sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O MAGO DO KREMLIN

Em 2022 foi publicado em França Le Mage du Kremlin, do escritor ítalo-suíço nascido em Paris Giuliano da Empoli, que logo resolvi comprar, atendendo ao seu conteúdo. Mas, por qualquer razão que agora não recordo, não cheguei a encomendar.

Quando, no fim de 2022, foi editada a primeira tradução portuguesa, novamente decidi a compra, mas ainda desta vez não concretizei a minha aquisição.

Acontece que no mês passado, no Festival de Veneza, foi apresentado o filme homónimo, com realização de Olivier Assayas, em colaboração com Emmanuel Carrère e interpretação de Jude Law no papel de Vladimir Putin. A estreia da película em França está prevista para Janeiro do próximo ano, não havendo ainda, por isso, edição em DVD. Ao ler a notícia decidi que teria mesmo comprar o livro. E assim fiz, mas com dificuldade. Já lá vai o tempo em que visitava diariamente várias livrarias em Lisboa. Agora vou muito raramente à Baixa, onde já praticamente nada existe do meu tempo. Por isso, procuro habitualmente livrarias periféricas. Após algumas tentativas, em vão, foi ainda em Lisboa que consegui comprar O Mago do Kremlin.

Trata-se de um livro fascinante e indispensável para quem deseje compreender a Rússia de hoje. Daí o seu sucesso em todo o mundo e o facto de estar já traduzido em mais de trinta línguas.

Não é um manual de história nem um romance mas uma obra em que a ficção se entrelaça com a realidade tornando compreensíveis muitos episódios da história contemporânea, ainda ininteligíveis para numerosas criaturas. Também é perfeitamente visível a ironia do autor e o seu requintado cinismo.

O livro é construído à volta de Vadim Baranov (uma personagem imaginária) que descreve a forma como Vladimir Vladimirovitch Putin se transformou no novo Czar de Todas as Rússias. Agora retirado na sua fabulosa mansão, Baranov conta ao autor como se tornou conselheiro de Putin e como este se tornou o dramaturgo, o encenador e o actor de uma peça grandiosa que é a própria Rússia, um espectáculo deslumbrante e simultaneamente assustador para o comum dos mortais.

A análise da queda da União Soviética, do inconstante consulado de Mikhaïl Gorbachov, do perturbante período de Boris Eltsin e do advento de Vladimir Putin, a análise do comportamento do Ocidente, maxime do Estados Unidos, em relação à Rússia, da sua incapacidade em compreender a alma dos eslavos, que Dostoievsky tão bem retratou, tudo passa pelo livro de Giuliano da Empoli, em especial uma severa crítica ao american way of life e à estrutural incapacidade dos norte-americano de conseguirem entender a alma russa e até, em geral, a própria alma europeia, se ela verdadeiramente existe.

Não cabe aqui descrever a obra mas não resisto à transcrição, avulsa, de alguns momentos curiosos. 

«Quando pedimos ao nosso público que nos indicasse os seus heróis, as personagens em que se baseia o orgulho da Mãe Rússia, estávamos à espera dos grandes espíritos: Tolstói, Pushkin, Andrei Rublev, ou, sei lá, um cantor, um actor, como aconteceria entre vós. Mas o que nos deram os espectadores, a massa informa do povo habituada a vergar as costas e a baixar o olhar? Só nomes de ditadores. Os heróis deles, os fundadores da pátria, coincidiam com uma lista de autocratas sanguinários: Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, Lenine, Estaline. Fomos obrigados a falsificar os resultados para fazer ganhar Alexandre Nevski, que pelo menos era um guerreiro, não um exterminador. Mas quem recolheu mais votos foi Estaline. Estaline, está a entender? Foi aí que eu compreendi que a Rússia nunca se tornaria um país como os outros. Não que houvesse alguma verdadeira dúvida.» (p. 74)

«Lembro-me de que Boris [Berezovsky] estava tão excitado que entornou com um gesto desajeitado o porta-canetas que tinha à sua frente. Dito isto, o raciocínio dele não era desprovido de sentido. No início dos anos noventa, Gorbachev e Ieltsin tinham feito a revolução, mas no dia seguinte a grande maioria dos russos havia acordado num mundo que não conhecia, no qual não sabia como viver. Antes do afundamento do sonho americano e do sonho da Europa, houve o afundamento do sonho soviético. Entre vós ninguém se apercebeu disso porque vos parecia impossível que um sonho fosse feito de coisas tão pobres e tão cinzentas: uma profissão respeitada como a de funcionário ou de professor, um pequeno Zhiguli [automóvel baseado no Fiat 124 que foi fabricado na União Soviética e na Rússia pela AvtoVAZ entre 1970 e 2012], uma dacha com a sua horta, as férias em Sochi ou de tempos a tempos em Varna, com as pernas a mergulhar no mar Negro e a perspectiva de um bom churrasco entre amigos. E, contudo, esse modelo tinha a sua força e a sua dignidade. Os seus heróis eram o soldado e a mestre-escola, o camionista e o infatigável operário: era a eles que eram dedicados os anúncios nas ruas e nas estações de metro. Em poucos meses, tudo isso foi varrido. os novos heróis, os banqueiros e as top-models impuseram o seu domínio, e os princípios em que se fundava a existência de trezentos milhões de habitantes da URSS foram invertidos. Eles tinham crescido numa pátria e de repente encontravam-se num supermercado. A descoberta do dinheiro foi o acontecimento dessa época que mais transtornou. E a seguir, a descoberta de que o dinheiro podia nada valer, com a queda da bolsa e a inflação em três mil por cento.» (pp. 83-84)

