétisme, il parvient, pour la première et peut-être la dernière fois, à concilier sans drame toutes les figures du narrateur: archéologue érudit, poète spleenétique, Européen fouilleur de rêves, voyageur attentif et flâneur, photographe-artiste, citoyen avisé mais sceptique, journaliste soucieux d'objectivité, touriste en état d'anamnèse, pèlerin du mystère, ethnologue sur la réserve mais familier, mâle surveillant ses fantasmes, aventurier sans aventures, mais encore assez naïf pour croire - et nous faire croire - au regard qu'il porte sur un spectacle dont il peut être encore l'ordonnateur, mais dont le auteurs, désormais, lui échappent.» (p. 59)

Entre os visitantes do Egipto no século XIX que registaram as suas viagens e investigações devemos assinalar Vivant Denon (1747-1825), François-René de Chateaubriand (1768-1848), Giovanni Battista Belzoni (1778-1823), Émile Prisse d'Avennes (1807-1879), Gérard de Nerval (1808-1855), James Henry Breasted, (1865-1935). O próprio Flaubert consignou as suas impressões da viajem ao Egipto em Voyage en Égypte e em cartas à sua mãe e ao seu amigo de infância, o escritor Louis Bouilhet, editadas num livro Le Nil. Rimbaud gravou o seu nome numa parede do Templo de Luqsor, em 1887. Sem falar na Description de l'Égypte, promovida por Bonaparte.

Do itinerário de Maxime du Camp constam especialmente os seguintes locais: Alexandria, Abuqir, Rosetta, Cairo, Gizeh, Mit-Rahineh, Saqqarah, Heliópolis, Beni Suef, Fayum, Syut, Luqsor, Assuão, Ilha Elefantina, Abu Simbel, Philae, Edfu, Karnak, Medinet Habu, Gurnah, Vale dos Reis, Kosseir, Kéneh. 

Os nomes árabes de localidades, de monumentos, de pessoas são escritos por Maxime Du Camp segundo a sua percepção, sem atender à ortografia árabe. Aliás, e ao contrário dos ingleses, os franceses ainda hoje não atendem (voluntariamente?) as regras da transliteração. É habitual nas suas obras ignorarem a diferença entre o ق  e o ك, que é quase sempre grafado como "k", quando o primeiro é "q" e o segundo é "k", com pronúncias diferentes. Escreve-se Qasr e não Kasr. Por vezes torna-se mesmo difícil saber qual o nome exacto a que Du Camp se refere, atendendo às designações correctas que hoje são utilizadas. O escritor escreve "kebla" para significar "qibla", a direcção no sentido de Meca onde é instalado o "mihrab" das mesquitas.

Também é muito curioso perscrutar o olhar de Du Camp sobre o que vê no Egipto. As suas observações estão nitidamente distantes do que nós, viajantes dos fins do século XX e dos princípios do século XXI, realmente vemos, sem prejuízo da diferença no tempo e na mentalidade e de um nível de conhecimento muito superior respeitante àquela terra. 

A propósito de ter assistido (escondido) às orações na Mesquita de Hassan, no Cairo [curiosamente, eu também lá assisti uma vez, embora não escondido: entrei com os fiéis, fora das horas dos turistas, comportei-me devidamente e passei por muçulmano], Du Camp refere as quatro escolas jurídicas do islão sunita: hanafismo, malekismo, chafeísmo e hanbaleísmo. E descreve as abluções. 

