sábado, 5 de outubro de 2024

EL-REI DOM SEBASTIÃO

O escritor António Cândido Franco (ACF) publicou em 2007 A Saga do Rei Menino, que é uma edição revista e aumentada do seu livro Vida de Sebastião, Rei de Portugal (1993), que segundo o autor continha erros grosseiros. Só agora li o primeiro, ignorando, naturalmente, o segundo.

Trata-se de um volumoso livro, quase 400 extensas páginas, que ACF considera uma biografia ou um romance biográfico, mas que o editor preferiu designar romance histórico. Não me parece apropriado qualquer um destes termos, afigurando-se-me que se trata preferencialmente de uma interpretação pessoal da vida de D. Sebastião por parte de ACF.

Antes de mais, importa dizer que o livro está formalmente muito bem escrito. A narrativa acompanha a vida do rei, do nascimento à morte (e aborda mesmo o tempo imediatamente anterior ao seu nascimento e posterior à sua morte) segundo o estabelecido na primeira grande obra erudita sobre D. Sebastião, a biografia devida ao prof. Queiroz Velloso. ACF convoca para essa narrativa as principais figuras da época, portuguesas e estrangeiras, e evidencia a sua vasta cultura geral ao confrontar os acontecimentos do tempo. Mas talvez a preocupação de enfatizar determinados aspectos leve a escusadas repetições. No entanto, a explicação pormenorizada das ligações de parentesco entre a Casa de Áustria e a Casa de Avis proporciona-nos compreender bem a espantosa endogamia estabelecida entre ambas as Casas, estabelecida com finalidades exclusivamente políticas.

Já no que respeita à interpretação dos factos o livro é simplesmente surpreendente. O autor professa uma ilimitada paixão por D. Sebastião, mas certas observações e conclusões são no mínimo controversas e até provocatórias, para não dizer delirantes.

Não cabe aqui, nem tal seria possível, traçar um resumo, mesmo ultra-resumido, da obra. Mas vale a pena deixar algumas notas.

Apesar de uma busca de rigor, ACF comete, por vezes, algumas imprecisões. Cito duas: Na página 116, refere a assembleia para eleição do papa, em que o Cardeal D. Henrique não logrou obter o sólio pontifício, como consistório. Trata-se naturalmente de conclave. Nas páginas 338 e 340, a propósito da batalha de Alcácer-Quibir, refere o nome de Mulei Mohamed quando se trata de Mulei Ahmed. O primeiro tinha morrido na batalha e foi o seu tio Mulei Ahmed que sucedeu ao próprio irmão Mulei Abdelmalique [utilizo a grafia do autor].

É também evidente o ódio que ACF professa pela Casa de Áustria, e em especial por Carlos Quinto. Mas também por sua irmã Catarina e por seu filho Filipe II. E também por D. João III e pelo Cardeal D. Henrique. O autor sustenta a boa convivência existente no Reino entre católicos, muçulmanos e judeus e considera que as imposições espanholas para a sua perseguição e expulsão, que começaram a vigorar brandamente no tempo de D. Manuel I e violentamente com D. João III e com o Cardeal D. Henrique tiveram consequências trágicas. A uniformidade religiosa imposta pelos Habsburgos é um momento negro na história peninsular.

A propósito, ACF procede à descrição detalhada dos autos-de-fé, em que uma parte da Corte (mas não toda) se comprazia e que eram detestados por D. Sebastião. E salienta a actividade perversa da Santa Inquisição, tutelada pelo Cardeal-Infante, depois Cardeal-Rei, que era o Inquisidor-Geral. É particularmente salientado o facto de os acusados não saberem o teor das acusações nem quem os acusava.