Do encontro do autor com o famoso Eduard Limonov:

«- O que é interessante é que as pessoas como tu pensam que se trata de um modelo a seguir. Mas, na verdade, os americanos são uns zombies; não há maior pecado do que delapidar a nossa vida, Vadia. Eles nem sequer são aflorados pela ideia de que o fito da existência humana possa não ser viver-se o mais confortavelmente ou o máximo tempo possível. Foi quando vi que Ieltsin seguia esse caminho e queria transformar a Rússia numa sucursal low-cost do hospício americano que eu decidi fundar o Partido Nacional-Bolchevique. E sabes porque lhe chamei assim? Para vos enfurecer, para concentrar num único nome tudo o que vocês consideram ser o mal, todas as ideias que ameaçam o pequeno consumidor satisfeito a que vocês reduziram o homem.

- As paixões fazem viver o homem, a sabedoria fá-lo somente durar.

Limonov olhou-me de lado. Não gostava de ser interrompido, muito menos por velhas citações que banalizassem as suas iluminações.

- De facto, é isso - prosseguiu ele. -  No Partido Nacional-Bolchevique juntámos ex-estalinistas e ex-trotskistas, homossexuais e skinheads, anarquistas, punks, artistas conceptuais e fanáticos religiosos, budistas e ortodoxos. Quando organizámos o nosso primeiro congresso, o mais complicado foi dispô-los na sala de maneira a não partirem a cabeça uns aos outros. Sempre que penso nisso, ainda não sei como é que fizemos...» (pp. 140-141)

Conversa entre Vladimir Putin e Vadim Baranov:

«Putin teve um estremecimento e, pela primeira vez desde que o conhecia, percebi um clarão de ódio no seu olhar.

- Mete uma coisa na cabeça, Vadia, os mercadores nunca dirigiram a Rússia. E sabes porquê? Porque não são capazes de garantir as duas coisas que os russos pedem ao Estado: ordem no interior e poderio no exterior. Só por duas vezes, por dois breves períodos, os mercadores governaram o nosso país: poucos meses após a revolução de 1917, antes do advento dos bolcheviques, e poucos anos após a queda do Muro, durante o período de Ieltsin. E qual foi o resultado? O caos. A explosão da violência, a lei da selva, os lobos que saem das florestas e entram nas cidades para devorar a população sem defesa.» (pp. 156-157)

Para a realização dos Jogos Olímpicos de Sochi, que Baranov superintendeu:

«Devo dizer que cada um desempenhou de bom grado o papel que lhe fora atribuído. Alguns até com talento. Os únicos que não contratei foram os professores, os tecnocratas responsáveis pelas catástrofes dos anos noventa, os porta-estandartes do politicamente correcto e os progressistas que se batem por lavabos transgénero. Esses, preferi deixá-los para a oposição; com efeito, era necessário que a oposição fosse constituída precisamente por personagens como eles. De certa maneira, tornaram-se os meus melhores actores, nem sequer fomos obrigados a contratá-los para que trabalhassem para nós. Pequenos moscovitas que se sentiam em terra estranha logo que ultrapassavam o terceiro anel da periferia, pessoas que nem teriam sido capazes de deslocar um cadeirão - quanto mais governar a Rússia... Cada vez que tomavam a palavra, consolidavam a nossa popularidade. Os economistas com a sua arrogância de PhD, os oligarcas sobreviventes dos anos noventa, os profissionais dos direitos humanos, as pasionarias feministas, os ecologistas, os vegans, os activistas gay: um maná caído do céu para nós. Quando as raparigas daquele grupo de música profanaram a Catedral do Cristo Salvador, berrando obscenidades contra Putin e o patriarca, fizeram-nos ganhar cinco pontos nas sondagens.» (pp. 182-183)

Putin sobre Boris Berezovsky (que apareceu enforcado no seu apartamento em Londres):

«- Claro, ele ajudava os inimigos da Rússia em toda a parte, na Ucrânia, na Letónia, na Geórgia, é verdade. Sabe-se lá como as coisa aconteceram ao certo. Estás a ver, Vadia, os teóricos da conspiração julgam-se muito espertos, mas são uns grandes ingénuos. Gostariam que tudo tivesse um sentido oculto e desvalorizam sistematicamente o poder do disparate, da distracção, do acaso. Dito isto, tanto melhor assim: é o contrário do que eles quereriam, mas os teóricos da conspiração só nos dão força. Se em lugar de se ver o poder como aquilo que ele é, com as suas fraquezas humanas, lhe conferirmos a aura de uma identidade omnisciente, capaz de urdir não sei que trama, fazemos-lhe o maior cumprimento possível, não achas? Fazemo-lo crer ainda maior do que ele é.