Falando de hospitais e escolas de medicina, Du Camp refere que os alunos eram outrora homens feitos, de vinte a vinte e cinco anos, mas agora são crianças de doze a quinze a quem é muito difícil ensinar. E acrescenta: «Pourquoi les choisit-on si jeunes, me diras-tu? A cela je ne puis te répondre; il y a là-dessous des mystères d'iniquités que je ne saurais te dévoiler. Demande-le aux mères qui n'osent plus laisser sortir seuls leurs fils lorsqu'ils ont un visage agréable; demandez-le surtout à Abbas-Pacha qui, pendant mon séjour au Kaire, fit faire à Boulaq une razzia d'enfants.» (p. 90)

O escritor faz numerosas referências aos jardins de Ezbekyyeh como local de cafés e diversões. Os jardins tinham sido um sítio pantanoso, depois devidamente arranjado, e onde ficava a antiga Ópera do Cairo, mais tarde destruída por um incêndio. E também um hotel. [Do meu tempo, os jardins estavam vedados por um gradeamento, nunca lá consegui entrar, e em redor havia um grande número de vendedores de livros usados que eram objecto de grande procura. No local da antiga Ópera está hoje um edifício de vários andares que serve de garagem.]

Longe de mim pretender relatar o muito extenso livro de Maxime Du Camp, mas anotarei algumas observações. Por exemplo, ele refere que penetrou nas três pirâmides de Gizeh, então generosamente abertas. Nos nossos dias, as pirâmides só estão acessíveis a quem paga o seu bilhetes para entrar. Também não é hoje possível escalar as pirâmides. Mas Du Camp conseguiu subir ao cimo da pirâmide de Quéops (aliás Khufu) com a ajuda de alguns beduínos que o içaram até ao topo. [Os blocos de pedra, aos quais estive encostado na base, devem ter o volume de um metro cúbico. Não me arriscaria a tal proeza.]

Maxime du Camp não era um arabista, e a egiptologia dava os primeiros passos. Todavia, deve reconhecer-se-lhe o interesse não só de registar as suas impressões mas de tentar embrenhar-se na história e nas religiões (a "faraónica", a muçulmana, a judaica e a cristã, que era a sua) que deixaram a sua marca no Egipto. Embora relate muita coisa que hoje nos faz sorrir. 

A terminar o Capítulo I (Alexandria, Cairo e arredores), Du Camp não deixa de aludir à execução dos mamelucos na Cidadela pelos albaneses de Mehemet Ali, a fim de exterminar o seu poder. Encerrados nas muralhas cujas portas tinham sido fechadas, isto depois de um banquete, foram todos massacrados à excepção de um que, tendo ficado para trás, conseguiu saltar com o seu cavalo por cima das muralhas. Parece que foi preso mais tarde, segundo o escritor, mas disso já não me recordo da versão oficial.

No início do Capítulo II escreve: «Je pourrais encore te parler longuement du Kaire, mon cher Théophile, je pourrais te promener dans le Khan-Khalil, à travers les ruines de la mosquée de Hakem, sur les sables du Mokatam, sous les arbres de Rodah, parmi les tombeaux où dorment les kalifes, dans les écoles et les manufactures, dans les maisons et les jardins, mais tu connais tous ces détails dont Gérard de Nerval t'a fait le récit. Et puis j'ai hâte de te conduire sur le Nil, de te faire parcourir ses rives splendides et de t'arrêter devant les temples de l'Égypte et de la Nubie.» (p. 113)

A embarcação que Du Camp alugara para subir o Nilo tinha uma tripulação de doze homens, incluindo o patrão "un beau jeune homme de vint-cinq ans que l'on appelait Ibrahim;" e que "avait je ne sais quel air grand seigneur que rendait plus remarquable encore son visage très-brun animé de deux yeux doux et contemplatifs," Ibrahim esteve cinco meses ao serviço de Du Camp.

