O nº 5 (Maio 2018) do "Nouveau Magazine Littéraire" é parcialmente dedicado à Europa. Além do texto que transcrevemos em parte no post anterior, publicamos agora, em tradução minha, para facilitar a leitura de quem não domina perfeitamente o francês, o artigo "Notre Katrina", do escritor e filósofo espanhol Paul B. Preciado.
NOTRE KATRINA
«Vivi em Atenas os dois últimos anos, sem o que ficaria provavelmente como a maioria dos meus concidadãos europeus, indiferente à brutalidade das políticas implementadas pela União Europeia no país helénico. Contudo, se quisermos compreender o futuro deste monstro humanista e bem-pensante que é a Europa, é preciso prestar atenção ao que se passa na Grécia. Foi aqui que a partir de 2015 foi conduzida, com toda a impunidade, a primeira experiência de "repressão democrática" em grande escala no seio da União.
Da mesma forma que depois da guerra fria o Chile serviu de laboratório aos "Chicago boys" para experimentar a implantação do neoliberalismo, a Grécia é hoje o campo de jogos dos que se poderiam chamar os "deutsche Jungs", em que se testam as modalidades de uma segunda volta do neoliberalismo, num contexto geopolítico pós-colonial inédito, no seio do qual os limites dos blocos de Leste e de Oeste são baralhados, em benefício de uma nova repartição opondo o Ocidente ao islão. Esta experiência, inicialmente circunscrita à Grécia, mas de âmbito europeu, tinha por missão estratégica verificar em que medida os cidadãos e as instituições podiam tolerar uma nova democracia neoliberal autoritária. Enquanto que até ao presente tínhamos pensado que as estratégias neoliberais conduziam sempre a um enfraquecimento do aparelho Estado-nação, uma ética multicultural em que as identidades locais são confundidas pelo mercado e em que a liberdade - entendida como liberdade de mercado - continua em expansão, a nova democracia neoliberal autoritária mostra um rosto que combina o desmantelamento dos vestígios dos mecanismos de redistribuição das riquezas bem como das instituições de apoio social (introduzido na Grécia nos anos 1980) com a repressão nacionalista e a promoção de uma ideologia fascista inspirada por uma biopolítica da raça branca (tarefa absurda numa Grécia que, situada na charneira do Oriente, nunca foi branca).
A primeira medida deste teste em grande escala foi a supressão da soberania democrática do povo grego em seguida ao referendo do Oxi ("não"). Depois de ter anulado o referendo, a Europa exigiu e fez aplicar sem remorsos as mais frenéticas reformas neoliberais do mercado de trabalho, a diminuição das reformas, a privatização dos serviços públicos, o desmantelamento da cultura pública... De facto, isso implicava a pauperização da classe média grega e a precarização dos dois extremos mais frágeis da população: os reformados e os jovens. Com mais de 30% de desemprego, a juventude grega recomeçou um processo de migração económica - paradoxalmente, a Alemanha tornou-se o primeiro destino desse exílio.
O prisma do "capitalismo do desastre" que Naomi Klein propôs para compreender a aplicação das reformas neoliberais permite ler a situação grega com precisão. A Grécia é o nosso Haiti e o nosso Katrina. A chave da nova democracia autoritária europeia encontra-se na sobreposição no solo grego das medidas extremas de gestão de duas "crises" provocadas e geradas pelos centros hegemónicos financeiros: a crise económica e a crise dos refugiados. Na Grécia, a extensão do neoliberalismo foi acompanhada, pela primeira vez, não de um movimento de liberalização social, mas de uma gestão militar da "crise" da fronteira. A militarização das costas gregas, a transformação de certas ilhas estratégicas em prisões a céu aberto e a utilização do solo peninsular como membrana de contenção da migração para a Europa tornam obsoleto, senão absurdo, o discurso da "hospitalidade" que Merkel articula em 2016. Como se pode falar de hospitalidade quando o procedimento político europeu consiste em criminalizar os refugiados e os migrantes?
Como sublinharam Éric Alliez e Maurizio Lazzarato em Guerres et capital, implementaram-se na Grécia as condições para conduzir uma nova "guerra capitalista" na qual todos os dispositivos democráticos são investidos e transformados em instrumentos de controlo e de repressão social. Passou-se assim do Estado-mãe, que prometia (mesmo se nem sempre mantinha a sua promessa) redistribuição, bem-estar e justiça, a um Estado-pai, que apenas pode oferecer violência, segurança e purificação racial. Esta combinação de ultra-neoliberalismo e de ultra-nacionalismo conduziu a uma situação inédita desde os anos 1970, que se estende desde então a outros países da Europa, Espanha, Polónia, Hungria, Itália, mas também Alemanha ou França. As decisões da UE serviram para destruir toda a legitimidade política da esquerda, abrindo o caminho dos populismos de extrema-direita. O efeito colateral mais importante destes sucessivos golpes de Estado "democráticos" na Grécia foi a destruição de qualquer esperança de democracia radical, não só na Grécia mas também na Europa. Depois de 2015, o Syriza é um partido morto. Como o é o Partido Socialista em França ou em Espanha.
A extrema-direita come não só uma parte do bolo eleitoral, mas determina também, a partir da margem, o contexto discursivo no qual se desenrola o novo debate democrático autoritário. Mas não esqueçamos que é também desde a Grécia que se pensam hoje as condições de uma rebelião social e de uma alternativa crítica contra este processo que Franco Berardi chama com estupefacção "a destruição da Europa".»
1 comentário:
Atribuir estatuto de "Europa" a um mal disfarçado V Reich não facilita as análizes do que está a ocorrer.
Destino de semelhante engano cultural?.
"Begin with a whisper end with a bang".
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