segunda-feira, 14 de outubro de 2024

D. SEBASTIÃO, UMA VISÃO ESPANHOLA

Li D. Sebastião, Rei de Portugal, de Antonio Villacorta Baños-García, publicado originalmente Don Sebastián, em 2004, e na tradução portuguesa em 2006. Trata-se de uma abordagem que configura uma interpretação diametralmente oposta (ou quase) à desenvolvida no livro que anteriormente comentámos, A Saga do Rei Menino, de António Cândido Franco.

É um livro muito bem escrito, bem ordenado, especialmente documentado, que se propõe uma visão realista de D. Sebastião no contexto em que viveu, sem os delírios interpretativos de António Cândido Franco, pese embora a admiração, diria mesmo paixão, que este nutre pelo Desejado.

A obra segue naturalmente a cronologia dos factos, pelo que não repetiremos, nem tal seria possível, os eventos maiores da vida do Rei mas tão só anotaremos alguns aspectos salientados por Baños-García que nos pareceram interessantes.

O autor alude (p. 28) a um eventual relacionamento sentimental de D. Joana, irmã de Filipe II e mãe de D. Sebastião, com Francisco de Borja, Duque de Gandía e mais tarde Superior Geral da Companhia de Jesus (e, depois, até santo), embora considere que tal tem poucos vislumbres de verosimilhança.

O imperador Carlos Quinto, antes da sua decadência física, gozara sem temperança dos apetites carnais. Na p. 33: «escreveu-se que não despedia mulher sem a ter gozado três vezes.»

D. João de Áustria, era filho de Carlos Quinto e de Barbara Blomberg, talvez lavadeira ou cantora, talvez filha de um mercador de Ratisbona, e nasceu em 1547. Chamava-se inicialmente Jerónimo, porque o imperador casou Barbara com um soldado alemão de cavalaria chamado Jerónimo Pyramo Kegell. Foi educado em Espanha, ignorando no princípio a sua filiação, pela família de D. Luís Quijada, fidelíssimo servidor da família real.

Carlos Quinto morreu no Mosteiro de Yuste, para onde se havia retirado, em 21 de Setembro de 1558. Não assistiram ao passamento nem sua filha D. Joana, nem seu filho Filipe II, mas apenas o arcebispo de Toledo, alguns frades e quatro fidalgos. Terá dito antes de expirar: "Já é tempo". Não é feita qualquer referência no livro ao facto hoje muito conhecido que, meses antes de morrer, teria mandado celebrar e assistido às suas próprias exéquias.

D. João III morreu subitamente em 11 de Junho de 1557, portanto um ano antes do imperador.

É recorrente no livro a referência à vontade de Carlos Quinto no sentido de D. Sebastião não se casar com uma princesa francesa mas antes espanhola, para manter os casamentos da família na Península. E também o desejo de que o infante D. Carlos, seu neto (na altura tal situação ainda era concebível) pudesse, por morte de D. Sebastião sem filhos, herdar o trono de Portugal.

Tendo ficado D. Catarina como regente depois da morte de D. João III, em cumprimento de um "falso" testamento do marido, tinha D. Sebastião três anos, foi-lhe dado como aio o velho D. Aleixo de Meneses  e como mestre o frade jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, proposto pelo cardeal D. Henrique. D. Catarina desejara inicialmente frei Luís de Granada, que residia então em Portugal, ou na sua falta frei Luís de Montoya. Como ajudante e como professor dos jovens fidalgos do paço foram nomeados os jesuítas padre Amador Rebelo e padre Gaspar Maurício. Frei Luís de Montoya acabou por ficar como confessor de D. Sebastião. A vontade de D. Catarina era de que junto do neto só estivessem castelhanos. A regência de D. Catarina deveria durar até o neto ter vinte anos. Quando o cardeal D. Henrique assumiu mais tarde a regência a idade foi diminuída para catorze anos. Mais tarde, o padre Câmara substituiu Montoya como confessor, acumulando as funções de confessor e mestre.