Prosseguindo viagem, Du Camp refere a aldeia de Cheikh-Abadeh, relativamente próxima da actual cidade de Minya. O sítio teve outros nomes, nomeadamente Antinópolis, pois foi aqui que se afogou, em circunstâncias nunca verdadeiramente esclarecidas, o jovem Antínoos, amante do imperador Adriano, que mandou erguer no local uma cidade, com um templo dedicado ao seu favorito, elevado à categoria de deus. Maxime Du Camp visitou as ruínas, notando que ainda uns vinte anos atrás se encontravam de pé três templos romanos, um arco de triunfo e vários edifícios da época clássica. Sabemos todos que, durante o governo de Mehemet Ali, o khediva (na altura ainda não se usava este título), desejando pedra para as construções que estava a erguer por todo o Egipto na ânsia de modernizar o país, ordenou a destruição de grande parte dos monumentos da época faraónica ou cedeu-os a países ocidentais, como os os obeliscos de Londres e Paris, provenientes de Luqsor e Alexandria. O panorama que se deparou a Du Camp foi, pois, de profunda desolação. Também seu filho, Ibrahim Pasha foi responsável por grandes depredações de construções antigas. Relata Du Camp que, segundo as tradições árabes, os crocodilos nunca descem abaixo desta aldeia. O Cheikh Abadeh vivia sozinho, consagrado à oração, tendo como único acompanhante um burro que ia buscar água ao Nilo com dois odres pendurados na boca. Um dia, tendo muito calor, o burro resolveu banhar-se nas águas e foi morto por um crocodilo. Estranhando a sua demora, o anacoreta arrastou-se até à margem e concluiu da sorte do animal. Regressado a casa, o Cheikh ergueu as mãos ao céu, invocou o Profeta e amaldiçoou os crocodilos, que desde então não mais se atreveram a descer abaixo da altura da aldeia. Conta também o escritor que o jovem Ibrahim, que conduzia o barco, lhe contou que as gaivotas que voam em torno do túmulo, próximo, de Cheikh-Saïd são consideradas sagradas, já que apanham os restos de pão dos viajantes e os colocam num banco junto à sepultura, para alimentação dos peregrinos.

Chegam Du Camp e Flaubert (que nunca é expressamente mencionado) finalmente a Syout (actualmente Assyut), a que Du Camp chama capital do Alto Egipto. Ibrahim vai a terra adquirir provisões para reabastecer o navio, os ilustres viajantes e a tripulação, isto em 26 de Fevereiro. No período greco-romano chamava-se Licópolis.

Em 1 de Março, passando em frente de Djebel-Farchout, Du Camp escreve que avistou crocodilos no Nilo pela primeira vez. E conta como eles se juntavam nas margens ou nas pequenas ilhotas do rio, prestes a lançarem-se sobre algum incauto. Acrescenta que, contudo, os acidentes são raros. Os jovens marinheiros da tripulação estavam constantemente dentro de água, quase despidos, durante a viagem, e não houve, durante os cinco meses que navegaram no Nilo, qualquer acidente. O próprio Du Camp confessa que tomava banho todos os dias, embora considerasse que o seu corpo magro não seria presa apetecível para os crocodilos acostumados a refeições de frugalidade menos manifesta.

Passam em Luqsor e param em Esneh, a antiga Latópolis, onde desembarcam para Ibrahim e o drogman Joseph Brichetti procederem ao aprovisionamento de pão para o percurso em direcção à Núbia. Enquanto descansa no barco, Du Camp é interpelado por uma mulher envolta em véus azuis que o convida, em nome da sua patroa, para assistir em casa dela a uma sessão de danças e canções executadas por almées (dançarinas e músicas de grande qualidade que se produziam em tempos nos haréns). A patroa, Kutchuk-Hanem, era uma árabe síria que fora em tempos amante de Abbas-Pasha e estava exilada naquela cidade. O escritor percorreu a cidade, encontrou o templo dedicado ao deus Chnoupis (Khnoum), mandado erigir por Tuthmés III e então servindo de armazém de algodão, visitou outras ruínas e dirigiu-se, sol-posto, acompanhado de Joseph e de dois marinheiros, a casa de Kutchuk, onde foi calorosamente recebido. Houve, danças, cânticos, músicas e muita bebida. Mas Du Camp queria mais. «Comme tu peux aisément te le figurer, cher Théophile, j'étais content, mais non pas satisfait. Venir sur la terre classique des almées sans voir danser l'abeille me semblait presque une impiété. Je la demandait à Koutchouk-Hanem qui finit par céder à mes prières et surtout au cadeau d'une tabatière à musique que j'avais eu soin d'apporter comme en-cas.» (p. 132) Postos os dois marinheiros fora da porta, colocado um lenço em volta da cabeça do jovem músico, e fazendo prometer a Joseph de não olhar em demasia, as mulheres dispuseram-se em círculo e começaram uma dança rápida. Não houve nem abelha, nem rapariga picada. Tudo simples e francamente idiota. Kutchuk retirou sucessivamente as vestes, fez duas ou três cabriolas, e envergou as suas calças largas onde ficou escondida até ao pescoço, como num saco, durante alguns minutos. As dançarinas estavam cansadas e Du Camp regressou à embarcação. 

