sábado, 31 de agosto de 2024

AS CORTES DE COIMBRA DE 1385



A propósito do recente aniversário da batalha de Aljubarrota, reli Aljubarrota: 600 Anos, um livro que reúne as 22 conferências proferidas na Sociedade Histórica da Independência de Portugal aquando do 600º aniversário da famosa batalha.

Trata-se de intervenções notáveis sobre a Batalha e sobre as Cortes de Coimbra, que estiveram a cargo de notáveis historiadores civis e militares como, entre outros, Joaquim Veríssimo Serrão, José Hermano Saraiva, Jorge Borges de Macedo, Carlos Gomes Bessa, Henrique Barrilaro Ruas, António Almeida Brandão, Alberto Vieira de Ascensão, Pedro Soares Martinez, Altino de Magalhães, Alberto Franco Nogueira, Torquato de Sousa Soares, José Carlos Amado, Salvador Dias Arnaut, Francisco da Gama Caeiro ou Nuno Espinosa Gomes da Silva.

As Cortes de Coimbra de 1385, cuja principal, e quase única, fonte de informação é a Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, têm feito correr abundante tinta, tanto mais que o cronista, escrevendo mais de 50 anos depois do acontecimento, não foi testemunha presencial e terá "reconstituído" o ocorrido a partir de um documento realmente existente, de afirmações alheias que não dos protagonistas, da sua imaginação e até de alguma conveniência política circunstancial. E, por isso, a descrição da Crónica é por vezes contraditória, como é salientado por vários dos participantes no Ciclo de Conferências.

Aproveitei para reler também As Cortes de 1385 (1951), de Marcello Caetano, estudo incluído em A Crise Nacional de 1383-1385 (1985). Nessa obra, o Prof. Marcello Caetano dá-nos uma visão de conjunto, sucinta mas suficientemente abrangente desse acontecimento, todavia indispensável para a compreensão da forma como se resolveu a primeira crise dinástica nacional. Assim, ele é largamente citado pelos conferencistas, mesmo quando se trata de corrigir um pequeno lapso, já que Marcello Caetano escreve ter estado presente nas Cortes o bispo de Cidade Rodrigo (p. 11), quando se tratava do bispo de Coimbra (de nome Rodrigo), como notou na sua intervenção o Dr. Alberto Vieira de Ascensão.

Importa notar alguns factos:

1) As Cortes reuniram-se em Coimbra em Março e Abril de 1385;

2) Foi Nuno Álvares Pereira quem aconselhou o Mestre de Aviz a convocar os fidalgos e os homens-bons da cidade de Lisboa para que lhe prestassem homenagem. O primeiro episódio teve lugar em 2 de Outubro de 1384, no Mosteiro de São Domingos, onde o Mestre foi proclamado Regedor e Defensor do Reino. Mas como havia necessidade de obter recursos financeiros para a prossecução da guerra e definir o problema da chefia, assuntos da competência das Cortes, foram estas convocadas para Coimbra. Não é claro se a questão da chefia fazia inicialmente parte do objecto das Cortes, ou tão só o financiamento da guerra. Mas as coisas foram conduzidas pelos partidários do Mestre para que ela fosse incluída na "ordem de trabalhos";

3) Estiveram presentes, como se sabe pelo "Auto da Eleição", e segundo a tradição, representantes dos três estados. O arcebispo de Braga e a maioria dos bispos portugueses, pelo clero, 72 fidalgos, pela nobreza, e procuradores de 31 cidades e vilas, pelo povo;

4) As Cortes tiveram lugar nos Paços d'El-Rei e iniciaram-se a seguir à chegada a Coimbra do Mestre d'Aviz, que ocorreu em 3 de Março de 1385, logo, alguns dias depois;

5) Houve uma Inquirição sobre a legitimidade dos filhos de D. Inês de Castro, que decorreu de 30 de Março até 3 de Abril. O Auto de Eleição do Mestre de Aviz como rei tem a data de 6 de Abril. A Carta de Confirmação dos privilégios da cidade de Lisboa bem como os diplomas que despacham os capítulos das Cortes são datados de 10 de Abril;

6) Deve ter havido reuniões plenárias e reuniões separadas, sendo plenárias, pelo menos, a de abertura em que o Dr. João da Regras fez o discurso da proporção bem como a que deliberou a eleição de D. João I. Em reuniões separadas tratou-se do financiamento da guerra e dos agravamentos dos povos, assuntos que não estiveram condicionados pela solução dinástica.