D. Catarina fingiu uma vez tentar abandonar a regência, mas à segunda vez retirou-se mesmo, conforme estabelecido pelas Cortes em 23 de Dezembro de 1562, ficando D. Henrique como regente. As Cortes votaram então alguns Capítulos sobre o rei e o Reino. O Capítulo nº 1 estabelecia: «Que El-Rei Nosso Senhor tanto que for de nove anos se tire de entre mulheres e se entregue aos homens.» Talvez seja por causa deste Capítulo que alguns historiadores contemporâneos afirmam que esta determinação foi bem cumprida, dada a evidente misoginia do rei. E outros até vão mais além, mas é assunto que já abordámos em tempos.

Também é referida no livro a excessiva protecção do cardeal D. Henrique à Companhia de Jesus. 

Ao contrário da opinião de António Cândido Franco, D. Sebastião até gostava de assistir a autos-de-fé. «D. Sebastião ouvia missa diariamente e comungava com muita frequência. [...] Desde muito pequeno insistia em querer jejuar na Quaresma e fazer sacrifícios e privações por amor de Deus. [...] Assistia com muita satisfação aos Autos do Santo Ofício. Uma vez, depois de comungar, ficou a rezar diante de um crucifixo.» (p. 68)

Sobre a doença de D. Sebastião, escreve o autor, sintetizando: « 1) A doença surge quando D. Sebastião tem 11 anos, o que pode coincidir com o início da puberdade (que, nesse caso, seria uma puberdade precoce). Isto é, momentos coincidentes ou imediatamente posteriores à aptidão generativa. 2) A doença está qualificada em função dos sintomas que tem D. Sebastião, como uma espermatorreia, cujo fluxo aumenta com a actividade física e os movimentos bruscos e diminui com a passividade ou o repouso. 3) A circunstância provoca incertezas. Considera-se que é impotente e duvida-se da sua capacidade de procriação. Não se põe em dúvida que a doença tem sequelas que o afectariam numa suposta vida marital. 4) A origem do seu mal deve atribuir-se provavelmente, mais do que a uma circunstância acidental, às disfunções biológicas de origem genética, por razões de consanguinidade. 5) Atribuem-se-lhe outras doenças, como a epilepsia ou a esquizofrenia, de que padeceram alguns dos seus antepassados, e a diabetes, de que o pai sofria, mas com escasso fundamento.» (pp. 92-3)

Quando D. Catarina desejou (ou simulou) regressar a Espanha para se colocar sob o amparo de seu sobrinho Filipe II, este enviou a Lisboa, com outro pretexto, Francisco de Borja e o cardeal Alexandrino, legado do papa, para a demover dessa intenção.

D. Sebastião procurou tanto quanto pôde esconder a sua doença, que o envergonhava e era objecto de troça nas tabernas, de tal modo que os historiadores ignoraram geralmente o facto durante muito tempo. Só mais recentemente o assunto começou a ser devidamente debatido.

Depois do seu regresso a Espanha, pela morte do marido, D. Joana de Áustria passou a viver no Alcázar de Madrid, no Escorial, em Aranjuez ou no seu Mosteiro das Descalças Reais, que fundara. Mas, viúva, parece que aceitou a sugestão do irmão, Filipe II, para se casar com o sobrinho, o "díscolo e indómito príncipe Carlos", herdeiro do trono espanhol. D. Joana tinha dez anos mais do que o sobrinho, que tinha crescido ao seu lado antes de vir para Portugal e que ela muito acarinhara quando ele era criança. Mas o rapaz vi-a antes como uma mãe. «Tê-lo-á desejado realmente D. Joana? Esteve no seu íntimo tornar-se rainha de Espanha? Foi sua ambição secreta? Assim o manifestam alguns historiadores, mas é pouco provável.» (p. 109) Obviamente que o casamento era uma impossibilidade, atendendo ao desvairamento do infante D. Carlos, que Filipe II acabaria por prender e manter quase incomunicável até à morte.

