sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

AUTOBIOGRAFIA DE PEDRO CANAVARRO




Li, esta semana, o recém-publicado livro de Pedro Canavarro, A Casa de Pedro, que reconstitui pormenorizadamente o seu percurso pessoal e profissional, desde os mais tenros anos até aos dias de hoje.

O autor, que conta 82 anos, terá certamente uma memória privilegiada, pois a evocação que faz de situações ocorridas há muitas décadas, minuciosamente descritas, chegaria a causar-me inveja, se fosse um sentimento que eu cultivasse. Há uma outra hipótese: Pedro Canavarro terá alimentado um diário, registando, desde muito novo, os factos que menciona. Acresce que o livro se encontra recheado de fotografias, cartas, poemas e muito outro material, o que indicia que o autor coleccionou os elementos essenciais para publicar, já na casa dos oitenta, o seu livro de memórias.


Pedro Canavarro e Eu - Teatro Primeiro Acto (1983)

Conheci pessoalmente Pedro Canavarro em 1983, aquando da XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura do Conselho da Europa, de que ele era Comissário-Geral, sendo eu director do Teatro Primeiro Acto, onde organizei, com ele, um ciclo de colóquios sobre aquele evento, com a participação de todos os colaboradores da exposição. E dele guardo a melhor impressão como pessoa e como homem de cultura. Já lá vão quase quarenta anos, e desde então poucas vezes nos temos cruzado, ainda que tenha acompanhado a sua actividade, nomeadamente quando foi presidente do Partido Renovador Democrático (PRD), criado por inspiração do general Ramalho Eanes.

Regressando ao livro, de quase 500 páginas, ele encontra-se dividido em oito capítulos, reportados a lugares seleccionados e com os quais o autor se relacionou, com enquadramento nas diferentes etapas da sua vida.

Assim, temos:

- O Jardim: da Infância à Flor de Laranjeira (1937-1966)
- O Terraço: dos Amores-Perfeitos ao Império do Sol Nascente ( 1966-1968)
- A Biblioteca: do Saber ao Mal-me-quer, Bem-me-quer de Abril (1968-1979)
- A Casa de Jantar: Do Poder à Dança das Cadeiras (1980-1989)
- Salas: Vivências de Tudo e de Nada (1989-1999)
- Sala Passos Manuel: As Gerações Passo a Passo (Séculos XVI-XXI)
- Sala do Piano: Da Casa do Porco à Casa Museu (2000-2017)
- O Quarto: Sol-Pôr (2018-......)

[Não sei se intencionalmente, o livro não tem índice dos capítulos]

Não vou descrever aqui a trajectória de Pedro Manuel Guedes de Passos Canavarro, trineto de Passos Manuel e aparentado com algumas ilustres famílias portuguesas, mas importa salientar alguns aspectos desta sua autobiografia.

Em primeiro lugar os anos de infância e juventude, os pais, a ligação à velha Casa de Santarém (construída por Passos Manuel), hoje transformada por ele em Casa-Museu, o tempo em que cursou, em Lisboa, as Faculdades (Direito e depois Letras).

A seguir, o casamento, a ida para Tóquio como primeiro Leitor de português numa das universidades da capital nipónica, as viagens ao estrangeiro, o interesse pela Arte.

Depois, os filhos, o divórcio, a assunção da homossexualidade e os primeiros companheiros de vida.

Um momento relevante foi o exercício das funções de Comissário-Geral da XVII Exposição, uma realização de envergadura que, dadas as circunstâncias da minha actividade, acompanhei de perto. O espaço reservado pelo autor à descrição detalhada de como tudo aconteceu relativamente a este evento talvez seja excessivo para o leitor comum, mas será, para o autor, o indelével registo de um tempo.