- "Puisque ces mystères nous dépassent, feignons d'en être l'organisateur." [adaptação de uma frase de Jean Cocteau em Les Mariés de la Tour Eiffel]

O Czar detestava as minhas citações e não falava francês, mas naquela manhã eu não estava num humor que lhe agradasse. Fitou-me por um instante em silêncio, e depois decidiu ignorar-me.» (pp. 224-225)

«Diante de mim, o Czar lia a carta de Berezovsky. A seguir, pousou-a, imperturbável, como uma pedra apanhada no fundo de uma torrente. Dei-me conta nesse momento de que Boris também tivera razão sobre este ponto. Putin não era um grande actor, como eu julgara, mas somente um grande espião. Ofício esquizofrénico que requer, é certo, qualidades de actor. Ms o verdadeiro actor é extrovertido, o seu prazer de comunicar é real. O espião, em contrapartida, tem de saber bloquear todas as emoções, caso as tenha. Na prática, esses dois talentos servem-lhe, ele tem de simular a empatia do actor e simular a frieza do cirurgião na sala de operações. Mas se Putin não era um grande actor, eu também não era um grande encenador, quando muito um cúmplice.» (pp. 225-226)

«Mas quando apresentei a minha demissão, o Czar tinha outra coisa em mente. Creio que acolheu a minha retirada com alívio: já não precisava de mim. Inventar uma ordem nova exige uma certa dose de imaginação, mas basta a devoção cega dos servidores para a fazer respeitar.» (p. 260)

«No Ocidente, os vossos governantes são como adolescentes, não podem ficar sozinhos, procuram sempre um olhar que pouse sobre eles, tem-se a impressão de que, se fossem obrigados a passar um dia num quarto, sem companhia, se dissolveriam no ar como um sopro de vento morno. O nosso czar, pelo contrário, vive na solidão e nutre-se dela. É no recolhimento que ele acumula a força que surpreende tantos dos vossos observadores. Com o tempo, isso tornou-se quase um elemento, como o céu ou o vento. Vocês esqueceram-se do que significa viver como adulto, plantado na realidade. Julgam que um chefe é uma espécie de animador, querem chefes que se assemelhem a vós, que estejam ao vosso nível. A distância preserva a autoridade. Como Deus, o Czar pode ser objecto de entusiasmo, mas sem que ele próprio se entusiasme, a sua natureza é necessariamente indiferente. O rosto dele já adquiriu a palidez marmórea da imortalidade.» (pp. 260-261)

«Imaginemos agora que o poder deixe de necessitar da colaboração humana. Que a sua segurança - e a sua força - seja garantida por instrumentos que não têm a possibilidade de se revoltar contra ele. Um exército de sensores, de drones, de robôs capazes de atacar a qualquer momento, sem a menor hesitação. Isso seria, finalmente, o poder na sua forma absoluta. Enquanto se basear na colaboração de homens de carne e osso, todo o poder, por mais duro que seja, deverá contar com o consentimento destes. Mas quando for baseado em máquinas que mantenham a ordem e a disciplina, não haverá mais nenhum freio. O problema das máquinas não é que elas venham a revoltar-se contra o homem, é que ela sigam as ordens à letra.» (p. 264)

E como morceau de bravoure

«Doravante, onde quer que nos encontremos, podemos ser identificados, chamados à ordem, neutralizados se necessário. O indivíduo solitário, o livre-arbítrio, a democracia, tornaram-se obsoletos: a multiplicação dos dados transformou a humanidade num único sistema nervoso, um mecanismo feito de configurações standard tão previsível como um bando de pássaros ou um cardume de peixes. Não estamos ainda em guerra, mas já estamos militarizados. Os soviéticos tinham sonhado com isso. O nosso Estado sempre se baseou na mobilização. Éramos uma nação inteiramente fundada na ideia da guerra, da defesa da pátria contra agressões que pudessem vir do estrangeiro. Todos os sacrifícios, todos os inúmeros atentados à liberdade, se justificavam assim: a defesa de uma liberdade maior, a da mãe pátria. O KGB tinha projectado, nos anos cinquenta, um sistema para registar todas as relações de cada cidadão soviético. O vertuskka [Vertushka (em russo: Вертушка), também conhecida por Kremlyovka (em russo: Кремлёвка) ou Spetssvyaz (em russo: Спецсвязь), é o nome coloquial de um sistema fechado de comunicações telefónicas entre partidos políticos e governos na União Soviética e na Rússia. Recebeu o nome informal (calão) de Vertushka porque, ao contrário da rede telefónica convencional, onde a ligação era feita através de um operador, os assinantes ligavam-se uns aos outros utilizando uma central telefónica automática e um disco de marcação chamado Vertushka em russo. A existência do sistema era uma novidade numa era dominada pelas centrais telefónicas manuais. O telefone não utilizava disco de marcação e certos subsistemas do sistema ligavam-se diretamente ao Kremlin. Sobretudo no período soviético, esta ligação permitia ao líder comunicar com subordinados importantes, como secretários regionais do partido, oficiais militares de alta patente ou chefes de importantes fábricas estatais. O sistema governamental ATS, que sofre modernizações regulares, continua em funcionamento até aos dias de hoje] do meu pai era o símbolo disso. Mas o Facebook foi muito mais longe. Os californianos ultrapassaram todos os sonhos dos velhos burocratas soviéticos. Não há limites para a vigilância que eles conseguiram instaurar. Graças a eles, qualquer momento da nossa existência se tornou uma fonte de informações.» (p. 265)