«Pese embora a participação activa de D. Joana de Áustria nos assuntos relevantes da corte, pouco a pouco ia-se distanciando da actividade pública e aproximando-se mais do seu mosteiro das Descalças Reais, o remanso espiritual que acolheu os seus últimos anos de vida. A amizade com Teresa de Ávila, que chegou a estar vários dias no seu mosteiro, fá-la-ia contagiar-se com esse estado de sublimação que tanto caracterizava a santa caminheira. A vinculação da mística doutora e Joana de Áustria é assunto pouco estudado, que a maior parte dos historiadores omitem ou mencionam rapidamente.» (p. 127)

«Mas permanecem algumas incógnitas sobre a sua vida [de D. Joana]. Uma, muito curiosa: terá professado em segredo na Ordem dos Jesuítas que tanto admirava? Alguns historiadores antigos afirmam-no nas entrelinhas. Hoje não se pode negar esse facto. Pese embora a estranheza que isso provoca, dado o carácter masculino da Companhia, só pode justificar-se por singular privilégio concedido pelo Geral da Ordem. Com a aquiescência do papado? Todo os indícios assim o confirmam. Parece ter sido em 1555, com dispensa pontifícia e do próprio Inácio de Loiola, que fez votos na Companhia.» (p. 130)

Na sua alucinação religiosa e "patriótica" (que de verdadeiramente patriótico nada tinha) mas que era a consequência de um espírito perturbado, D. Sebastião, em 1569, mandou, no Mosteiro de Alcobaça, abrir, perante a estupefacção geral, os túmulos de D. Afonso II e de D. Afonso III e de D. Urraca e de D. Beatriz. E só não se abriram mais túmulos por evidentes dificuldades técnicas, laboriosamente explicadas ao monarca. E em 1570 ordenou, no Mosteiro da Batalha, que se abrisse o túmulo de D. João II e, como cadáver se mantivesse incorrupto, ordenou que ele fosse retirado do caixão e fosse colocado na posição vertical. E mais, apesar da perplexidade geral e grande confusão instalada, mandou que o jovem D. Jorge de Lencastre, filho do duque de Aveiro e descendente daquele rei, beijasse a mão do cadáver. Parecia a visita de um jovem louco. 

Mas D. Sebastião, mau grado as suas extravagâncias, continuava rodeado de um grupo de aduladores, já que se irritava com qualquer crítica, nomeadamente as de D. Catarina e do cardeal D. Henrique. Entre os companheiros mais próximos e também jovens (o rei gostava de jovens) encontravam-se Álvaro de Castro, Cristóvão de Távora, Luís da Silva e Manuel Quaresma Barreto, que haveriam de acompanhá-lo na trágica jornada de `Alcácer-Quibir. 

No norte de África, Abd al-Malik [utilizo a grafia do autor] destronara seu sobrinho Mohamed (Abu Abd Allah al-Mutawakkil) que era filho ilegítimo de seu irmão Abd Allah al-Galib. É verdade que Abd al-Malik, que estivera anteriormente em Argel e gozava do apoio dos turcos, até tinha boas relações com Filipe II e não tinha propriamente intenções de atacar a Península. Mas pensou D. Sebastião encetar uma cruzada em defesa da fé. E ninguém lhe tirou isso da cabeça. Assim resolveu aliar-se a Mohamed para conquistar Larache. Não repugnava a D. Sebastião a aliança com Mohamed (um infiel) desde que pudesse satisfazer a sua vaidade de derrotar Abd al-Malik e nem que para isso fosse necessário receber a ajuda de mercenários protestantes da Flandres e lançar pesados impostos em Portugal e até conseguir do Papa a suspensão de certos severidades que pesavam sobre os cristãos-novos desde que eles contribuíssem financeiramente para a expedição.

Para obter o apoio de Filipe II, D. Sebastião insistiu em se reunir com ele. O rei de Espanha tentou esquivar-se mas acabou por aceitar reunir-se com o sobrinho em Guadalupe, em 1576. Foi a primeira e única vez em que se encontraram. Assim, Filipe II deslocou-se ao célebre Mosteiro, com impressionante comitiva, para mostrar quanto poderoso monarca era, chegando dois dias antes para inspeccionar os aposentos onde ficaria D. Sebastião e o seu numeroso séquito. Filipe percorreu todos os quartos, para verificar se tudo estava em ordem e ele mesmo os distribuiu pelos futuros ocupantes colocando os respectivos nomes nas portas. Este procedimento recorda-me Salazar que, normalmente, antes de recepções importantes ou banquetes de Estado visitava sempre na véspera os locais e examinava os mais pequenos pormenores. Uma vez, creio que no Palácio da Ajuda, antes de um banquete, constatou que a belíssima toalha de mesa tinha sido colocada do avesso. 

