Acabou de ser publicada a tradução francesa (Dans la bibliothèque privée d’Hitler) do livro de Timothy W. Ryback, editado o ano passado Hitler’s Private Library, que o “Washington Post” considerou o melhor livro do ano e a que se refere, em extensa crítica, o número desta quinzena (14-27 Maio 2009) de “The New York Review of Books” (Volume LVI, Number 8).
A primeira notícia, a nível internacional, sobre a biblioteca de Hitler deve-se ao jornalista americano Frederick Oechsner, que publicou em 1942 um livro intitulado This Is the Enemy. Aí se relata que Hitler possuía para cima de 16.000 volumes, divididos entre a sua residência oficial em Berlim e o Berghof, o retiro alpino do Führer em Obersalzberg, perto de Berchtesgaden.
Desde então, e até ao livro de Ryback, várias obras foram publicadas sobre a biblioteca de Hitler, nomeadamente The Hitler Library: A Bibliography, de Philipp Gassert e Daniel Mattern, em 2001 e Hitler’s Library, de Ambrus Miscolczy, em 2003.
Sabe-se hoje que a biblioteca estava repartida por diversos sítios e sofreu algumas mudanças, de acordo com a carreira de Hitler e a situação político-militar da Alemanha. O que restou desse heteróclito conjunto de livros repousa hoje, na sua quase totalidade, na Biblioteca do Congresso, em Washington (1.200 volumes), na Brown University, em Providence - Rhode Island (80 volumes) e na Pennsylvania University, em Philadelphia.
Na fase final do regime nazi os livros encontravam-se na Chancelaria do Reich, na Voss Strasse, nº6, em Berlim (cerca de 10.000 volumes), no Berghof e na residência austríaca de Hitler, no nº 16 da Prinzregentplatz, em Munique.
A biblioteca de Hitler, que este começou a organizar quando ainda se encontrava na tropa, durante a Primeira Guerra Mundial (o primeiro livro que comprou foi um guia de Berlim, de Max Osborn), compunha-se das obras mais diversas, avultando sobretudo livros respeitantes à arte da guerra (como o célebre tratado de Clausewitz), a grandes figuras da história universal, nomeadamente alemãs e em especial Frederico o Grande (cujo retrato o acompanhou até aos últimos momentos no bunker), obras esotéricas, obras sobre arte e arquitectura, alguns clássicos, como Shakespeare ou Cervantes, Goethe ou Schiller, mas também banda desenhada ou romances policiais ou de aventuras, como a colecção completa dos livros de Karl May, então popularíssimo na Alemanha onde vendeu 75 milhões de exemplares, encontrando-se traduzido em 100 países. Acresciam às obras adquiridas por Hitler aquelas que lhe eram oferecidas por amigos, por escritores da época ou por correligionários. Entre os inúmeros autores contam-se, além dos já citados, o próprio Hitler (Mein Kampf), Henry Ford (O Judeu Internacional), Houston Stewart Chamberlain, Alfred Rosenberg (O Mito do Século XX), Fichte (Obras Completas, uma oferta de Leni Riefenstahl), Anton Drexler, Ibsen (o Peer Gynt), Jünger, Dietrich Eckart, Wagner, Schopenhauer (O Mundo como Vontade e Representação), Nietzsche (Obras Completas), Hans Günther, Arthur Moeller van den Bruck (O Terceiro Reich), Paul Lagarde, Maximilian Riedel (A Lei do Mundo), Ernst Schertel, Hugo Rochs (Schlieffen, sobre o lendário marechal conde prussiano), Sven Hedin, etc.
A única parcela importante da biblioteca de Hitler encontrada intacta, cerca de 3.000 livros, foi descoberta nas minas de sal de Berchtesgaden e enviada para o Congresso, em Washington, onde hoje repousam apenas 1.200, na secção de Reservados. Os restantes volumes, aquando da catalogação, ou foram considerados sem interesse ou “desviados” para outros destinos. Estima-se que existam hoje nos Estados Unidos, nas mãos de veteranos de guerra ou seus descendentes, mais de 1.000 livros que, de vez em quando, aparecem no mercado.
