Se fosse vivo, Roland Barthes completaria hoje 94 anos. Nascido em 12 de Novembro de 1915, em Cherbourg, foi um dos intelectuais que mais profundamente marcou a vida cultural francesa de meados do século passado. Integrado inicialmente na escola estruturalista, percorreu uma trajectória diversificada que incluiria a semiologia, o existencialismo, o marxismo, o pós-estruturalismo, a teoria literária e social, a fotografia, e outros saberes, acabando os seus dias como professor do Collège de France.
Aluno exemplar da Sorbonne, a sua vida académica foi perturbada pela tuberculose que o levou a vários internamentos em sanatórios e que viria a ser a verdadeira causa da sua morte.
Professor em diversas universidades e conferencista apreciado em todo o mundo, foi investigador do Centre National de la Recherche Scientifique e professor da École Pratique des Hautes Études. Além da França, ensinou em Bucareste, Alexandria, Baltimore, Rabat, Tunis, etc. A sua predilecção pelo Norte de África, a exemplo de outros grandes escritores franceses como Gide, Montherlant, Genet, Foucault, manifesta-se, excepcionalmente, num pequeno opúsculo, Incidents, pequenas notas sobre os rapazes de Marrocos. Mas, ao contrário de muitos dos seus pares, Barthes foi sempre especialmente reservado em relação à sua vida privada.
Da obra, hoje reunida nos cinco volumes das Oeuvres Complètes, sobressaem Mythologies, Le degré zero de l’écriture, Fragments d’un discours amoureux, Le plaisir du texte. Provocou polémica a recente publicação (póstuma) do Journal de deuil, que Barthes, que professava verdadeira adoração pela mãe, manteve durante dois anos, desde o dia seguinte à morte desta até quase à sua própria morte. Neste diário, o escritor evoca as recordações e expressa o seu desgosto pelo falecimento daquela com quem viveu a vida inteira, desgosto de que, verdadeiramente, nunca se recompôs.
Ainda sobre o fascínio de Barthes pelo mundo árabe, aquilo a que Frédéric Mitterrand, actual ministro da Cultura francês chama, no seu livro La mauvaise vie, “la tentation arabe”, escreve Louis-Jean Calvet na biografia que lhe consagrou: «Il y a, entre Tunis et La Marsa, un petit train très populaire, le TGM (Tunis-La Goulette-Marsa), et Rebeyrol se souvient que Barthes ne voulait jamais prendre la voiture de l’ambassadeur, préférant ce transport en commun dans lequel il pouvait faire des rencontres.» (Roland Barthes, p. 273). Estávamos em 1978 e Barthes encontrava-se hospedado em casa de seu amigo e colega desde o liceu, Philippe Rebeyrol, então embaixador de França na Tunísia. A residência do embaixador francês situa-se em La Marsa, que está em relação a Tunis um pouco como Cascais está em relação a Lisboa. Aliás, o TGM é uma espécie de comboio da linha de Cascais em mais pequeno. Curiosamente, Foucault, quando leccionou durante dois anos na Universidade de Tunis, habitando Sidi-Bou-Saïd (a meio caminho entre La Marsa e Tunis) utilizava também o TGM, antes de ter comprado um carro descapotável.
Em 25 de Fevereiro de 1980, Barthes aceitou um convite de Jack Lang para almoçar com François Mitterrand (que seria eleito presidente da República no ano seguinte) e outras personalidades. Era costume de Lang organizar para Mitterrand, que apreciava os contactos com as gentes da cultura, este tipo de almoços. O encontro teve lugar no Marais, rua des Blancs-Manteaux, em casa de Philippe Serre, antigo deputado da Frente Popular. Além de Mitterrand e Lang estavam presentes Jacques Berque, Danièle Delorme, Pierre Henry et Rolf Liebermann. No fim do almoço, Barthes decidiu andar um pouco a pé. Seguindo pela rua des Écoles, por altura do nº 44, próximo do Collège de France, decidiu atravessá-la, tendo sido colhido por uma camioneta. Sustenta um amigo meu, hipótese plausível, que Barthes, tendo visto no outro lado da rua alguém que lhe despertou a atenção, resolveu inadvertidamente atravessá-la, não reparando na camioneta que se aproximava. Conduzido pelo SAMU ao Hospital de La Salpêtrière, sangrando do nariz e sem papéis de identificação, só muitas horas depois a notícia foi divulgada.
No dia 26, o comunicado do hospital era tranquilizador. Barthes continuava em observação mas o seu estado de saúde não era considerado preocupante. Rapidamente, amigos, intelectuais, alunos, afluem à Salpêtrière onde se encontrava já o meio-irmão de Barthes, Michel Salzedo. Philippe Sollers, Julia Kristeva, François Wahl e Michel organizam as visitas. A Michel Foucault, Barthes, muito abatido, repete: «quelle bêtise». Philippe Rebeyrol, que deixara o posto na Tunísia para ser nomeado embaixador em Atenas e por isso se encontrava em Paris visita-o várias vezes. Passam também assiduamente pelo hospital Éric Marty, Taïeb Baccouche, André Techiné, Algirdas Greimas, Italo Calvino, Bernard Dort, e tantos outros. Todavia o estado de saúde deteriora-se. O facto de estar entubado impede-o de falar e os médicos decidem fazer-lhe uma traqueotomia. Como não haviam sido solicitados exames anteriores, ignoravam inicialmente os clínicos a história de tuberculose de Barthes. A operação acaba por mergulhar o escritor em estado de completa prostração e há como uma rejeição psicológica de continuar a viver. O seu passado pulmonar havia desencadeado uma insuficiência respiratória grave. Jamais recomposto do desgosto provocado pela morte da mãe e com um “buraco na garganta”, Barthes desiste e morre a 26 de Março, às 13.40 h. Segundo o médico legista “não foi o acidente a causa da morte mas favoreceu a eclosão de complicações pulmonares numa pessoa particularmente diminuída por um estado de insuficiência respiratória crónica.”