Aquando da reunião das Cortes o país estava dividido em três partidos relativamente à sucessão de D. Fernando I. O "partido legitimista" considerava D. Beatriz, filha de D. Fernando I e de D. Leonor Teles, e mulher de D. João I, rei de Castela, como a única herdeira legítima, nos termos da Escritura de Salvaterra de Magos (2 de Abril de 1383), que assim estabelecia. O "partido legitimista-nacionalista" receava que a sucessão com D. Beatriz pusesse em causa a independência nacional, submetendo-a a Castela. Por isso, defendia que a herança cabia aos filhos de D. Pedro I e de D. Inês de Castro, D. João de Castro ou, no impedimento deste, na altura preso em Castela, seu irmão D. Diogo de Castro. O "partido nacionalista" sustentava que o único herdeiro capaz de assegurar os interesses de Portugal era D. João, Mestre de Aviz, filho de D. Pedro I e de Teresa Lourenço, apesar de bastardo e clérigo, situação que a Santa Sé resolveria.

É claro que o "partido legitimista", solidário com Castela, não esteve representado nas Cortes de Coimbra. O "partido legitimista-nacionalista" era chefiado por Vasco Martins da Cunha e por seus filhos. Aceitava a regência do Mestre de Aviz, enquanto D. João de Castro estivesse prisioneiro em Castela. A Chronica do Condestabre, obra anónima, fornece pormenores interessantes a esse respeito. O "partido nacionalista" era constituído pela "arraia-miúda" e alguns homens-bons, à frente dos quais estava D. Nuno Álvares Pereira.

A notável e hábil argumentação do Dr. João das Regras, sujeita a algumas variações na Crónica de Fernão Lopes, pode resumir-se no seguinte:

a) D. Beatriz, para além do seu casamento com o rei de Castela, era filha ilegítima de D. Fernando. Quando este casou com D. Leonor Teles ela estava casada com João Lourenço da Cunha. Por outro lado, D. Beatriz era cismática, pois Castela reconhecia não o Papa de Roma mas o de Avinhão;

b) Os filhos de D. Inês de Castro eram ilegítimos, pois D. Pedro estava casado com D. Branca de Castela à data do casamento que dizia ter celebrado com aquela [o que é falso, foi um expediente do Dr. João das Regras, pois o casamento com D. Branca nunca ocorreu. E também não há provas que D. Pedro tenha casado com D. Inês, já que tal não foi reconhecido pelo Papa (Bula Nuper per certos ambaxiatores);

c) O próprio rei D. Fernando, filho do casamento de D. Pedro com D. Constança tinha também sido um rei ilegítimo, pois D. Pedro se encontrava casado com D. Branca [o que é falso, como se escreveu acima];

d) O Mestre de Aviz era igualmente um filho ilegítimo, como se sabia.

Tudo isto para lá de problemas de parentesco que teriam exigido dispensas papais, mas que não cabe aqui detalhar.

A conclusão pretendida por João das Regras era a de que o trono se encontrava vago e seria necessário eleger um rei, visto que todos os pretendentes eram ilegítimos. A sua argumentação, e também a persuasão militar do Condestável, levou os presentes, atendendo ao estado de necessidade do Reino e atendendo a estarem preenchidos os requisitos de elegibilidade do Mestre, a promoverem D. João à "alta dignidade e estado de rei". 

O Auto da Eleição é o documento fundamental desta fase do funcionamento das Cortes de 1385 e foi nele que Fernão Lopes se baseou para redigir, na sua Crónica, o que nelas se passou. Foi escrito em português e vertido em latim para ser enviado à Santa Sé, também com o fim de impetrar a ratificação da eleição, feita sem embargo de não ter havido prévia dispensa do defeito do nascimento e da condição clerical. Após duas embaixadas enviadas a Urbano VI, uma terceira embaixada enviada a Bonifácio IX obtém a satisfação do pretendido. O Soberano Pontífice emite a Bula Quia rationi congruit et convenit, de 29 de Janeiro de 1391, em que certifica que Urbano VI absolvera D. João I da excomunhão em que pudesse ter incorrido, dispensando-o do impedimento do nascimento para o exercício da função real e dos votos de castidade que como professo da Ordem de Cister o impediam de casar e ratificando desde logo o casamento com D. Filipa de Lencastre; e a Bula Divina disponente clementia, de 27 de Janeiro de 1391, concedendo a D. João I o desligamento dos votos de pobreza, obediência e castidade absolvendo-o do perjúrio que cometeu, legitima o seu nascimento e ratifica o seu casamento sem embargo de quaisquer impedimentos existentes.

