Reacendeu-se a polémica a propósito da inclusão no Programa de Governo da consignação do instituto jurídico do casamento de pessoas do mesmo sexo.
Convém acentuar desde já que o casamento de pessoas do mesmo sexo não implica necessariamente que os cônjuges sejam homossexuais, embora sejam estes quem, naturalmente, mais reivindica o novo ordenamento jurídico proposto.
Recorde-se, ainda, que os casamentos same-sex existem desde há anos em muitos países da Europa, e não só, e que a sua adopção em nada altera a ordem pública ou o regular funcionamento das instituições.
A questão da homossexualidade, tão antiga quanto o próprio homem, tem suscitado as mais diversas reacções ao longo da História. É costume, em abono da “causa”, invocar-se e evocar-se a benevolência com que as práticas homossexuais eram acolhidas na Antiga Grécia. Importa, porém, acrescentar que tais práticas, na sua essência, eram razoavelmente diferentes das que se foram impondo ao longo dos séculos. Aceitava-se, e até era louvável, na velha Atenas, que os homens tivessem um jovem (a partir dos 12 ou 13 anos) como amante, a quem iniciavam não só nas práticas sexuais, mas também nas artes que mais tarde os romanos designaram por trivium e quadrivium e que constituíam a formação educativa básica da época. Isto é, congregavam-se a pedagogia e a pederastia, com vista a uma completa educação dos efebos. O que já era condenável, ou pelo menos censurável, em Atenas, era o relacionamento sexual entre adultos (salvo se o adulto fosse um escravo e tivesse um comportamento passivo), ainda que, mesmo assim, essas relações fossem largamente praticadas.
Quando o efebo (eromenos) atingia a idade adulta (geralmente quando lhe começava a nascer a barba), era largado pelo seu amante (erastes) que o substituía por um companheiro mais jovem. Por sua vez, o ex-eromenos, agora já considerado adulto (por volta dos 20 anos) tratava de conquistar um eromenos para si.
Esta velha ordem social grega (existiam algumas diferenças de pormenor entre Atenas e as outras cidades-estado), de que tivemos conhecimento através de textos, esculturas, pinturas, etc., foi depois adoptada por Roma (com adaptações às circunstâncias) e alargou-se mais tarde a todo o Império.
Da Grécia nos chegaram os testemunhos de Platão no Banquete e, posteriormente, de Estratão de Sardes, nos Epigramas. De Roma nos falaram Petrónio, no Satyricon e o Pseudo-Luciano nos Amores. Não foi, todavia, a prática da homossexualidade na Antiguidade um exclusivo da Grécia e de Roma Clássicas. Ela foi comum às outras civilizações e encontra-se convenientemente descrita no livro A Sexualidade no Mundo Antigo, que recolheu as comunicações sobre o tema apresentadas no colóquio homónimo, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 24, 25 e 26 de Outubro de 2007, pelos mais credenciados professores desta Universidade e da Universidade de Coimbra.
Depois, da Idade Média aos nossos dias, nunca cessaram as práticas e a respectiva descrição literária, jurídica, médica ou religiosa, e também as perseguições aos “prevaricadores” da ordem moral judaico-cristã-islâmica, com algumas épocas de maior tolerância, como foi o caso do Renascimento.
Porquê este arrazoado a propósito do casamento de pessoas do mesmo sexo? Em primeiro lugar, porque se recorda sempre a Grécia Clássica quando se fala de homossexualidade. E para bem se compreender (e ver) o que ela então foi importa consultar a obra ilustrada, ainda hoje considerada como referência fundamental: Greek Homosexuality, de Sir Kenneth Dover, presidente do Corpus Christi College, de Oxford, presidente da Academia Britânica e Chanceler da St Andrews University. Em segundo lugar, porque, como se disse, o que na época constituía motivo de censura era o relacionamento sexual entre adultos entre si e não o relacionamento entre adultos e adolescentes (em que obviamente não se incluíam as crianças). Esta precisão é tanto mais necessária dado que hoje a campanha contra a chamada pedofilia constitui uma paranóia quase universal, amalgamando os mais diversos escalões etários. Instigada pelas ligas de “bons costumes”, com o incentivo das seitas evangélicas norte-americanas, nomeadamente dos “born-again” (a que pertence o ex-presidente Bush), permitiu exacerbar o puritanismo (hipócrita) dos americanos e teve como primeiro alvo os padres e bispos da Igreja Católica. Aliás, tudo isto está inserido numa complicada estratégia (difícil de resumir em pouco espaço) que tem como objectivo último o apoio incondicional ao Estado de Israel, que deverá ocupar, contra os palestinianos, todas as terras biblicamente consideradas como o Grande Israel para depois se operar a conversão dos judeus à fé cristã e para que se possam finalmente cumprir as profecias e concretizar-se a segunda e última vinda de Jesus Cristo à Terra.