Pedro Canavarro com Yasser Arafat - Tunis, 1993

Também importante a sua experiência como presidente do Partido Renovador Democrático e deputado ao Parlamento Europeu, ainda que a vida político-partidária tenha sido, segundo o autor, em certa medida decepcionante. Mas a condição de eurodeputado proporcionou-lhe muitas viagens (Canavarro teve o privilégio de muito viajar durante toda a sua vida), entre as quais uma ao Norte de África, para reuniões na Argélia (então com recolher obrigatório e onde ficou em casa do nosso embaixador Ruy de Brito e Cunha) e na Tunísia, país que achou com mentalidade muito mais aberta. Em Tunis, teve ocasião de encontrar Yasser Arafat (que aí estava exilado), com quem teve uma interessante conversa, considerada mesmo íntima. Também em Tunis, durante uma conferência de imprensa ministerial, revela-nos Pedro Canavarro um curioso episódio (p. 363). Trocando olhares cúmplices com um belo e jovem agente policial da segurança, abandonou por algum tempo a mesa da sessão onde se encontrava e dirigiu-se para o átrio do hotel para onde o rapaz logo a seguir se dirigiu. Aí puderam depois conversar em privado, num discreto recanto do hall, como era, aliás, intenção de ambos. [A Tunísia é um país de inesperados e frutuosos encontros e os tunisinos considerados como dos mais simpáticos e amáveis árabes do Norte de África (não sei se hoje ainda é exactamente assim), razão porque, antes da revolução da "primavera árabe", a sua taxa de turismo aumentava de ano para ano. André Gide, já há um século, escreveu sobre as virtudes do povo tunisino e Michel Foucault chegou a ser professor na Universidade de Tunis.]

Também durante a permanência em Estrasburgo e Bruxelas, Canavarro visitou váris vezes a Holanda e a Alemanha, especialmente Bona, onde era nosso embaixador o seu amigo António Pinto da França. Refira-se também a estada de Canavarro na Grécia, onde teve a oportunidade especial de ficar alguns dias no Monte Athos, local de mosteiros bizantinos apenas acessível por mar, que tem um privilégio de extraterritorialidade (depende do Patriarca de Constantinopla)  e onde só podem penetrar homens. «Não é permitido o acesso sequer a uma galinha» (p. 370)

De regresso a Portugal, o autor resolveu fixar-se em Santarém, dedicando-se à Associação de Defesa do Património e ao Círculo Cultural Scalabitano. E também à Casa da Europa do Ribatejo. Refere também um bar que decidiu abrir em Santarém mas que foi obrigado a encerrar tempos depois, devido ao grande número de drogados que o frequentavam e começavam a perturbar a tranquilidade do lugar. Era uma época em que proliferavam nas ruas muitos drogados.

Em 1999, utilizando parte da sua fortuna, entretanto já reduzida por motivo de sucessivas partilhas mas ainda significativa, Pedro Canavarro decide constituir uma fundação para perpetuar a sua experiência de vida e a lembrança e o património restante da família. Ela será oficializada em 2000, com a designação Fundação Passos Canavarro - Arte, Ciência e Democracia. Ficará instalada na velha casa de Santarém, onde viveu Passos Manuel e por onde passou Almeida Garrett, doravante uma Casa-Museu, albergando o rico espólio familiar.

Em 2007, Canavarro celebrou o seu 70º aniversário,  com um jantar íntimo de família, antecipado por um almoço com os antigos empregados da casa e seus familiares. E, logo a seguir escreve: «No dia seguinte, partimos os dois para um local mágico, Veneza, onde não ia há mais de três décadas, em função de uma história, já relatada nos anos 70, deliberando, então, não voltar a essa cidade, já que a havia visitado, embora sozinho, numa atitude tão grande e intensa de amizade platónica. Após ver e ouvir, no Fenice, a "Morte em Veneza", de Benjamin Britten, jurei não mais voltar, a não ser que fosse de uma forma completamente distinta, ou seja, num acto de amor. Só uma tal atitude é que podia ultrapassar todo esse passado de amizade e morte.» (p. 443). Mas Canavarro não diz com quem foi, por distracção ou omissão.

O autor refere também insistências junto da Academia Nacional de Belas Artes, no sentido de motivar o interesse desta na trasladação de seu trisavô, Passos Manuel, para o Panteão Nacional. De facto, não faz o mínimo sentido que Passos Manuel, fundador desta Academia e do Panteão Nacional, não permaneça ali sepultado, quando já lá se encontram, com muito menos, ou nenhuma, justificação Humberto Delgado, Amália Rodrigues, Eusébio e Sophia de Mello Breyner.