 * * * * *

Como Vladimir Vladimirovitch Putin continua vivo e presidente da Federação Russa o fim do livro não é o fim da história. A edição original tem três anos e Giuliano da Empoli não podia, nem pode, prever os acontecimentos que terão o Kremlin por palco. Por isso encontrou um expediente original para concluir a obra: a aposentação voluntária do Vadim Baranov, o "mago do Kremlin".

Não será de mais repetir que se trata de um livro que observa com particular acuidade a Rússia de hoje e o homem de sempre (parafraseando Leonardo Coimbra), o mundo em que vivemos e o mundo provável do futuro.

Vale a pena ler. Espero que o filme faça jus ao livro.

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

O LOUCO DE DEUS E O LOUCO SEM DEUS

Foi publicado no passado mês de Abril um livro, inesperado, do escritor espanhol Javier Cercas (n. 1962) com o título El loco de Dios en el fin del mundo.

O autor, membro da Real Academia Española, ateu convicto e anti-clerical notório, foi convidado (para sua surpresa), em Maio de 2023, por individualidades da Santa Sé, para acompanhar o Papa Francisco na sua viagem à Mongólia e escrever depois um livro sobre a viagem, sobre a Igreja, sobre o Vaticano e sobre o que lhe agradasse. Ao princípio, julgou tratar-se de uma piada, mas não era.

Ao longo de quase 500 extensas páginas, Javier Cercas descreve com brilho, precisão, informação cuidada, perspicácia e uma boa dose de ironia as suas impressões da viagem e a sua convivência com a Cúria vaticana e com o próprio Papa.

O escritor acabou por aceitar o convite lembrando-se de sua mãe: «Fue justo entonces, tras recordar esa visión salvífica, cuando me acordé de mi madre viva y de mi padre muerto, ambos católicos a machamartillo, me acordé de que, desde la muerte de mi padre, mi madre no paraba de repetir que iba a encontrarse con él después de muerta, y me dije que, si podía estar uns minutos a solas con el papa y hablarle de la resurreción de la carne y la vida eterna y preguntarle si era verdad que mi madre volvería a ver a mi padre, entonces tenía todo el sentido del mundo escribir aquel libro.» (p. 20). Embora não lhe fosse garantido a priori um encontro a sós com o Papa, mesmo por breves minutos, Cercas acedeu ao convite formulado, avisando os proponentes do risco que corriam com tão imprevisível ideia.

O livro começa pela descrição dos encontros que manteve no Vaticano com alguns dos mais destacados dignitários da comunicação social da Santa Sé, a fim de inteirar-se de uma série de questões relacionadas com o funcionamento de Cúria e as viagens papais. Reuniões que também aproveitou para interrogar os seus interlocutores sobre problemas da Fé, da Doutrina, da Igreja em geral.  Entre as personalidades contactadas distinguem-se o jornalista Paolo Ruffini, Prefeito do Dicastério para a Comunicação (o primeiro leigo a ser nomeado prefeito de um  dicastério romano) e o cardeal Tolentino de Mendonça, Prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, a quem dedica palavras elogiosas.