Para uma melhor compreensão do assunto, e porque o termo homossexual foi usado pela primeira vez por Karl-Maria Kertbeny apenas em 1869 (anonimamente) e em 1880 (publicamente), e só encontrou ampla divulgação em 1886, pela mão de Richard von Krafft-Ebing, deve ler-se também o livro do professor Simon Goldhill, do King’s College, de Cambridge, Love, Sex & Tragedy, que se encontra traduzido em português. A propósito da publicação da edição portuguesa, escreveu Maria Filomena Mónica na recensão crítica que fez no PÚBLICO, em 24 de Junho de 2006, referindo-se à imagem que apresento no início deste post: «De tal forma a obra me impressionou que, mal a terminei, fui até ao Ashmolean Museum, em Oxford, a fim de ver, com os meus olhos, o vaso grego que figura na ilustração nº 17, onde se retratam os preparativos para o que os gregos chamavam “diomerizein”, ou seja, o acto sexual, entre as coxas, praticado entre um homem e um rapazinho. Lá estava, na vitrine, o adolescente nu, diante do adulto com barba, semicoberto por uma capa drapeada, o qual acariciava o pénis do menino. Nada denuncia violência, maldade ou imposição. Pelo contrário, ambos parecem deliciados. O rapazinho tem um braço por cima dos ombros do homem e olha-o sem pudor. Aparentemente, o desejo sexual pleno só é atingido pelo adulto. Numa época em que a obsessão com a pedofilia atingiu as raias do absurdo, a imagem é chocante, mas não o era para o Mundo Antigo, que, note-se, não admitia a penetração nestes casos.»
Dadas as características que o relacionamento homossexual desenvolveu ao longo dos séculos, não julgo indispensável para a felicidade da humanidade que esta versão do casamento seja consagrada em lei. Numa época em que se assiste a um aumento exponencial dos divórcios dos casamentos heterossexuais, até poderá parecer uma ironia a reivindicação agora pretendida. O que importa consagrar será a plenitude dos direitos (diversos) de todos aqueles (homos ou heteros) que vivem, realmente, em união de facto.
Mas concedo, para não ser considerado demasiado pessimista, que a introdução deste instituto na nossa ordem jurídica possa contribuir para um progressivo reconhecimento de uma realidade (ainda insuficientemente estudada) que existe desde o princípio dos tempos, com diversos graus de aceitação no decorrer da História.
6 comentários:
Aplauso pela franca e geralmente esclarecida abordagem da temática que na nossa terra continua a causar indigestão aos guardiões das supostas virtudes.
Observações: - Não confundir o efebo com o eromenos. A efebia estava institucionalizada como preparação militar para os jovens dos 18 aos 20 anos. Os eromenoi eram,como diz bem,de menos idade,"até à primeira barba". Por isso até alguns autores têm querido distinguir entre pedofilia e efebofilia,mas suponho que sem sucesso excepto no meio psiquiátrico,dado que para os jornalistas do burgo convem que a pedofilia vá até aos 20 anos,pelo menos,senão não vendem o produto.
-Tambem tenho dúvidas sobre a "reprovação" grega das relações entre adultos jovens de idades semelhantes. Aquiles e Patroclo é o primeiro exemplo que salta à vista,mais tarde Alexandre e Hefaiston,alem dos dois jovens amantes cujo nome agora não recordo,e que executaram um tirano,sendo quase deificados em Atenas,com a competente estatuária pública. E tem o "batalhão sagrado" de Esparta,creio,constituido por jovens guerreiros cuja coragem era exaltada pelos laços que os uniam.
