sábado, 9 de junho de 2018

AMORES MASCULINOS NA HISTÓRIA





O historiador francês Michel Larivière, um dos grandes especialistas da História da Homossexualidade, autor de uma obra vasta e erudita, publicou há tempos Les Amours masculines de nos grands hommes, onde descreve, apoiado em numerosa bibliografia, os retratos de algumas das mais célebres figuras homossexuais e bissexuais ao longo dos séculos, tantos quanto o recuo do tempo o permite.

Para o efeito, Michel Larivière não só traça o perfil das personalidades seleccionadas, apenas algumas dezenas entre os milhares que deveriam ser registados, como refere os nomes dos seus amantes e como podem as ligações amorosas facilitar aos mais novos (e belos) carreiras verdadeiramente meteóricas (nem sempre acompanhadas dos méritos requeridos) e até a intervenção nos assuntos políticos dos seus países.

Livro sério, peca todavia pelas omissões (não figura, por exemplo, um único português!) e pelo eurocentrismo (os retratados são praticamente todos europeus), mas também seria difícil alargar o espectro da investigação num livro de pouco mais de 400 páginas. Compreende-se que uma obra desta natureza obrigue a uma selecção rigorosa, pois "são muitos os chamados mas poucos os escolhidos". Aliás, Michel Larivière publicara já, em 1997, um livro mais abrangente, Homosexuels et bisexuels célèbres, prefaciado por Pierre Bergé e ilustrado por Jean Cocteau, uma espécie de dicionário, este com mais de 500 entradas, mas onde o autor consagra aos biografados apenas algumas dezenas de linhas.





Tratando da mesma matéria, existem outras obras, em língua francesa e inglesa, editadas nos últimos anos. Porém, Larivière tem a virtude de ser conciso e preciso, e os seus livros permitem uma consulta rápida e acessível. 

As pessoas mencionadas são, na sua maioria, conhecidas do grande público, embora surjam algumas surpresas para os menos esclarecidos.  Entre os citados, figuram Alexandre, o Grande, Júlio César, o imperador Adriano, Ricardo Coração de Leão, Eduardo II de Inglaterra, François Villon, Leonardo da Vinci, Erasmo, Miguel Ângelo, Solimão, o Magnífico, Cellini, Montaigne, Cervantes, Henrique III de França, Shakespeare, Caravaggio, Luís XIII, Cyrano de Bergerac, Molière, Lully, Guilherme III de Orange, Pedro I, o Grande da Rússia, Frederico II, o Grande da Prússia, Goethe, Luís XVIII, Lord Byron, Schubert, Balzac, Hans Christian Andersen, Chopin, Flaubert, Tchaikovsky, Verlaine, Rimbaud, Luís II da Baviera, Pierre Loti, Oscar Wilde, Marechal Lyautey, Gide, Proust, Max Jacob, Lawrence da Arábia, Cocteau, Eduardo VIII de Inglaterra, Montherlant, Aragon, Lorca, Poulenc, Julien Green, Jean Genet, Tennessee Williams, William Burroughs, Yukio Mishima, Michel Foucault, Maurice Béjart. 

De acordo com a tradição, o autor menciona apenas as pessoas já falecidas (ou aquelas que façam em vida o seu coming out, o que aqui não se verifica). Noto, ao acaso, duas omissões flagrantes: os escritores franceses François Mauriac e Roland Barthes. E também Roger Peyrefitte, homem de extraordinária erudição que dedicou uma vida a escrever romances sobre temas homossexuais, como Les Amitiés particulières. E a estrondosa ausência de Thomas Mann. Dos incluídos menos conhecidos como amantes do sexo masculino figuram Beethoven, o marechal Junot e Jules Verne. O mundo do teatro e do cinema está sub-representado, ou mesmo ausente: os homens de teatro referidos estão na sua qualidade de dramaturgos.

Interessante a menção a Sir Roger Casement (1864-1916), que foi cônsul da Grã-Bretanha em Angola e Moçambique e depois em Portugal e no Brasil. Casement anotava todas as suas relações com os rapazes. Larivière transcreve algumas linhas do seu diário «Londres: Arthur pour 11 schillings. À Funchal: Agostino, très joli, sexe énorme. À Luanda: Mawuki, a un joli sexe énorme, À Luanda: Mawuki, terriblement actif. À Rio: poussée très profonde de Polpito. São Paulo: Antonio, emmanché profond. Retour à Londres: Albert, 15 ans et demi, 10 schillings. Funchal: Carlos, 17 ans, couilles splendides, sexe très long et mince...».

