quinta-feira, 22 de agosto de 2024

AS CONFISSÕES DE FELIX KRULL

 

Acabei de ler As Confissões de Felix Krull, Cavalheiro de Indústria, de Thomas Mann, que há cerca de quarenta anos repousava numa estante, devido a outras prioridades.

Trata-se de uma longa reflexão sobre a condição humana, diria mesmo de uma introspecção, efectuada através de Felix Krull, o protagonista, ressalvadas todas as diferenças, e são muitas, entre este e o autor do livro.

O escritor começou o romance nos anos 1910, continuou pouco a pouco a saga da personagem mas nunca concluiu a obra que foi parcialmente publicada em revistas e finalmente editada, incompleta, em 1954, uns meses antes de Thomas Mann morrer. Admite-se que os últimos capítulos tenham sido escritos no seu exílio em Zurique nos últimos tempos da sua vida.

Thomas Mann ocupa-se da decadência de uma família (tal como fizera a propósito dos Buddenbrooks) e da vida aventurosa de Felix, o filho da família, que se socorre da sua beleza para "triunfar" na vida. Na verdade, Felix é um indivíduo sem escrúpulos que não olha a meios para atingir os fins. Ao longo da volumosa obra, Thomas Mann ocupa largas páginas a descrever a beleza de Felix (de corpo que não de alma) desde a infância até aos seus dezoito anos, idade em que se situa a maior parte da acção. Uma descrição pormenorizada que faz lembrar a forma como caracterizou o Tadzio de A Morte em Veneza. Mas neste aspecto o escritor estava perfeitamente à vontade e com conhecimento de causa. 

Depois do suicídio do pai Krull (há sempre suicídios directos ou indirecto nas obras de Mann, talvez por causa das suas duas irmãs que se suicidaram), a família muda-se de Munique (a cidade de adopção do escritor e recorrente nos seus livros - recorde-se, por exemplo, o começo de A Morte em Veneza, quando é mencionada a residência em Munique de Gustav von Aschenbach, na Prinzregentenstrasse, perto da Prinzregentenplatz, local da célebre morada de Adolf Hitler na capital bávara), a família muda-se de Munique, dizia, para Frankfurt e daqui Felix viaja para Paris, para trabalhar num hotel de luxo, onde é sucessivamente ascensorista, criado de mesa e criado de quarto e onde a sua beleza seduz sucessivamente mulheres e homens que o desejam. O livro narra as aventuras de Felix com as mulheres mas omite as eventuais aventuras com homens, quedando-se nas propostas de sexo, já que Thomas Mann se resguarda de enveredar por caminhos menos ortodoxos para um escritor galardoado com o Prémio Nobel.

Todavia, no capítulo VI escreve: «A grosseria rebaixa até ao comum e é a cortesia que cria as distâncias. Recorria a ela, portanto, quando na minha juventude me sentia alvo de certos convites masculinos indesejáveis, o que não será muito para surpreender o leitor, sem dúvida informado sobre o mundo multiforme dos sentimentos. Essas propostas eram-me feitas com mais ou menos perífrases e diplomaticamente. E não há nelas nada de espantar, dada a fisionomia atraente que eu devia à natureza, ao encanto espalhado por toda a minha pessoa, impossível de dissimular, a despeito das minhas roupas miseráveis, do lenço em volta do pescoço, do fato remendado e das minhas meias cheias de buracos. Para esses solicitantes que, como bem pode supor-se, pertenciam às classes superiores, as minhas roupas ordinárias apimentavam ainda mais o seu desejo.» (p. 123)

É em Paris que Felix consuma mais uma vigarice, transmutando-se em marquês Luís de Venosta, a pedido do próprio titular, usurpando assim consentidamente aquela identidade. Uma espécie de Ripley avant la lettre. O marquês, cliente do hotel e obrigado pela família a fazer uma viagem pelo mundo, não quer deixar Paris por causa de uma amante e propõe a Felix que o substitua. É nessa qualidade que este viaja de Paris para Lisboa, com destino a Buenos Aires, mas o romance termina em Lisboa. 

A última parte do livro decorre, pois, em Lisboa, que Thomas Mann conhecia razoavelmente e da qual descreve no livro alguns dos sítios mais importantes, ainda que, naturalmente, estabeleça alguma confusão de nomes e locais. É na viagem de Felix para Lisboa que este conhece, no comboio, o professor Kuckuck, director do Museu de História Natural de Lisboa a quem visitará depois na capital portuguesa. Nos capítulos relativos a Lisboa é referido o rei D. Carlos I, a Torre de Belém, o Jardim Botânico, Sintra, a Praça do Comércio, o Rossio, a Avenida da Liberdade, etc. 

Thomas Mann é um apaixonado pelos pormenores. Eles são indispensáveis para caracterizar pessoas e descrever locais mas a profusão de detalhes e observações laterais é tão abundante nos seus livros que por vezes nos distrai do essencial, tornando as obras imensamente extensas. E sem necessidade. Basta atentar na dimensão dos Buddenbrooks, de A Montanha Mágica, da tetralogia José e os seus Irmãos ou do Doutor Fausto. Thomas Mann viveu para a escrita (e da escrita) é certo, foi plenamente um escritor full-time. Mas não é por ser um livro breve que A Morte em Veneza, novela com escassas cem páginas, deixou de ser uma obra notável, com o conteúdo bastante para permitir a Luchino Visconti a realização do célebre filme homónimo.

Nestas Confissões..., a inclusão sucessiva de histórias marginais ao enredo da obra afecta por vezes a estrutura do romance. A descrição dos espécimes do Museu de História Natural é um exemplo disso. Os leitores não estarão circunstancialmente interessados num curso de zoologia. Ocorre também pensar que Thomas Mann tenha querido "encher" voluntariamente os seus livros para os tornar mais extensos, sacrificando, se necessário, a unidade de acção em proveito da dimensão. Mas isso, eu ignoro.

Nada disto invalida, porém, a qualidade da prosa do escritor, considerado um dos mais famosos autores alemães contemporâneos.

A exemplo de outros, também este romance de Thomas Mann foi passado ao cinema, num folhetim televisivo em cinco episódios e com a duração aproximada de cinco horas (1982), dirigido por Bernhard Sinkel. O protagonista é interpretado pelo actor John Moulder-Brown, que fora o arquiduque Otto no filme Ludwig (1973), de Luchino Visconti. O papel do professor Kuckuck é desempenhado pelo famoso Fernando Rey. Nas cenas filmadas em Portugal encontram-se os nossos actores Varela Silva (director de hotel) e Armando Cortez (porteiro). O hotel de Paris onde, segundo o romance, Felix presta serviço é transferido no filme para um hotel em Monte-Carlo.


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