- É pena que o habitual anti-americanismo e anti-sionismo venha mais uma vez perturbar a adequação de um boa reflexão. É verdade que a cruzada das "ligas da virtude" tem inicio nos E.U.A.,e entre cristãos fundamentalistas,embora nem todos evangélicos. Mas expandiu-se com impressionante força e aceitação por quase todo o mundo. Cá temos tido a nossa tenebrosa representação,com os efeitos conhecidos. Associações desse tipo geral estão activas em múltiplos países, e parece-me "far fetched" pretender que fazem parte de conspirações americanas pró judaicas e anti-palestinas. Alguns americanos,pois em todos os países há excêntricos perversos,poderão difundir essas teorias,mas pôr o "Focus on the Family" e semelhantes nessa linha,tal como os nossos e nossas defensores das virtudes,afigura-se-me dificil de defender. Vejo sim uma corrente de reacção a um liberalismo sexual vigente e crescente em muitos países ocidentais a partir dos anos 60. E em Portugal,Espanha,França apoiado por movimentos neo-catecumenais e semelhantes. Outras bases,mas os mesmos desastres sociais.
Correcções e esclarecimentos ao comentário anterior.
-Os tiranicidas são Harmodius e Aristogeiton,e o tirano executado é Hiparco. Há uma excelente cópia romana da estátua grega dos heróis, no melhor museu arqueológico do mundo,evidentemente o de Nápoles.Embora se veja que um é mais velho do que o outro,o mais novo já teria passado bem a idade eromenística.
- O "Batalhão Sagrado" é tebano,e não espartano. Mas os próprios autores gregos referem o culto da relação homo em Esparta,precisamente como conducente às virtudes militares da cidade.
Quando se fala de sexo e casamento, vêem-me sempre à cabeça algumas frases de Lazarus Long, em "Time Enough for Love" (RAH, 1973).
Por exemplo:
The most preposterous notion that H. Sapiens has ever dreamed up is that the Lord God of Creation, Shaper and Ruler of all the Universes, wants the saccharine adoration of His creatures, can be swayed by their prayers, and becomes petulant if He does not receive this flattery. Yet this absurd fantasy, without a shred of evidence to bolster it, pays all the expenses of the oldest, largest, and least productive industry in all of history.
The second most preposterous notion is that copulation is inherently sinful.
Everybody lies about sex.
Os problemas principais de qualquer discussão sobre o assunto assentam no aspecto sexual propriamente dito, quando o sexo pode nem ser um aspecto do casamento. O segundo problema é perceber o que é um casamento, algo que escapa totalmente às capacidades da maior parte das pessoas e certamente da esmagadora maioria da nossa classe política. E o terceiro problema? Lazarus Long: "Never underestimate the power of human stupidity!".
Nos tempos recentes, o casamento entre pessoas do mesmo sexo mais interessante foi certamente entre Denny Crane e Alan Shore (na série de televisão Boston Legal, de David E. Kelley), grandes amigos, totalmente, absolutamente, activamente heterossexuais, para quem o casamento mútuo fazia todo o sentido.
Quanto ao que é o casamento, Lazarus Long mais uma vez.
Every so often some idiot tries to abolish marriage. Such attempts work as well as repealing the law of gravity, making pi equal to three point zero, or moving mountains by prayer. Marriage is not something thought up by priests and inflicted on mankind; marriage is as much a part of mankind's evolutionary equipment as his eyes, and as useful to the race as eyes are to an individual. Surely, marriage is an economic contract to provide for children and to take care of mothers while they bear kids and bring them up-but it is much more than that. It is the means this animal, Homo Sapiens, has evolved-quite unconsciously-for performing this indispensable function-and be happy while doing so. Why do bees split up into queens, drones, and workers, then live as one big family? Because, for them, it works. How is it that fish do okay with hardly a nodding acquaintance between mama fish and papa fish? Because the blind forces of evolution made that way work for them. Why is it that "marriage"-by whatever name-is a universal institution among human beings everywhere? Don't ask a theologian, don't ask a lawyer; this institution existed long before it was codified by church or state. It works, that's all; for all its faults it works far better by the only universal test-survival-than any of the endless inventions that shallow-pates over the millennia have tried to substitute for it. I am not speaking monogamy; I mean all forms of marriage-monogamy, polyandry, polygyny, plural and extended marriages with various thrills. "Marriage" has endless customs, rules, arrangements. But it is "marriage" if-and-only-if the arrangement both provides for children and compensates the adults. For human beings, the only acceptable compensation for the drawbacks of marriage lies in what men and women can give each other. I don't meast "Eros' Minerva. Sex baits the trap, but sex is not marriage, nor is it reason enough to stay married. Why to keep a cow when milk is cheap? Companionship, partnership, mutual reassurance, someone to laugh with and grieve with, loyalty that accepts foibles, someone to touch, someone to hold your hand-these things are "marriage"- and sex is but the icing on the cake. Oh, that icing can be wonderfully tasty-but it is not the cake. A marriage can lose that tasty "icing"-say, through accident- and still go on and on and on, giving deep happiness to those who share it. When I was a rutty and, ignorant youngster, this used to puzzle me...