Três dias depois os viajantes chegaram à Primeira Catarata, que passam com a ajuda de cinquenta núbios, vigorosos e nus, que amarram a embarcação à margem (com os bens mais valiosos colocados em terra) para a fazer deslizar para lá das quedas de água. Segundo Du Camp, a raça já não é a mesma, os núbios são quase negros, vigorosos e ousados, as núbias não cobrem o rosto e, para lá da catarata caminham despidas enquanto não estão casadas. Du Camp conta a Gautier que a travessia é espectáculo incomparável a todos os que ambos já presenciaram. Do rio, avistam Assuão e a ilha Elefantina, e depois a ilha de Philae. Longe vinham os tempos em que o templo de Isis, na ilha, seria deslocado para outra zona, por causa da barragem que Nasser mandou construir no Nilo. Na aldeia de El-Mahatta, Du Camp reencontra o seu pessoal que torna a colocar a bagagem a bordo. A partir do dia 12 têm um piloto a bordo que os deve conduzir a Wadi-Halfa e trazer novamente a Assuão: «il se nomme Reïs-Haçan; c'est un grand Nubien assez beau, silencieux. et toujours assis à l'avant, regardant vers le Nil.» (p. 135) O escritor não se exime a salientar a beleza dos homens núbios, negros e sólidos, aludindo a um que, não fora a cor, pelos seus cabelos cortados à Caracala poderia ser um procônsul romano.

Continuando a viagem para sul, cruzam-se com barcas carregadas de escravos e de artefactos para venda, supostamente provenientes da região do Darfur. Trazem homens, mulheres e crianças, algumas muito belas. «Toutes ces femmes et ces jeunes filles sont des enfants volés; dans leur pays, un homme de vingt ans, solide, bien fait, vigoreux se paye de six à dix francs; rendu au Kaire il vaut environ trois mille piastres (sept cent cinquante francs).» (p. 139)

No dia 22, às oito da noite, chegam a Wadi-Halfa, 46 dias depois da partida do Cairo. Com um forte khamsin. A luz da lua sobre a areia cinzenta faz um efeito de neve. Um grupo de homens reúne-se na margem para assistir à acostagem. O jovem Ibrahim precipita-se para Du Camp, agarra-lhe as mãos e grita: «Que Dieu te ramène dans ton pays aussi heureusement qu'il t'a conduit avec moi à la seconde cataracte.» (p. 140)

Maxime Du Camp medita: «Pourquoi est-ce que je suis si triste d'être déjà parvenu au terme de mon voyage d'Égypte et de Nubie? Dans quelques jours, on tournera ma barque vers le Kaire; j'ai bien des pays à traverser avant de rentrer en France, je le sais, bien des mois à marcher, bien des nuits à passer sous le ciel; mais c'est égal, je sens que c'est déjà le commencement du retour!» (p. 140)