Será sepultado em Urt, perto de Bayonne, aldeia onde a mãe comprara uma casa em 1961 e onde, desde então, ambos passavam todos os anos as férias.
Cumprindo as disposições de Barthes, de que nenhum inédito deveria ser publicado, François Wahl, como executor testamentário, opôs-se sempre a qualquer publicação póstuma sem sua autorização, especialmente de carácter biográfico. Mas a sua determinação não foi totalmente coroada de êxito, até porque foram editados alguns romances “à clés”, como Les Samouraïs, de Julia Kristeva, onde o escritor aparece sob o nome de Armand Bréhal, catálogos de exposições e outras obras que revelam diversos aspectos da vida e personalidade de Roland Barthes.
5 comentários:
Está um pouco esquecido do público, daquele que lê, a figura de Barthes. Um homem excepcioanl a vários títulos e com um pensamento e uma obra igualmente excepcionais.
Afinal Barthes e Foucault morreram no mesmo hospital, La Salpêtrière. Foucault, 4 anos depois, com sida. É a sorte dos de alguns dos maiores pensadores da França do séc. XX.
Recordar Barthes,hoje algo esquecido,talvez pelo declínio do Estruturalismo,com que parcialmente se identificou,é boa ideia.
Começando pelo fim,ou seja pelos pormenores rectificativos: O director da Ópera de Paris era Rolf Liebermann."Roman à clés"não é impossivel,mas é mais habitual(e mais bonito) "roman à clefs". Mantendo-me nas observações menores,já agora diria que vi Barthes duas vezes no "Deux Magots",onde ele passava frequentemente,como eu,pois vivíamos na mesma zona.Estava sózinho,e lembro um ar melancólico que corresponde a muito do que ele escreveu.
Confesso não ter lido muito o Barthes teorizador,pois vindo do estudo da Filosofia analítica,o estruturalismo francês nunca me entusiasmou. O que me agradou imenso foram os "Fragments d'un Discours Amoureux",que li logo que publicados,e que ainda considero(do pouco que conheço)o seu melhor livro.O carácter pessoal,melancólico,fragmentário,bem afastado do didactismo e convencimento estruturalistas,diz-me muito,mesmo que apenas a título pessoal. Inspirado talvez pelo tambem fragmentário "De l'Amour" do Stendhal,mas bom seria que todas as inspirações produzissem resultados semelhantes! Tambem conheço o "S/Z",exercício analítico curioso sobre a "Sarrazine" do Balzac,e o "Sade,Fourier,Loyola". E fico-me por aqui,excepto quanto à Lição inaugural no Collège de France,que me lembro ter sido reproduzida integralmente no "Monde",e em que divagando sobre a relação entre Linguagem e Poder,afirma que "a Linguagem é fascista",o que me parece apenas efeito-choque,dado que em seguida indica que é pela literatura que podemos fugir ao domínio da Linguagem.E já me esquecia das suas reflexões sobre a fotografia,na "Chambre Claire"(salvo erro,pois não tenho aqui o livro)originais,como quase sempre.
Aqui tem,caro autor do Blog,algumas reflexões tambem fragmentárias e pessoais,para não fugir ao melhor estilo do homenageado... Apreciei os pormenores que não conhecia sobre as circunstâncias da morte do nosso homem,e ainda quanto aos seus passeios marroquinos,que julgo provêm dos "Incidents",que ainda não li,e que supunha publicados pòstumamente. Tambem teria apreciado algo mais sobre a evolução das ideias do Barthes,nomeadamente na fase final,em que julgo se afastava do Estruturalismo,este mesmo reacção ao Existencialismo sartreano. De resto,tal como com o Sartre,provàvelmente o que ficará do Barthes serão as suas obras não teóricas,pois do cliente do "Flore" lembraremos mais a "Nausée" e os "Mots"do que os hoje quase(?)ilegiveis "Être et le Néant""ou a "Critique de la Raison Dialectique". Mas são meras opiniões pessoais. Cumprimentos pelas suas efemérides.
PARA O ANÓNIMO DAS 12:47:
Agradeço os seus comentários que enriquecem o meu texto.
Quanto a "roman à clés" ou "roman à clefs" o próprio biógrafo de Barthes utiliza a primeira.
Pelo visto Barthes, paradigma da discussão sobre a semiologia, nunca será esquecido. Tanto não será que sua obra, extremamente significativa e atual, está sendo reeditada por Portugal e tambem pelo Brasil.
Um esteta, um semioclasta excepcional!
Rodrigo da Costa Araujo
UFF
rodricoara@uol.com.br
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