Os livros existentes na Universidade Brown foram trazidos de Berlim por Albert Aronson, um dos primeiros americanos a entrar no bunker, e entregues àquela instituição por um sobrinho, no fim dos anos setenta. No seu livro, Ryback refere a certa altura que os livros foram retirados do bunker do Berghof, mas deve tratar-se de um lapso, pois contradiz a afirmação inicial do autor.
A Universidade de Pennsylvania recebeu, no começo dos anos noventa, alguns livros de Hitler provenientes do Berghof, entre os quais uma biografia de Frederico o Grande.
A biblioteca do Reichkanzler dispersou-se tão rapidamente quanto se desmoronou o seu império. À hora do suicídio de Hitler em Berlim, já os soldados americanos pilhavam as suas colecções de Munique. Quatro dias mais tarde, quando a 101ª divisão aerotransportada chegou ao Obersalzberg encontrou as ruínas fumegantes do Berghof e um cofre-forte arrombado, onde foram encontrados livros dispersos. O registo de um inventário classificado como secreto apenas revela três títulos: A Génese da Guerra Mundial, do historiador americano Harry Barnes, O Príncipe, de Maquiavel e as críticas do século XVIII de Immanuel Kant. Os livros com melhores encadernações foram autênticos achados para os soldados, que deles se apoderaram como recordações da vitória.
Quando a 2 de Maio a primeira equipa soviética penetrou no bunker de Berlim, quase abandonado, começou outra vaga de pilhagens que durou semanas e em que os 10.000 volumes da Chancelaria foram transportados pelas tropas soviéticas para Moscovo, onde desapareceram sem deixar rasto. No começo dos anos noventa, um jornal moscovita assinalou a presença desses livros numa igreja desafectada de Uzkoe, nos arredores de Moscovo, mas pouco tempo depois da publicação do artigo a colecção foi transferida para outro sítio e não tornou a ser vista.
Referem os seus contemporâneos que Hitler era um apaixonado pela leitura e que lia, em média, um livro por noite, mantendo-se para o efeito acordado até de madrugada. Grande parte deles está recheada de anotações pessoais, embora muitos não tenham sido sequer folheados. Admira, por isso, que uma pessoa que amava os livros tenha permitido ou apoiado, apesar das suas convicções políticas, a célebre destruição de obras de homens famosos, em 10 de Maio de 1933. Nesse dia terrífico, homens das SA e membros da Juventude Hitleriana queimaram mais de 20.000 livros de figuras como Thomas Mann, Siegmund Freud, Stefan Zweig, Erich Maria Remarque, Heinrich Heine, Karl Marx, etc., por instigação do ministro da Propaganda Joseph Goebbels. O cenário dessa fogueira de contornos inquisitoriais foi a imponente Opernplatz (hoje Bebelplatz, em homenagem ao político alemão August Bebel, líder do SPD no século XIX), a sul da Unter den Linden, entre a Staatsoper, a Universidade de Humboldt e a Catedral de Santa Hedwig. No centro dessa mítica praça existe hoje, no solo, uma placa de vidro, por onde se pode observar no interior uma estante vazia, evocando a queima dos livros. A que se acrescentou uma citação de Heinrich Heine (1797-1856): «Dort, wo man Bücher verbrennt man am Ende auch Menschen» (Aonde eles queimam os livros, acabarão também por queimar os homens).
Muito se tem escrito sobre Hitler, contam-se por milhares os livros publicados em todo o mundo sobre ele e o nazismo, mas, como afirmou o historiador britânico Ian Kershaw (autor da talvez mais famosa biografia do chanceler do Terceiro Reich), ele continua a ser uma das personagens mais impenetráveis da era moderna: «O seu sentido inato do secreto, a sua carência de qualquer relação pessoal, o seu estilo burocrático, as suas admirações tão exageradas quanto os seus ódios, assim como as desculpas e as distorções acumuladas nas suas memórias do pós-guerra e nas anedotas que circulavam na sua roda conduzem, apesar das torrentes de documentos emitidos pelo III Reich, à extraordinária dificuldade de reconstituir a vida do ditador alemão. Quase uma impossibilidade quando comparada, entre outras, às carreiras dos seus principais adversários, Churchill e mesmo Estaline.»