Quanto a muitas situações descritas no livro, o autor escreve: «E se não me acreditam não faz mal nenhum. Nada há de tão pouco poético como a verdade; só a mentira é artística. E não me digam que a mentira não pode ser sincera, que a melhor mentira é aquela que fala a verdade a mentir e o melhor mentiroso é aquele que mente com sinceridade. Não há romance, nem sequer conhecimento, fora da mentira, que a mentira, sendo invenção, é o primeiro passo para a imitação e a imitação o fundamento de toda a arte. A arte tem de mentir para deixar o terreno da realidade e se fazer irreal. Além disso, eu sei pouco de verdades, gosto é da prosa espontânea, viva, feita em jejum, dias e dias a fio, e responsabilizo-me mais depressa pelos erros que pelas verdades. E se ser assim torrencial e anárquico é ser mau, então Deus tem alguma coisa de anarquista.» (p. 270)

Sendo toda a obra perpassada por um clima de sensualidade, é estranho que ACF recuse aceitar liminarmente a tese de que D. Sebastião fosse homossexual, hipótese hoje cada vez mais aventada por historiadores e escritores e que já referi em outros escritos. Sobre esse clima, não resisto à tentação de transcrever uma passagem das páginas 185-6: «Ora, em cada touro do Tejo vejo eu o touro primitivo, o touro que morre pelos testículos e dá a vida a tudo o que existe; como em cada moço de forcado vejo eu o corpo esbelto de Mitra. Cada arena onde se correm touros é para mim o universo primordial, a cena primeira onde se representou o drama original da nossa existência. O universo é o palco onde Mitra defronta o ser criado por Ahura-Mazda, como a arena é o estrado onde o toureiro defronta o touro. Se no redondel do universo é o touro que através do seu sangue dá a vida a tudo o que existe, nas arenas do Ribatejo e do Alentejo é o touro que dá vida às planícies e a tudo quanto lá vive. Nesse sentido, uma praça de touros é mais religiosa que uma igreja e a morte de um touro um acto mais sagrado que a Via Sacra de Cristo. Um moço forcado é mais belo que um padre paramentado e uma tourada proporciona mais terror e mais alívio que a lembrança dos passos do Calvário e o sangue da cruz. Uma igreja é um objecto de estética mas uma praça de touros é a filha pródiga do anfiteatro grego, esse recinto sagrado onde os deuses se mascaravam de homens e os homens de deuses. Uma tourada vale uma tragédia de Sófocles e entre o bode grego e o touro ibérico só há uma diferença de grau, não de natureza. O touro aperfeiçoou o bode como a Ibéria mundializou a Grécia. O touro é o animal da cosmogonia universal, do nascimento do novo mundo, como o bode é o bicho da cosmogonia umbilical, a do Mediterrâneo. A escuridão desse animal pertence ao tempo original em que todos os elementos estavam possuídos por uma força geradora. A imagem dessa cosmogonia universal está viva ainda hoje nas terras do Tejo, quando a lezíria ribatejana se liberta das suas águas e o touro se desenha solitário e negro contra o horizonte da terra transtagana. Todos os anos pela Primavera as águas recuam e todos os anos se trava essa luta genesíaca entre os elementos que disputam entre si a vida. Não é só a terra que sai vencedora, é o touro que se ergue real com os seus cornos em forma de crescente, como um planeta acabado de nascer. Tenho visto touros assim viçosos e azuis, entre sobreiros e pombas brancas, palpitantes de sangue e substância, prontos a darem a vida como a terra doirada de Abril.»

Refira-se que D. Sebastião era um entusiasta de touradas, nas quais muitas vezes intervinha.

O autor salienta também a figura de Cristóvão de Távora (1548-1578), que foi colega de estudo, amigo dedicado, estribeiro-mor e finalmente camareiro-mor de D. Sebastião (1554-1578). Íntimo do rei, tentou dissuadi-lo da expedição a África, procurou que se rendesse quando o desastre era certo e morreu na batalha.