O autor faz uma rápida introdução à história da homossexualidade, referindo não só as bem conhecidas Grécia Antiga e Roma, mas a China, a Índia, o Japão e a Oceânia, e salientando também o anátema de Moisés, que condicionaria desde há milhares de anos as relações same-sex dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos. Evoca também a censura às referências à actividade sexual de muitos protagonistas célebres, caso de Villon, Miguel Ângelo, Shakespeare, Cellini, Montaigne, Balzac, etc. que levaram mesmo à amputação de algumas das suas obras, só reconstituídas no presente graças à descoberta de manuscritos originais. Mas para lá da censura, existiu igualmente a auto-censura. Muitos escritores só autorizaram a publicação das suas obras homossexuais para depois da sua morte: Umberto Saba, E.M. Forster, Roger Martin du Gard. Até Cocteau publicou, anonimamente, as primeiras edições do Livre blanc. E Proust, na Recherche, trocou o sexo a muitas das suas personagens, tal como Montherlant, em Les Jeunes filles.

Mesmo hoje, apesar da evolução dos costumes, permanece uma evidente censura. Quando, em obra anterior, Larivière evocou a homossexualidade de Mustafa Kemal Atatürk, fundador da Turquia moderna, foi atacado por um jornal de Istanbul e impedido de voltar à Turquia. [E, recordo-me eu, de que o filme recente (2004) de Oliver Stone, sobre Alexandre, o Grande levou a um protesto formal dos advogados gregos]. Em tempos da União Soviética, o famoso cineasta Eisenstein foi obrigado a escolher entre o casamento ou o exílio e o cientista inglês Alan Turing, que decifrou os códigos secretos das comunicações nazis, permitindo a vitória da Grã-Bretanha, foi sujeito a castração em 1952 (!?!), tendo-se suicidado em 1954. A Jean Moulin, o célebre resistente francês, cujas cinzas, por ordem de De Gaulle, repousam no Panthéon, foram-lhe atribuídas falsas ligações femininas, e só a recente peça de Jean-Marie Besset, Évangile, ousou abordar o tema da sua homossexualidade. E quando morreu o extraordinário poeta e romancista comunista Louis Aragon (1982), já viúvo de Elsa Triolet e por isso homossexual às claras, não houve uma palavra sobre os seus costumes em toda a imprensa francesa, apesar de ter constituído herdeiro o seu último amante, o poeta Jean Ristat.

Note-se que as personagens em apreço não foram todas, como acontece em geral na vida, exclusivamente homossexuais, muitas delas casaram e tiveram filhos, mas a sua inclinação predominante foram os homens, ou mais propriamente os rapazes, e as suas relações femininas foram mais por questões sociais, ou mesmo vitais, do que por desejo do sexo oposto.

Trata-se de assunto inesgotável, longo que foi o tempo em que esteve silenciado pelos poderes religiosos e profanos.

Vasto programa para tão curto espaço. Mas um livro não é propriamente uma lista telefónica. Nesta matéria quase o poderia ser. Acrescente-se que Michel Larivière, para colmatar o número reduzido de pessoas biografadas no livro, inclui no fim do volume, em anexo, uma lista compacta de homossexuais e bissexuais, incluindo milhares de nomes (não os contei), ordenados por ordem cronológica de nascimento, desde os faraós Neferkare II (cerca de 2000 AC) e Akhenaton (cerca de 1300 AC) até ao escritor Gustave Dustan (1956). Por curiosidade, perscrutei o século XIX e encontrei os portugueses Fernando Pessoa e António Botto. Nem tudo está perdido! Suponho que a leitura atenta desta lista, cuja autenticidade foi confirmada socorrendo-se o autor de declarações dos próprios, das suas obras, dos seus biógrafos, das referências dos historiadores, de testemunhos fidedignos, e muitas vezes dos arquivos nacionais, fará estremecer as almas mais sensíveis!

Oportunamente, regressaremos ao tema.

2 comentários:

Zephyrus disse...

O que une Ricardo Coracao de Leao, Leonardo da Vinci, Miguel Angelo, Shakespeare, Luis de Camoes, Goethe ou Fernando Pessoa? Fica o convite a reflexao sobre "tal misterio".

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Não quererá Zephyrus deixar aqui a sua interpretação?