Também obtém uma audiência do cardeal Gianfranco Ravasi, presidente emérito do Pontifício Conselho para a Cultura, sobre o qual comenta: «Más preguntas: quiso decirme algo el cardenal Ravasi en el Palazzo di Spagna, con sus risas y sus sonrisas y sus citas en lenguas herméticas, y tal vez no se atrevió a decírmelo para no perturbar a los religiosos que nos escuchaban, para no perturbar a mi madre, para no perturbarme a mí? O lo dijo, pero no lo dijo abiertamente, y yo no acerté a entenderlo? Quiso decir el cardenal lo que a mí me pareció entender, y es que un católico no siempre está seguro de que después de la muerte lleguen la resurrección de la carne y la vida eterna, y que estas dudas procuran angustia y desasosiego, como se las procuraron a san Manuel Bueno, mártir? O, por el contrario, quiso decir que la resurrección de la carne y la vida eterna no deben tomarse al pie de la letra, como se lo tomam mi  madre y millones de cristianos, sino de una manera simbólica, igual que si fueran figuras poéticas de una grandiosa composición teológica conocida como cristianismo? Acaso intentó decir que, en realidad, ni el papa ni los cardenales creen en Dios, no al menos con la convicción con que cree mi madre, con la fé sin preguntas de los feligreses de Valverde de Lucerna, con la fe proverbial del carbonero? Fue por esa razón por la que todas las personas a quienes propuse el test de resistencia del libro sobre el papa sugirieron que, a mi pregunta por la resurrección de la carne y la vida eterna, Bergoglio respondería con una evasiva (una metáfora, un circunloquio, una cita evangélica, la glosa de un pasaje bíblico), que el papa no diría que no creía que ma madre no volvería a ver mi padre después de muerto, porque no podía decirlo, pero tampoco que sí lo creía, porque no se atrevería a decírselo a un maldito intelectual ateo?» (pp. 40-41)

Javier Cercas discorre sobre Francisco de Assis, que foi chamado o "louco de Deus" e lembra que Jorge Bergoglio, ao escolher o nome pontifício de Francisco, é também um "louco de Deus", com uma vocação missionária que evoca a Ordem dos Frades Menores.

Dissertando sobre religião, escreve Cercas: «por eso escribe Nietzsche, en Ecce Homo, que el cristianismo representa "la negación de la voluntad de vida hecha religión", o, en El ocaso de los ídolos, que hay en Dios "una declaración de guerra a la vida, a la Naturaleza, a la voluntad de vida" y que la concepción cristiana de Dios "es una de las más corruptas alcanzadas sobre la Tierra"; por eso añade en El Anticristo que, como el cristianismo "se ha erigido en defensor de todos los débiles, bajos y malogrados", esa religión transforma en ideal el "repudio de los instintos de conservación de la vida pletórica" y considera "al hombre pletórico como hombre típicamente reprobable, como 'réprobo' ". Una vez que abandoné la fe cristiana, yo soñaba con transformarme en uno de esos hombres fuertes de Nietzsche, réprobos y reprobables, uno de esos insumisos que no se resignan a su propia debilidad ni aceptan servidumbre ni mentira alguna - empezando por la mentira de la religión -, uno de esos superhombres veraces y aspirantes a la autonomía individual que copian el gesto soberbio del ángel caído y su grito rebelde de guerra ("Non serviam!"), uno de esos espíritus libres poseídos como se lee en La voluntad de poder, "por la voluntad incondicional de decir no allí donde el no es peligroso".» (pp. 45-46)

Não posso deixar de transcrever esta passagem, com a qual concordo em absoluto:

«En qué quedamos, entonces: es Francisco un papa de izquierdas o de derechas? No cabe ninguna duda de que hoy, en muchos sentidos, Bergoglio se halla politicamente más a la izquierda que sus predecessores en la silla de san Pedro; tampouco de que la izquierda se siente próxima a él por su énfasis en la igualdad, en la justicia social y en la solidaridad con los desfavorecidos, así como por su rechazo a lo que alguna vez llamó el "ultraliberalismo individualista" y el "hedonismo consumista". Desde esta perspectiva, no sería inexacto considerar su papado como una reacción frente al conservadurismo de Juan Pablo II, que mezcló la defensa de la cristandad tradicional con la connivencia o el apoyo a ideologías políticas reaccionarias y sufocó o relegó la vocación social de la Iglesia.» (pp. 56-57)

A propósito do humor de Bergoglio:

«En el otoño de 2021 aparicieron en las paredes del Vaticano unos pasquines escritos en dialecto romanesco donde se le acusaba de haber decapitado a la aristocrática y tradicionalista  Orden de Malta por forzar la dimisión de Matthew Festing, su reaccionario prior. Un periodista del diario alemán Die Zeit le interrogó al respecto, y el papa elogió la belleza de los pasquines, añadió que eran claramente "obra de una persona muy cultivada". "Alguien por aqui?", preguntó el periodista, refiriéndose al Vaticano. "No", replicó Bergoglio. "He dicho una persona cultivada". Chesterton hubiera aplaudido.» (p. 64)

Sobre o louco de Nietzsche:

«El loco de Nietzsche es un demente que enciende un farol en pleno día y corre al mercado gritando: "Busco a Dios! Busco a Dios!" La gente se ríe del loco, mientras él se pregunta, retóricamente: "Que adónde se ha ido Dios? Os lo voy a decir", se contesta. "Lo hemos matado: vosotros y yo. Todos somos su asesino!" Y a continuación suelta un epigrama como un grito terrible cuyo eco todavía no se ha extinguido: "Dios ha muerto, e nosotros lo hemos matado!" Ese grito es de alegría o de pena? Hace feliz al loco la muerte de Dios, la liberación de la eterna autoridad suprema, el final de aquello que siempre ha impuesto normas y limites, pero también ha otorgado sentido a todo? Está satisfecho el loco con ese crimen? No: está desesperado: para el loco, la muerte de Dios no es un acontecimiento gozoso: es un acontecimiento atroz, que no depara al mundo alegría sino desolación. "Cómo hemos podido hacerlo?", se pregunta el loco, incapaz de dar crédito a aquella enormidad. "Cómo hemos podido bebernos el mar? Quién nos prestó la esponja para borrar el horizonte? Quê hicimos cuando desencadenamos la Tierra de su Sol? Hacia dónde caminará ahora? Hacia dónde iremos nosotros? Lejos de todos los soles? [...] Cómo podremos consolarnos, asesinos entre los asesinos? [...] No es la grandeza de este acto demasiado grande para nosotros?" Éste es el loco de Nietzsche: un loco sin Dios, pero también un loco que no está loco, o no del todo, uno de esos locos lúcidos que, como don Quijote, son más lúcidos que los cuerdos porque ven más allá que los cuerdos, más allá de lo que son capaces de ver los hombres comunes y corrientes, aquellos que solo saben reírse de él.» (pp. 84-85)

Sobre os abusos sexuais:

«-Entonces cómo vamos a exigirle a un pobre cura perdido en medio de África que sea siempre sublime, que no ceda a sus impulsos? No es pedir demasiado? No es, de algún modo, pensar que el cura es capaz de hacer aquello que los demás no podemos hacer? No es esto una forma secreta de clericalismo? No es lógico que este cura, en un momento de debilidad, acabe haciendo de mala manera cosas que hubiera debido hacer de buena manera? En fin, padre Spadaro [sacerdote jesuíta, exercendo o cargo de subsecretário do Dicastério para a Cultura e Educação desde 2024]: el sexo no forma parte del amor? Cómo es possible que la Iglésia tenga una relación tan complicada con él, a menudo tan poco saludable y tan retorcida, por no decir tan perversa?

- Me has hecho muchas preguntas ...

El reproche, formulado con una sonrisa indulgente, es justíssimo, y me disculpo por mi vehemencia (o por mi charlatanería). Ahora el padre Spadaro no tiene necesidad de reflexionar; sin duda lo ha hecho mientras me escuchaba.

- Lo primero: no se debe confundir el problema de los abusos con el celibato - dice - . Son cosas distintas: los abusos ocurren sobre todo en la familia. No tienen nada que ver con el celibato.

Silencio.

- Está seguro? - pregunto.

- Uno no abusa de menores porque no está casado.

- No, pero quien no está casado también tiene sus necesidades sexuales y, si no las satisface por las buenas, es lógico que pueda acabar satisfaciéndolas por las malas. Para la Iglesia, el matrimonio da salida a las pulsiones sexuales, pero si las mantienes encerradas...

- Insisto: son cosas distintas. La mayor parte de los abusos de menores de dan em familia, con personas casadas que abusan de los menores. Así que... Y otras dos cosas que hay que separar son la homosexualidad y la pederastia: son dos problemas diferentes. En cuanto al celibato, es verdad: puede ser duro, difícil de asumir. Pero no creo que el marimonio sea la solución de todos los problemas... Eso lo vemos en otras religiones, el protestantismo o el anglicanismo o la Iglesia ortodoxa, donde les sacerdotes pueden casarse. Así que no creo que sea la solución. Aunque es verdad que hoy, en la Iglesia católica, el problema se plantea con más fuerza que nunca. De todos modos, insisto, el celibato no está ligado al abuso.

- Se refiere al abuso de los niños. Pero el abuso no es solo de los niños: es también de las mujeres. El celibato tampoco guarda ninguna relación con el?

Por toda respuesta, Spadaro resopla, indeciso.

- Está seguro de que tampoco guarda relación con la pederastia? - porfío -. Un hombre no puede encontrar una válvula de escape a sus urgencias sexuales en las relaciones con niños?

- No lo sé. - Spadaro me enseña las palmas de sus manos, como si tratase de protegerse con ellas -. No soy un experto: quizá es mejor hablar con los expertos. Pero yo entiendo  que son dos cosas distintas: una es tener propensión hacia los menores y otra es ser una persona que siente la soledad, que necesita satisfacer sus necesidades y más bien buscaría a alguien de su edad, no a un niño.

- Sí, ésa es la conclusión a que llegaron los expertos reunidos por el papa. Pero, con franqueza, no mi parece muy convincente; ni a mí ni, por cierto, a bastantes sacerdotes, que viven en sus carnes el problema. Insisto: un sacerdote tiene los apetitos sexuales que todos tenemos y, si no encuentra forma legítima de darles salida, al final la salida puede ser ilegítima. Con mujeres o con niños dóciles a su autoridad. Es lógico. Y yo me pregunto si a un cura se le puede exigir lo que no se le exige a ningún otro ser humano, y me pregunto también si esa exigencia no es una manifestación de clericalismo.