O escritor inicia o Capítulo III com a chegada a Wadi-Halfa, aldeia imediatamente antes da segunda catarata. A barca com os marinheiros regressa ao Cairo e Du Camp começa a viagem de regresso. Em primeiro lugar Ibsambul (Abu Simbel) onde visita o pequeno e o grande templo mandados erigir por Ramsès II, o primeiro dedicado à deusa Hathor (Venus) e o segundo ao deus Phrè (o Sol), um templo colossal que Du Camp visita e descreve. E visita também o pequeno templo. Como o interior de ambos se encontra mergulhado na obscuridade, Du Camp toma as suas notas à luz das velas transportadas por dois marinheiros que o acompanham. As considerações que tece, numa altura em que a egiptologia dava os primeiros passos, merecem o nosso apreço. Nos últimos 150 anos muita coisa se ficou a saber sobre o Egipto. Nem imaginaria alguma vez Maxime Du Camp que o Grande Templo de Ramsés seria um dia desmontado e recolocado noutro lugar, próximo mas mais elevado, para não ficar submerso pela construção da barragem de Assuão, uma operação também ela faraónica e que só pôde ser realizada com tecnologia e financiamento internacionais.

Afinal, ao contrário do escrito, Du Camp inicia o regresso na barca, supostamente a mesma, já que é dirigida pelo citado Ibrahim. Visita templos na margem oriental e aporta à ilha de Philae. Mas faz algumas etapas por terra. Os templos da ilha são magnificamente descritos, tendo em conta o nível de conhecimentos da época. O escritor recheia a narrativa com as suas experiências pessoais e considerações históricas e religiosas. E fala dos djinns!

O Capítulo IV inicia-se com a chegada de Du Camp a Assuão. Uma elegante núbia propõe-se ir dançar à noite na embarcação, e o escritor acede. A sua dança faz lembrar Herodíade e os marinheiros das barcas paradas em Assuão, bem como os ociosos e os escravos (sic) contemplam o espectáculo. Segue-se Kom Ombo, cujo templo ptolemaico é dedicado especialmente ao deus crocodilo Sobek. A forma como Du Camp escreve os nomes causa, por vezes, algumas dificuldades. O escritor reproduz naturalmente em francês nomes faraónicos, gregos, árabes, em muitos casos misturados. Muitos templos ainda existentes por ocasião da expedição de Bonaparte já não se enxergam nesta viagem de Maxime Du Camp. Foram destruídos para aproveitamento da pedra por Mehmet Ali ou Abbas-Pasha. A viagem prossegue por Esneh até Tebas, onde visitam Karnak, Luqsor, Medinet-Abu, Gurnah, os colossos, etc. Há guias especiais para a margem direita do Nilo e guias particulares para a margem esquerda. Com esta sábia divisão terminou a guerra aberta que existia entre as duas margens. Para a margem direita Du Camp escolheu um antigo escavador de Champollion chamado temsah (crocodilo) e para a esquerda um rapaz da zona, chamdo Abdul-Hamid, muito doce e realmente inteligente. 

Em Luqsor, visita o templo e verifica o sítio de um dos obeliscos, oferecido à França por Mehemet Ali e já então erigido na Praça da Concórdia. Descreve o local mas não menciona a incrição RIMBAUD, pois o poeta só passaria por ali, e deixaria o seu nome inscrito na pedra, algus anos mais tarde. E menciona que uma parte da colunata está rodeada por uma parede que serve de armazém de trigo. Segue-se a visita ao Templo de Karnak, com ampla descrição impossível de reproduzir e de interesse historicamente relativo, já que muitas anotações de Du Camp não se harmonizam com as actuais investigações egiptológicas. Registo que encontrando-se ainda uma noite na sala hipóstila do templo, o guia o adverte: «Kaouadja, il est temps de partir, voici l'heure où les fantômes blancs vont sortir de terre pour aller s'accroupir sur leurs trésors.» (p. 190)

[Devo dizer que visitei uma vez, de dia, o Templo de Karnak e várias vezes, de dia e de noite, o Templo de Luqsor. A visão nocturna do Templo de Luqsor é fascinante.}

Durante o tempo que permaneceu em Karnak, Du Camp pernoitou numa das salas laterais do templo, partilhando o espaço com grandes formigas negras e observado por pardais.