Só é possível apreender o pensamento do autor lendo o livro integralmente. Mas transcrevo, da página 333, este trecho: « O que me agrada de sobremaneira na biografia de Sebastião é a sua vocação para a derrota, a compreensão que ele tem de que a vitória é de pouca ou nenhuma importância. Sem a derrota de Alcácer-Quibir, Sebastião teria sido um irrequieto, um generoso ou um tirano, mas em qualquer dos casos ter-lhe-ia sempre faltado a ousada inspiração que o assistiu nos derradeiros momentos da batalha. A derrota da campina de Alcácer foi a licença que o destino lhe deu de ter génio, porque este não é ganhar nem dar, mas a antes criar. Hoje, à distância, convenço-me que a derrota de Alcácer-Quibir teria ainda sido mais funda se a batalha não se tivesse perdido. Há vitórias militares que são pesadas derrotas humanas e há derrotas que dão nobreza e carácter a quem as sofre. Isto devia bastar para responder a António Sérgio, quando ele perguntava, a propósito de Sebastião, convencido da sua razão, que modelo ou que pensamento podia inspirar um homem que só a derrota conhecera. As vitórias são quase sempre uma distracção de superfície, um vento enganador de euforia e arrogância, enquanto as derrotas, exigindo um esforço de concentração e uma consciência de humildade, podem ser o momento da criação.»

Nunca saberemos se D. Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir (4 de Agosto de 1578)!!! Daí o mito do Encoberto. Muitas são as narrativas.

O rei foi enterrado três vezes.  Segundo uns, o corpo despedaçado foi encontrado no campo de batalha e entregue pelo xerife Mulei Ahmed para ser sepultado a 7 de Agosto num terreno de Abraão Sufiane. Três meses depois, num gesto de amabilidade interessada, o sultão ofereceu-o a Filipe II de Espanha que o encaminhou, com sentido de oportunidade para o cardeal-rei D. Henrique. A entrega do corpo e a sua exumação foi feita em Ceuta, tendo sido depositado na capela de Santiago da igreja da Trindade e transportado depois para a capela-mor da Sé. Em Agosto de 1582, já rei de Portugal, Filipe II mandou-o vir para uma das capelas laterais da igreja de Santa Maria de Belém (os Jerónimos) onde ainda hoje está, num túmulo em mármore rosa mandado lavrar em 1682 por D. Pedro II, com a seguinte inscrição: "Conditur hoc tumulo, si vera est fama, Sebastus...". A trasladação teve lugar em 11 de Dezembro de 1584, com grande pompa e circunstância, com a presença do próprio Filipe II e do cardeal-arquiduque Alberto de Áustria, vice-rei de Portugal.

Se fosse efectuado um teste de ADN aos restos conservados na tumba (se é que existem) poderíamos saber se eles pertencem ou não ao filho de Joana de Áustria, de quem se conhece a descrição genética.

Ao longo dos anos apareceram vários indivíduos pretendendo ser o desaparecido rei. 

O primeiro Sebastião apareceu em 1584, em Penamacor. Reuniu adeptos, foi preso pelos espanhóis, julgado e condenado às galés, mas conseguiu evadir-se. Acabou a mendigar no sudoeste francês.

O segundo Sebastião (Mateus Álvares), oriundo dos Açores, apareceu em 1585, sendo aclamado rei nas ruas da Ericeira.  Obteve grande popularidade, tentou organizar um exército, mas foi vencido pelos espanhóis e condenado à forca. 

O terceiro Sebastião surgiu em 1594. Era um jovem pasteleiro, com a cara polvilhada de pó-de-arroz, que se chamava Gabriel de Espinosa e frequentava o Mosteiro de Santa Maria do Madrigal. Apaixonou-se por Ana de Áustria, sobrinha de Filipe II e filha natural de seu meio-irmão D. João de Áustria. Ao saber do facto, o rei de Espanha ficou siderado por tal ocorrência nas suas próprias barbas. O caso tem outros contornos políticos que não cabe aqui desenvolver. O rapaz foi enforcado e a sobrinha encerrada num longínquo convento.

O quarto Sebastião (o calabrês Marco Tulio Catizone) apareceu em Veneza em 1598 e parecia-se fisicamente com o rei. É o pretendente com um caso mais longo e complexo, o assunto durou até Filipe III  e a ele já me referi aqui

O sebastianismo perdura até aos nossos dias. E os portugueses continuam à espera de um D. Sebastião. Muitas figuras têm consubstanciado essa figura mítica, como Sidónio Pais, que Fernando Pessoa notavelmente evocou numa "ode".

Muito mais haveria a dizer sobre o livro, que sobre D. Sebastião espero poder continuar a escrever, a propósito das outras obras que possuo na minha biblioteca.




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