quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O EGIPTO VISTO POR GUSTAVE FLAUBERT

Como referi em publicação anterior sobre Maxime Du Camp, o escritor Gustave Flaubert (1821-1880) visitou com ele o Egipto em 1849/1850. Desse percurso nos deu conta em Voyage en Égypte, notas tomadas no decurso da viagem. Essas notas destinavam-se à redacção de um livro sobre a visita, mas Flaubert nunca lhes deu forma definitiva e a edição do livro não se verificou.

Depois da sua morte, a sua sobrinha e única herdeira, Caroline Franklin-Grout, decidiu publicar esses cadernos (1910), fazendo desaparecer as passagens julgadas inconvenientes, como escreve Richard Lebeau na introdução à edição que agora comentamos, que tem desenhos de Loustal e fotografias de Michel Le Louarn e que inclui os principais trechos.

Tendo-se perdido o manuscrito original após a morte de Caroline em 1930, aconteceu que o mesmo (cento e oitenta e sete páginas) foi providencialmente encontrado algumas décadas mais tarde. Assim, em 1991, a editora Grasset publicou pela primeira vez o texto integral, ao qual nos referiremos oportunamente. A sua leitura é, segundo os editores, recomendada aos maiores de 18 anos. Maxime Du Camp nunca mencionou na sua obra pormenores de carácter íntimo mas Flaubert anotou as suas aventuras eróticas, porventura com a intenção de mantê-las secretas caso se tivesse decidido a editar a obra. Uma sorte o manuscrito não ter sido destruído, pois este é para os flaubertianos um texto essencial para o conhecimento do homem e da obra.

A edição que agora se comenta (2001) contém, todavia, a parte essencial da viagem (excluindo os detalhes particulares). Flaubert conta-nos as suas impressões, em estilo de apontamentos, já que se tratava de notas e não de uma versão destinada ao público. Não é o caso de Du Camp cuja descrição da mesma viagem é já o resultado de um trabalho com vista a ser publicado e por isso muito mais elaborado que o texto de Flaubert.  E embora em alguns aspectos as preocupações do que importa registar sejam comuns, nota-se, em outros aspectos, singular diferença entre o que ambos consignaram.  Há, todavia, muitos episódios que são referidos pelos dois, ainda que nem sempre interpretados da mesma forma. Nem um nem o outro escrevem habitualmente de forma correcta os nomes dos locais e das personagens (nomeadamente as transliterações do árabe, em que usam as designações francesas que eram comuns naquela época), havendo, contudo, mais erros históricos em Flaubert do que em Du Camp, que se munira, antes da viagem, de um número considerável dos livros sobre o Egipto existentes à época.

Algumas notas:

- Em Licópolis (Assyut) Flaubert escreve, em 1 de Março, que viu o primeiro crocodilo na areia à beira do rio. Ora nesta região não é suposto existirem crocodilos, que apenas se encontram ao sul de Assuão. (p. 44)

- Uma confissão de felicidade de Flaubert: «Quand nous sommes arrivés devant Thèbes, nos matelots jouaient du tarabouch, le bierg soufflait dans sa flûte, Khalil dansaient avec des crotales; ils ont cessé pour aborder. C'est alors que, jouissant de ces choses, au moment où je regardais trois plis de vagues qui se courbaient derrière nous sous le vent, j'ai senti monter du fond de moi un sentiment de bonheur solennel qui allait à la rencontre de ce spectacle, et j'ai remercié Dieu dans mon coeur de m'avoir fait apte à jouir de cette manière; je me sentais fortuné par la pensée, quoiqu'il me semblât pourtant ne penser à rien, c'était une volupté intime de tout mon être.» (p. 46)

- Em 24 de Março, Domingo de Ramos: «Parti à six heures du matin en canot, pour la cataracte, avec raïs Haçan et trois autres Nubiens de la première cataracte. J'ai avec moi un petit raïs de quatorze ans environ, Mohamed; il est de couleur jaune, une boucle d'oreille d'argent à l'oreille gauche. Il ramait avec une viguer pleine de grâce, criait, chantai en passant les courants, menait tout le monde; ses bras était d'un joli style, avec ses biceps naissants. Il a ôté sa manche gauche; de cette façon il était drapé sur tout le côté droit, avait le côté gauche et une partie du ventre à découvert. Taille mince. Plis du ventre qui remuaient et descendaient, quand il se baissait sur son aviron. Sa voix était vibrante en chantant "El naby, el naby". C'est là un produit de l'eau, du soleil des tropiques, et de la vie libre; il était plein de politesses enfantines: il m'a donné des dattes et relevait le bout de ma couverture qui trempait dans l'eau.» (p. 70)

- No dia 8 de Abril, Flaubert está em Calabschi (Kalabsha) onde visita o grande templo construído no reinado de Augusto e dedicado a Mandulis, deusa núbia com cabeça de falcão, a Isis e a Osíris. Com a construção da barragem de Assuão seria inevitavelmente submerso pelas águas. Para evitar a perda, foi cortado em 13 000 blocos, entre 1962 e 1963, que foram desmontados, transportados e recolocados em 1970 em sítio não muito distante da localização original. (p. 78)

- Em 22 de Abril, Flaubert visita o grande templo de Edfu e regista: «Le temple d'Edfou sert de latrines publiques à tout le village.» (p. 92) Acontecia que até ao fim do século XIX muitos templos egípcios eram habitados. 

Ao contrário de Du Camp, que nunca cita Flaubert no texto, este menciona muitas vezes Maxime Du Camp, ainda que possamos pensar que, no percurso por terra, não estivessem sempre juntos. Mas na viagem no Nilo certamente que não se separaram.

 * * *

Num pequeno livro, Le Nil, são incluídas algumas cartas que Flaubert enviou do Egipto a sua mãe e aos seus amigos Emmanuel Vasse e Louis Bouilhet. Este último, escritor e seu companheiro de escola desde a infância, é também seu confidente. Na sua vasta correspondência, Flaubert dá conta das suas aventuras sexuais, que só poderia narrar aos seus amigos íntimos. A viagem ao Egipto, e ao Oriente em geral, tinha por objectivo não só o contacto com culturas diferentes mas também a possibilidade de usufruir de experiências eróticas menos fáceis na Europa e sem o atractivo étnico que fez dos orientais parceiros sexuais ambicionados pelos escritores do século XIX e, também, pelos turistas do século XX. E não foi um mero acaso a parceria Flaubert/Du Camp, já que ambos tinham gostos semelhantes.

1 comentário:

anónimo disse...

Muito interessante e indispensável para flaubertianos e não só