Terminada a visita a Karnak, Du Camp atravessou o Nilo com o guia Abdul-Hamid e dirigiu-se a Medinet-Habu (Templo de Ramsés III). E viu depois os Colossos de Memnon (duas enormes estátuas de Amenófis III). Uma das estátuas canta ao nascer do sol ou em certas ocasiões, confiou o guia a Du Camp, que não a ouviu cantar. [Quando eu visitei os Colossos também o motorista do automóvel que me conduzia me contou a história. Mas a estátua, que teria saudado várias personagens, inclusive o imperador Adriano, não me ligou a menor atenção.]

Depois, os viajantes dirigem-se ao Ramesseum (o templo funerário de Ramsés II), donde contemplam do alto dos terraços [onde eu não pude subir] a paisagem em volta. Em muitos dos hipogeus circundantes dos grandes sacerdotes das dinastias gloriosas dormem árabes meio-nus com as suas ovelhas e as suas vacas. Du Camp visita a casa de um velho grego, vivendo na montanha há mais de vinte anos, sem mulher nem filhos, que compra objectos aos camponeses (por eles encontrados em túmulos isolados) e depois revende aos estrangeiros. No pátio da casa encontram-se trinta ou quarenta múmias já sem faixas. O grego queixa-se da proibição do governo egípcio de traficar antiguidades, pelo que limitou o seu negócio a anéis, colares, escaravelhos, papiros. E lamenta-se do futuro das múmias, não das do pátio de entrada, mas das do andar superior, ainda enfaixadas e repousando nos sarcófagos. 

Próximo, encontra-se a aldeia de Gurnah, onde viviam os construtores de templos e que ainda hoje é habitada. Para terminar a viagem, Du Camp segue para o vale de Biban-el-Moulouk (as portas dos reis), que hoje designamos por Vale dos Reis, O escritor conta-nos que, à época, estão descobertos dezasseis túmulos, tendo sido Belzoni a descobrir o primeiro. Para não fatigar Gautier com as suas explorações, Du Camp descreve-lhe apenas a visita ao túmulo de Seti I.

Iniciando o caminho do regresso, Du Camp despede-se de Tebas. De novo a bordo da sua embarcação, o escritor chega a Kénéh (Qena) onde passa pelo bairro das cortesãs e visita o agente consular francês com a finalidade de obter dromedários e guias para se deslocar a Kôçéir (Al-Qusair ou El-Qoseir), na margem do Mar Vermelho. Partem às quatro e meia da manhã de 18 de Maio. A caravana compõe-se de dois cameleiros, dois dromedários (um para Joseph e outro para Du Camp) e dois camelos com carga. [Depreendo que Flaubert ficou em Qena]. A viagem pelo deserto é difícil e lenta. Em Kôçéir encontram uma multidão de peregrinos em caminho de Meca, pois é o ponto habitual de passagem do Mar Vermelho do Egipto para a Península Arábica. Há turcos vindos do Cairo e de Alexandria, turcomanos, árabes do Egipto e magrebinos de Tunis e da Argélia, estes orgulhosos de serem protegidos franceses, segundo o autor. 

E uma previsão: «Je vis aussi à Kôçéir beaucoup de Wahabis qui se rendaient au Kaire pour affaires commerciales. Tu sais, cher Théophile, que les Wahabis sont à l'islamisme ce que les protestants sont au catholicisme; c'est à eux certainement que reviendra l'empire religieux de l'Orient. C'est aujourd'hui une secte nombreuse, bataillarde et vaillante que, malgré ses fanfaronnades, Méhmét-Ali n'a jamais pu vaincre. Bientôt elle dominera sur l'Arabie tout entière et peut-être se dégorgera sur la Perse par le golfe Persique et sur l'Égypte par la mer Rouge et les déserts du Sinaï. [...] La rigidité première de leurs moeurs s'adoucira, car ils rejettent encore l'usage du café et du tabac; leur doctrine s'appuie uniquement sur le Koran et repousse les traditions et les interprétations dont les docteurs l'ont entouré. Leur foi, comme toutes les fois débutantes, est dure, intolérante, implacable; mais à mesure que les peuples se rangeront vers elle, elle se modifiera et deviendra peut-être le germe fécondant qui doit régénérer ces vieilles races épuisées.» (p. 223)