A primeira bula destina-se a certificar urbi et orbi a regularização da situação do Mestre concedida por Urbano VI; a segunda bula, acto pessoal de Bonifácio IX, destina-se a tranquilizar a consciência de D. João I. Estas formalidades eram indispensáveis já que se vivia na Europa numa respublica christiana que subordinava os príncipes ao juízo supremo do Papa e a bênção deste vencia todos os escrúpulos. 

Na sua Monarquia Lusitana, Fr. Manuel dos Santos descreve com pormenor a cerimónia da coroação e aclamação pelas ruas da cidade, então Coimbra, mas realmente não houve coroação (nunca houve em toda a I Dinastia) e a cerimónia litúrgica terá sido apenas a missa de pontifical pelo bispo de Lamego com a assistência do novo rei no sólio. 

Como se disse acima, D. João I de Castela havia prendido D. João de Castro para que ele não fosse um estorvo às pretensões de sua mulher D. Beatriz. Mas dada a situação posterior, o rei de Castela libertou-o e nomeou-o regente de Portugal em nome dos reis castelhanos, por diploma datado de Burgos, de 24 de Março de 1386, conforme documento descoberto em Madrid pelo embaixador de Portugal (1945-1953) Dr. Carneiro Pacheco, mas o acto não deve ter chegado a ter efeito.

Deve ainda dizer-se que uma das principais razões que motivou a crise de 1383 foi a completa animosidade do povo de Lisboa em relação a D. Leonor Teles (que ficara como Regente, nos termos da Escritura de Salvaterra), já manifestada aquando do seu casamento com D. Fernando mas principalmente pelas suas ligações a Castela e pela sua relação adúltera com João Fernandes Andeiro, conde de Ourém. Entre os mais ardentes defensores da eliminação de Andeiro estava Álvaro Pais, figura notável de Lisboa, que na sua intervenção o Dr. José Carlos Amado classifica como membro da classe média, recusando a designação de burguês, já que não aceita a identificação da classe média com a burguesia «porque me parece indiscutível que, num esquema minimamente objectivo de composição social, os grandes ou médios mercadores e os mesteirais mais poderosos, não esgotam em Portugal a zona sociológica, nem as correspondentes formas de mentalidade e de comportamento, de uma camada intermédia da classe popular e da classe senhorial. Há a considerar ainda , pelo menos, os homens-bons dos concelhos, os letrados, os oficiais - usando esta palavra no sentido que lhe dá D. Duarte.» Foi Álvaro Pais que instigou o Mestre a matar o conde Andeiro, garantindo-lhe o apoio do povo. E foi ele que  correu pelas ruas de Lisboa aos gritos de "Matam o Mestre" para que o povo acorresse ao Paço da Rainha, onde D. João acabava de assassinar Andeiro e que teve de se mostrar de uma janela para provar que estava vivo e evitar maiores desacatos.

Pode dizer-se que Álvaro Pais foi a alma da revolução de 1383.

Este texto não passa de um singelo resumo dos acontecimentos de 1383-1385 e não tem outra pretensão de que recordar a primeira crise dinástica da Monarquia Portuguesa.

Concluo, citando Marcello Caetano: «Estamos, pois, perante um documento do mais vivo interesse histórico-jurídico [Auto da Eleição], porventura o de maior valor para a história do nosso direito público medieval, já que é apócrifa a acta das Cortes de Lamego. Assim resulta dos princípios nele exarados relativamente à sucessão hereditária da coroa, à vacância desta e devolução ao Reino do direito de eleição do rei, à aceitação do eleito e aos poderes da Sé Apostólica no reino de Portugal.» (p. 36)

VALETE, FRATRES


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