quarta-feira, 24 de abril de 2013

ENTRE O CAIRO E PARIS




O mais recente livro de Alain Blottière, Rêveurs, conta-nos a história de dois jovens, um em Paris e outro no Cairo, ambos presos de sonhos, de sonhos diferentes, e que acabam por se encontrar, ainda que fugazmente, já no fim do romance, junto às águas do Nilo.

 O francês, Nathan, é um estudante liceal, que vive confortavelmente com a família nos arredores de Paris, oscilando entre o tédio do quotidiano e o medo do desconhecido. E que se refugia no mundo virtual dos jogos vídeo e, no mais perigoso, do jogo do lenço, do "sonho indiano" que o leva a estrangular-se por segundos, consecutivamente, para reencontrar as visões de que gosta.

O egípcio, Goma, é um rapazinho das ruas do Cairo, que cresceu num bairro miserável e super-povoado, na companhia de outros garotos famintos, a quem tudo falta, habitualmente brutalizados pela polícia. Para sobreviver apanha cartões na rua e o seu único sonho é partir. A acção decorre nos dias da queda de Mubarak e das manifestações da praça At-Tahrir, o que lhe dá a esperança (afinal infundada) de melhores dias.


Nathan e Goma acabam por conhecer-se e banhar-se ambos no Nilo, aquando de uma viagem de férias do francês ao Egipto. Ao longo da história, vários acontecimentos, alguns colaterais, que o autor tão bem sabe descrever, ele que é um familiar das terras dos faraós, com a qual divide a sua vida em Paris.

A leitura deste livro, para lá da estória, concede também ao leitor que conheça as duas cidades um especial prazer topográfico. É que Alain Blottière situa o plot nos lugares reais, o que permite a quem lê imaginar mais concretamente o cenário da acção. No que ao Cairo respeita, senti-me em casa. Quanto a Paris, um pouco menos, já que os percursos de Nathan são mais os arredores do que a cidade propriamente dita, mas mesmo assim, não me são totalmente alheios.

Constitui por isso um redobrado prazer mergulhar em Rêveurs, escrito pela pena de um profundo conhecedor do Egipto, das suas gentes, costumes, dos malefícios do regime deposto e das frustradas esperanças colocadas no advento da nova "democracia". Não omite Blottière as brutalidades da polícia nas esquadras, a venda de órgãos humanos de mortos e até de moribundos processada nos hospitais, a extrema miséria a par da insultuosa riqueza, a acção dos "facebooks" (como os egípcios pobres chamam aos jovens das novas tecnologias e cuja acção na revolta contra Mubarak foi primordial), a tomada do poder pelo sectarismo religioso. Por tudo isto, e pelo profundo humanismo que o livro transpira, trata-se de uma obra que importa ler.

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