Mais do que uma lista ainda que não exaustiva (o que seria impossível) da biblioteca de Hitler, a obra de Ryback procura fornecer um percurso cronológico das principais aquisições de livros e das leituras do Führer. Como dissemos, Hitler era um autêntico devorador de livros e, sendo dotado de uma memória prodigiosa, permitia-se evocar com a maior precisão e facilidade, números, datas, textos, ínfimos pormenores que faziam a inveja do cidadão comum. Nem sempre retirava dos livros, contudo, a sua essência profunda mas tão só aquilo que lhe interessava para a difusão das suas ideias e consequente prossecução da política do Partido Nazi.
Importa referir ainda, à guisa de conclusão, que a maior parte das obras sobre Hitler, em livro ou em filme, editadas no pós-guerra, apresenta-o como um palhaço ou um tonto, o que constitui um duplo erro: quanto à verdade e quanto à oportunidade. Em primeiro lugar, Hitler foi eleito democraticamente pelo povo alemão, um povo altamente cultivado que certamente não escolheria um mentecapto para o colocar á frente dos destinos da nação. Tinha um projecto, que pôs em prática, de recuperação do país esmagado pelos ditames do Tratado de Versalhes, e foi aclamado como um salvador da pátria. Em segundo lugar, e porque já eram conhecidas algumas das suas convicções pessoais e das suas posições sobre determinados assuntos, bem como o seu temperamento, convém acautelar a incensação ilimitada da democracia, já que esta, por ínvios caminhos, pode conduzir a desastres planetários como o que resultou da Segunda Guerra Mundial, com 50 milhões de mortos e um cortejo de destruição, sofrimento, doença e miséria em quase toda a Europa.
Voltando a Kershaw: Quem era afinal Hitler?
8 comentários:
Como é possível que Hitler gostasse de livros e depois os mandasse queimar.Com medo deles, por instigação de Gobels,ou por razões desconhecidas.Fica a dúvida.
Este post mostra que o autor é uma pessoa bem informada. deveria ser publicado num jornal onde fazem tanta falta informações históricas. Continue a publicar coisas que pouco se sabem
Porque será que os russos continuam a esconder os livros de Hitler? Mesmo que não os devolvessem à Alemanha, sua legítima proprietária, podiam expô-los como os americanos, que também ficaram com eles.
Todos estes livros deveriam estar em Berlim. São todos uns ladrões.
É um prazer descobrir um blogue intenso sobre livros. Assumir toda a verdade, a lucidez fria do criminoso tal como o crachá odioso, ferrete da matança, incumbe ao Homem Culto. Lembrando-se da sua natureza potencialmente reptiliana e homicida, restar-lhe-ão poucas ilusões a não ser mergulhar nos braços da Graça, apesar de guilhotinar-se nos impasses do Saber de Mais.
Como disse alguém o homem nunca é ele só mas ele e a sua circunstância.
Porque não fala dos outros livros sobre as bibliotecas de Hitler?
Para o Anónimo das 11:19 h:
Escreverei oportunamente sobre outros livros, anteriores ao de Ryback, que se referem à biblioteca de Hitler.
Mas, entretanto, há outros temas interessantes que me apraz abordar.
Não diria que o culto povo alemão votou em Hitler 'naturalmente'. A República de Weimar estava numa crise terrível, a situação estava tão preta (quase 6 milhões de desempregados) que na eleição de abril de 1932 para o Reichstag (na qual os nazistas tiveram 6,4 milhões de votos) até eleitor comunista fez "voto útil" em Hitler. E nas eleições de novembro do mesmo ano os nazistas amargaram uma perda de 2 milhões de votos.
Hindenburg não queria ver Hitler como Chanceler e só o fez a contragosto porque o outro Chanceler de que dispunha, von Schleicher, havia denunciado o próprio filho do marechal num caso de corrupção. No dia 30 de janeiro de 1933, Hitler "presta juramento de fidelidade á República que nunca deixou de combater e irá prontamente liquidar" . Nesse mesmo ano a Alemanhã torna-se uma ditadura de partido único e genocida. O civilizado povo alemão nunca se arrependeu tanto de ter votado naquele homem ridículo (quem o chamava assim era o próprio Röhm, o homem da SA que ajudou Hitler em sua ascensão e foi assassinado a mando dele.
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