Regressado a Kénéh, e saudado pelos marinheiros que tinham ficado na embarcação, Du Camp parte para Denderah, onde visita o templo. E continua a sua tarefa fotográfica, com alguns expedientes: «Toutes les fois que j'allais visiter des monuments, je faisais apporter avec moi mes appareils de photographie et j'emmenais un de mes matelots nommé Hadji-Ismaël. C'était un fort beau Nubien; je l'envoyais grimper sur les ruines que je voulais reproduire, et j'obtenais ainsi une échelle de proportion toujours exacte. La grande dificulté avait été de le faire tenir parfaitement imobile pendant que j'opérais et j'y étais arrivé à l'aide d'une supercherie assez baroque qui te fera comprendre, cher Théophile, la naïveté crédule de ces pauvres Arabes. Je lui avais dit que le tuyau en cuivre de mon objectif saillant hors de la chambre noire était un canon qui éclaterait en mitrailles s'il avait le malheur de remuer pendant que je le dirigeais de mon côté; Hadji-Ismaël, persuadé ne bougeait pas plus qu'un terme; tu as pu t'en convaincre en feuilttant mes épreuves.» (pp. 227-8)

A viagem continuou por Abydos, Girgeh, Saouhadji (a actual Sohag) com a mesquita de El-Arif e o túmulo de Murad-Bey, que ali morreu de peste, Syout (Asyut), Beni-Haçan (Beni-Hassan), Minieh (Minya), a ilha de Rodah (Rawdah) até ao Cairo, onde o livro termina.

Escreve Maxime Du Camp a concluir: «C'est ici, cher Théophile, que j'arrêterai mes lettres, car huit jours après mon retour au Kaire j'étais à Alexandrie, et bientôt à Beyrouth, où j'allais commencer mon voyage de terre ferme. Crois-moi, lorsque l'ennui de nos froids pays alonguira ton coeur, lorsque tu voudras entrer en communication directe avec la nature et boire amplement à la source des choses, traverse la Mediterranée, débarque sur la vieille terre d'Égypte, remonte et descends le Nil pacifique, admire ses ruines, enivre-toi de ses paysages, écoute les chants merveilleux qu'il murmure aux oreilles de ceux qui savent le comprendre, marche hardiment dans la solitude des déserts, et tu te sentiras plus jeune, plus fort, plus fécond, plus ardent, et plus près de Dieu!» (p. 238)

Importa referir que o livro apresenta em páginas finais uma fotografia da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém (19 de Agosto de 1850) e outra do templo de Júpiter, em Baalbek (15 de Setembro de 1850), locais que constaram do itinerário de regresso de Du Camp mas não foram abrangidos por este livro, exclusivamente dedicado ao Egipto.

Curiosamente, Maxime Du Camp nunca se refere no livro ao seu companheiro de viagem Gustave Flaubert. Pelo contrário, Gustave Flaubert, no livro que escreveu sobre esta viagem ao Egipto, e que comentarei mais tarde, fala várias vezes de Du Camp.

Também Du Camp omite as suas aventuras sexuais, ao contrário de Flaubert, que terá registado alguns sucessos, que foram expurgados do livro pela sobrinha deste, quando publicou o manuscrito. Mas sabemos, por outras fontes, que os dois amigos frequentaram hammams, onde puderam usufruir da companhia de jovens egípcios, assim como casas de prostituição (mais abertas ou mais disfarçadas) de rapazes e de raparigas. Além de contactos ocasionais, como, por exemplo, os marinheiros da viagem pelo Nilo. Em carta ao seu amigo o escritor Louis Bouilhet, de 20 de Agosto de 1850, Flaubert escreve: «Maxime a sodomisé un bardache dans la grotte de Jérémie.» Esta gruta encontra-se em Jerusalém e o facto terá ocorrido no regresso do Egipto, quando visitavam a Palestina.

Indico a seguir algumas obras dos viajantes franceses no Egipto no século XIX:

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