Houve várias conversas de Filipe II com D. Sebastião, a sós (de que nada sabemos) ou com acompanhantes. O pedido do sobrinho referia-se especialmente ao apoio de Filipe à expedição a África, a que este acedeu parcialmente, e à aprovação do seu casamento com a infanta Isabel Clara Eugénia, então com 10 anos e filha de Filipe, a que este acedeu com ambiguidade, remetendo para a altura própria a decisão final. O comportamento prudente de Filipe II, esquivando-se o mais que pôde dos delírios do sobrinho, provocou neste a maior irritação, quase que perdendo o controlo. 

Como todos sabem, a batalha de Alcácer Quibir teve lugar em 4 de Agosto de 1578, com o resultado largamente previsto pela maioria dos intervenientes. Para evitar o confronto, Abd al-Malik chegou a propor a D. Sebastião a entrega pura e simples de Larache mas este recusou porque queria combatê-lo pessoalmente. Tal não aconteceu. Abd al-Malik encontrava-se doente (quiçá envenenado) e morreu durante a batalha sendo escondido numa liteira pelos seus homens. Mohamed, fugindo das tropas do tio, morreu afogado num rio. E D. Sebastião morreu igualmente. Esta peleja ficou conhecida como a batalha dos Três Reis.

O corpo de D. Sebastião viria a ser encontrado no dia seguinte e identificado pelos fidalgos prisioneiros detidos. O novo sultão, Muley Ahmed, irmão de Abd al-Malik, ordenou que fosse enterrado em casa de Abraham Suffin, alcaide de Alcácer-Quibir. Para agradar a Fiipe II, Muley Ahmed entregou o corpo de D. Sebastião (auto de entrega datado de 10 de Dezembro de 1578) que foi depositado na capela de S. Tiago da igreja da Trindade, em Ceuta, e depois transferido para a Sé da mesma cidade. O corpo foi mais tarde trazido para Portugal, atravessando o Algarve e o Alentejo. Chegou a Lisboa em 11 de Dezembro de 1582, onde era aguardado por Filipe II e pelo cardeal-arquiduque Alberto de Áustria, sobrinho de Filipe, mais tarde 2º vice-rei de Portugal e que haveria de casar, ironia do destino, com a prometida a D. Sebastião, a infanta Isabel Clara Eugénia, depois de obtida a dispensa papal do estado religioso. O corpo seria depositado numa das capelas laterais da igreja de Santa Maria de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos. Em 1695, D. Pedro II procederia à renovação do sarcófago.

Acrescente-se, por curiosidade, que o jovem Muley Xeque, filho de Mohamed, então com 10 anos, mas que já combatia ao lado do pai, salvou-se da batalha e viria a ser uma personagem muito conhecida na sociedade castelhana, acabando por absorver a cultura de Espanha. Viveu em Lisboa, Andaluzia e Madrid, esteve na Flandres e conviveu com personagens da época, como Lope de Vega que lhe dedicou um soneto. O próprio Filipe II apadrinhou a sua conversão à fé cristã acompanhado da filha, Isabel Clara Eugénia, num acto socialmente muito celebrado no Escorial e aceitou que, a partir daí, o afilhado usasse o seu próprio nome: Filipe (Filipe de África). Depois da morte do soberano foi para Vigevano, Itália, onde acabou os seus dias em estado de penúria, ajudado pelo bispo da cidade.

Ficam aqui registados alguns aspectos da conhecida história de D. Sebastião. À medida que for revisitando os livros que possuo sobre o monarca irei consignando as minhas impressões sobre um ou outro acontecimento, tentando evitar repetir-me, já que os factos principais constam de todas as biografias.

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