- El riesgo existe, es verdad - acepta Spadaro -.  Creer que el cura está por encima del deseo sexual es un error y sería en efecto una forma de clericalismo. Sí. Lo que yo digo es que los abusos a niños los cometen tanto los célibes como los casados y por lo tanto el celibato y los abusos de menores son problemas distintos. Otro asunto es la soledad del sacerdote...» (pp. 110-111-112)

O encontro com o cardeal Tolentino:

«Con el cardenal Tolentino ocurre algo insólito: la conexión es instantánea. El cardenal es poeta y la conexión la crea la poesía; o más exactamente: un poeta; o más exactamente: un poema. Cuando me recibe en la sede del Dicasterio para la Cultura y la Educación, en el palazzo delle Congregazioni, plaza Pio XII, junto a la basílica de San Pedro, al cardenal le falta tiempo para bromear sobre la aspereza de la vida de los escritores y las servidumbres de la vida literaria - los viajes, los festivales, las lecturas públicas -; luego menciona a un poeta surealista portugués, amigo suyo: Mário Cesariny.

- No se si lo conoces.

- Por supuesto.

El cardenal clava en mí unos ojos ilusionados.

- No puede ser.

Mi respuesta consiste en recitar un poema de Cesariny que de joven recitaba a voz en grito en mis noches alcohólicas:

Al final lo que importa no es la literatura

ni la crítica de arte ni la cámara escura.

Enardecido como un poeta adolescente, el cardenal se suma a mi recitado, pero en seguida me deja seguir solo, como si quisiera comprobar que me sé de memoria la pieza de su compadre; hasta que llego a mi estrofa favorita:

Al final le que importa es no tener miedo: cerrar los ojos frente al precipicio

y caer verticalmente en el vicio.

Celebramos esos versos salvajes con una carcajada común.» (pp. 118-119)

A conversa prossegue com o cardeal Tolentino sobre literatura e a ilha da Madeira, e a certa altura há uma referência ao escritor português Valter Hugo Mãe:

« El cardenal José Tolentino de Mendonça es portugués (de Machico, en la isla de Madera), habla un italiano com resonancias portuguesas y se comporta con una dulzura y una humildad portuguesas; fisicamente es pequeñito, muy moreno, casi calvo. Ha publicado tantos libros eruditos como su predecesor en el Dicasterio, el cardenal Ravasi, con quien años atrás hablé sobre literatura y religión en el palazzo di Spagna; su poesía le ha valido todos los premios de su país. "Ojo con él", me dijo meses después de nuestro encuentro el escritor Valter Hugo Mãe. "Es el mejor poeta actual de mi lengua. Merecería ser premio Nobel. Y Papa".» (p. 120)

[Permita-se-me um aparte: Não sei se Javier Cercas está a gozar connosco, com Mãe, com Tolentino ou se é mesmo ignorância]

Continuando com Tolentino:

«- Nosotros, los occidentales, tenemos una historia difícil de lucha entre razón y fe - dice el cardenal con su voz densa, aterciopelada -. Pero yo, como europeo, considero que esa lucha non conduce necesariamente al ateímo. Dostoievski, por ejemplo, decía: "Mi fe surge del horno de mis dudas". Así que podemos pensar que incluso las preguntas más extremas que la razón occidental ha hecho pueden ser un componente de la fe. Y seguramente la fe del papa Francisco no es una fe que se no hace preguntas. Yo creo que a él le gusta tanto hablar con laicos porque comprende los retos, las dificultades de la fe. También creo que la razón puede purificar una fe demasiado fácil. Creer no debe ser demasiado fácil. Flannery O'Connor decía: "Creer es más difícil que no creer".» (p. 132)

Sobre a Ucrânia:

«Al llegar a mi dormitorio de la Casa Paolo VI me tumbo en la cama a leer los periódicos con mi iPad. En El País leo una noticia a toda página sobre el papa, o más bien sobre el papa y sobre la guerra que devasta Ucrania desde hace año y medio. "El papa Francisco enfurece a Ucrania al elogiar el pasado imperial ruso", reza el título; y la entradilla: "Líderes religiosos y políticos piden explicaciones al Vaticano en una nuova polémica protagonizada por el pontífice y sus palabras próximas al discurso del Kremlin". Lo ocurrido es un ejemplo de la famosa imprevisibilidad de Bergoglio: tras un discurso por videoconferencia dirigido a jóvenes católicos de San Petersburgo, el papa improovisó unas palabras en las que los animaba a sentirse orgullosos de su pasado ruso; el problema es que, en vez de citar a Pushkin y Dostoievski, el papa evocó a Pedro el Grande y Catalina II, los mismos representantes de "la gran Rusia" - expresión venenosa utilizada también por el papa - que esgrime Vladimir Putin para justificar la invasión de Ucrania. Es obvio que la improvisación de Francisco fue malinterpretada o tergiversada tanto por los ucranianos (que abominaron de ella por considerarla una defensa de Putin) como por los rusos (que la celebraron por idéntico motivo): el papa no pretendía aplaudir la invasión rusa de Ucrania ni animar a los jóvenes ctólicos rusos a sumarse a ella; no es menos obvio, sin embargo, que sus palabras fueron como mínimos torpes y sus ejemplos como mínimo infelices, y que él mismo se ha ganado a pulso todos los malentendidos con la tibieza de su postura frente a esa guerra: baste recordar que en junio de 2022, cuatro meses después del inicio de la invasión rusa, Francisco declaró que ésta "había sido quizá provocada o no evitada" por la OTAN. Un hecho parece en cualquier caso transparente: el papa Francisco padece unos recelos antiamericanos y una mentalidad de la guerra fría - ambos del todo comprensibles en un latinoamericano de su generación - que le ciegan a la obviedad de que la guerra de Ucrania es, en lo esencial, una simple, salvaje y anunciada agresión imperialista ejecutada friamente por un tirano que sueña con reconstruir con la Rusia actual el imperio abolido de los zares.» (pp. 138-139)