A Casa-Museu de Santarém foi inaugurada em 14 de Maio de 2010, com a presença do Secretário de Estado da Cultura, Elísio Summavielle e de outras personalidades. 

O livro termina com a reflexão do autor sobre o Quarto onde nasceu e onde espera morrer. Oportunidade para relembrar a vida já passada, meditando junto ao Cristo outrora oferecido por sua mãe.




A Casa de Pedro é um livro muito interessante, ainda que porventura demasiado extenso para o leitor comum. Compreendo bem a preocupação de Pedro Canavarro em registar com pormenor os passos da sua já longa vida, uma vida que se pode considerar bem vivida, recheada de sensações e aventuras, pontuada por inúmeras visitas ao estrangeiro e pelo conhecimento de algumas das mais importantes figuras suas contemporâneas. Uma vida vivida na cultura. Mas creio que tal detalhe é inimigo de uma abrangência global mais útil para a compreensão da sua actividade. A páginas tantas, o leitor fica um pouco perdido nos detalhes que o autor refere. Eu sei que se trata de uma autobiografia, mas que por vezes releva mais de um diário e, no que à vida pública respeita, de uma espécie de relatório, talvez deformação provocada por tudo o que Pedro Canavarro teve de escrever a propósito dos muitos lugares que desempenhou.

São relevantes os factos que menciona relativamente à sua vida privada, que deve ter sido muito rica, mas neste campo as evocações são escassas. Poderia o livro resultar mais estimulante se fosse dado um lugar de maior importância ao império das paixões e dos sentidos (Canavarro é um apaixonado do Japão) em detrimento das minúcias da vida pública.

Mas há que reconhecer uma certa coragem ao revelar alguns dos seus episódios homo-afectivos, embora o faça sendo já octogenário, dado que a nossa sociedade, apesar das aparências, é ainda profundamente conservadora. Recordo, a propósito, que o grande escritor Julien Green, que manteve um diário desde os seus 20 anos, e que morreu, em 1998, prestes a concluir os 98 anos, apenas permitiu a publicação em vida das partes expurgadas do seu Journal, e que as edições sucessivas, a cargo dos herdeiros, mantiveram essa mesma reserva. Só em finais do ano passado foi editada, pela primeira vez, a versão integral dos primeiros 20 anos desse diário, em que são mencionadas, com o pormenor adequado, todas as aventuras sexuais do escritor, nos mais inimagináveis lugares e com os mais improváveis parceiros, bem como as suas conversas com os grandes escritores franceses seus contemporâneos, maxime com André Gide, quase todos eles também homossexuais.

Terminada a leitura, colhi a impressão de que a narrativa se encontra mais bem estruturada no que consideraria a primeira metade do livro, o que contribui para sustentar a minha convicção que as páginas relativas aos primeiros tempos foram escritas em ocasião anterior ao resto do livro. Numa segunda metade, há por vezes alguma confusão cronológica e desnecessárias repetições, o que, todavia, não retira o valor da obra.


REGISTA-SE QUE PEDRO CANAVARRO UTILIZA A VERDADEIRA ORTOGRAFIA PORTUGUESA, NÃO SACRIFICANDO NO ALTAR DO INFAME ACORDO ORTOGRÁFICO 90, PERPETRADO ESPECIALMENTE POR MALACA CASTELEIRO E QUE CONTOU COM A CUMPLICIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA E DO GOVERNO PARA A SUA PROMULGAÇÃO E RATIFICAÇÃO.

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente recensão,que desperta o interesse pela aquisição e leitura da obra,apesar das limitações referidas. E a coragem do depoimento, evidente na nossa ainda espiritualmente reumática sociedade, é de saudar. Só não concordo com o autor do blog quando inclui Sophia na lista dos indignos do Panteão. Está lá muito bem, melhor que o Guerra Junqueiro,por exemplo...