PARA O ANÓNIMO DAS 2:42:
Agradeço-lhe o seu longo comentário, que me merece os seguintes esclarecimentos:
1) Quando referi efebos, utilizei a palavra num sentido genérico, sem especificar que deveria aplicar-se apenas aos jovens de 18 a 20 anos. Assim, o "eromenos" deveria ter sido mencionado como adolescente, e por esta imprecisão apresento as minhas desculpas.
2) Quanto à "reprovação" grega das relações homossexuais entre adultos não tenho dúvidas (embora estas fossem largamente praticadas), mas não sei precisar se seriam aceites no caso dos adultos serem ainda jovens, pelo que registo em 3) a observação de Frederico Lourenço. É claro que os cidadãos gregos adultos podiam sempre ter relações sexuais com outros adultos desde que estes fossem escravos e assumindo o cidadão o papel activo.
3) Quanto a Aquiles e Pátroclo, refere o Prof. Frederico Lourenço, em "A Sexualidade no Mundo Antigo" que «Homero não pretende que vejamos a relação entre Aquiles e Pátroclo como manifestação de homossexualidade». E explica porquê: «Homero, se quisesse, podia ter descrito a relação entre Aquiles e Pátroclo como relação homossexual; mas não quis. Porquê? Porque o falocentrismo e a misoginia basilares da cultura grega não admite dois parceiros iguais na relação homossexual, porque no fundo há uma transposição para a relação homem/homem do jogo de poder e subjugação próprio da relação homem/mulher». Sem prejuízo, como acrescenta ainda Lourenço, de ambos «serem vistos, mais tarde na cultura grega, nomeadamente por Ésquilo, na sua tragédia perdida "Mirmidões" e por Platão, no "Banquete", como par arquetípico do amor homossexual».
4) Lamento que o Anónimo continue a considerar como anti-americanismo e anti-sionismo as considerações que por vezes faço baseado em factos reais e não em suposições delirantes.
PARA O ANÓNIMO DAS 20:29:
Agradeço-lhe a sua longa transcrição de algumas passagens de "Time Enough for Love", de Robert A. Heinlein. Pena é que não estejam em português, por que aproveitariam a um maior número de leitores.
De facto, basear a instituição casamento exclusivamente no sexo é pura idiotice, e sempre me espanto, e às vezes me envergonho, quando oiço muito jornalistas referirem-se ao agora proposto casamento de pessoas do mesmo sexo como casamento de homossexuais.
Como referiu o Anónimo: "Nunca subestimemos o poder da estupidez humana!".
O "sem prejuizo" do neo-conimbricense Prof. Frederico Lourenço deixa-me algo perplexo. Então as relações homo entre homens jovens(como Aquiles e Patroclo) eram ou não aceites? Antes do "sem prejuizo" são refutadas, de acordo com o discurso actual,seguindo o Michel Tournier e outros.Depois do "sem prejuizo já podem constituir paradigma,exemplificando com Ésquilo e Platão. Em que ficamos? Condenação ou paradigma? O argumento de que o Homero não "sexualizou" explicitamente a relação,portanto não existiu essa componente, é bizarro. O Homero é do século XXI,onde tudo (ou quase) se explicita? O facto é que a relação Aquiles- Patroclo foi interpretada sexualizadamente no acmê(não tenho teclado grego,lamentavelmente)da civilização grega,e posteriormente,o que pesa alguma coisa quanto à diversidade da homossexualidade grega,que se pretende ultimamente, não sei porquê, reduzir à pederastia (certamente dominante mas não exclusiva) ou às relações com escravos. E Alcibíades,que como jovem,não eromenos,se divertia a seduzir meio mundo? Digo isto,claro,"sem prejuizo" do meu respeito e admiração pelo Prof.Lourenço,cujos esforços para a divulgação do classicismo,prosseguidos com os magníficos trabalhos de adaptação e tradução de obras magnas,como o "D.Carlos" e a "Ifigénia" merecem o maior aplauso.
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