[Neste ponto há que reconhecer que o papa Francisco tinha toda a razão. Javier Cercas deve estar confuso, o que se lamenta num escritor tão laureado como ele, ou então, na pior das hipóteses, ainda que não de todo descartável, trata-se de um avençado de George Soros ( György Schwartz).]

Onde o autor se confessa ex-toxicodependente:

«Karl Marx observó famosamente que la religión es el opio del pueblo. En lo que a mí respecta, acertó de lleno: la prueba es que, cuanto abandoné el catolicismo a raíz de la lectura de San Manuel Bueno, mártir, me lancé en busca de drogas alternativas; la más potente, eficaz y duradera ha sido la literatura, pero he consumido muchíssimas otras, incluido el alcohol, el tabaco, la marihuana, el hachís y la cocaína. De unos años para acá, sin embargo, la que más me pone (aparte de la literatura) es correr, así que cada mañana corro durante cincuenta minutos; se trata de una droga brutalmente adictiva: si no corro un día, me pongo nervioso; si no corro dos días, me pongo nerviosísimo; si no corro tres días, me entran ganas de practicar el canibalismo.» (p. 140)

Após as reuniões no Vaticano para se familiarizar com os organismos da Igreja Católica e com o pensamento do Papa, e para lhe ser explicado o objectivo da visita de Francisco e os procedimentos inerentes, Javier Cercas embarca no avião papal. 

«De modo que aquí estoy yo, ateo y anticlerical, laicista militante, racionalista contumaz e impío riguroso, volando en dirección a Mongolia con el anciano vicario de Cristo en la Tierra, esperando que termine de saludar a los vaticanistas y que llegue mi turno para poder interrogarle sobre la resurrección de la carne y la vida eterna, para que me diga si mi madre verá a mi padre más allá de la muerte, para escuchar su respuesta y llevársela a mi madre. He aquí un loco sin Dios persiguiendo al loco de Dios hasta el fin del mundo.» (p. 211) 

Durante o voo, o autor terá obtido alguns minutos a sós com o Papa, assunto que abordaremos no fim.

Em Ulan Bator, capital da Mongólia, Javier Cercas encontra-se com diversas personalidades locais e visita diversos locais religiosos e profanos. Francisco é recebido solenemente pelo presidente Ukhnaagiin Khürelsükh e pelos dignitários oficiais. O autor conversa com o cardeal Giorgio Marengo, bispo italiano da Prefeitura Apostólica de Ulan Bator e com o célebre missionário padre Ernesto Viscardi.

Além do budismo e do xamanismo, preponderantes, existem confissões cristãs na Mongólia: católicos (poucos), protestantes (os mais representados), mormones, evangélicos, ortodoxos.  

A visita do papa à Mongólia mostra o interesse de Francisco pelas pequenas comunidades católicas longínquas, mas também é certo, que nunca tendo podido visitar a Rússia e a China, o Papa aterrou entre os dois países, o que encerra sem dúvida um significado não despiciendo na diplomacia pontifícia.

Não cabe obviamente neste texto a descrição da estada da comitiva papal na Mongólia.  

De regresso ao Vaticano, Javier Cercas volta a encontrar-se com algumas das personalidades com quem se avistara antes da partida. E com outras pela primeira vez, como é o caso da sua reunião com o cardeal Víctor Manuel "Tucho" Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé. Escreve o autor:

«El Gran Inquisidor.

Así es como llamo para mis adentros a Víctor Manuel "Tucho" Fernández, prefecto del Dicasterio para la Doctrina de la Fe, antiguo Santo Oficio, antigua Inquisición, desde que Fazzini me anunció que tal vez podría conversar con él. El Gran Inquisidor: como el personaje de Los hermanos Karamázov (o de la leyenda que Iván Karamázov le cuenta a su hermano Aliosha en la novela de Dostoievski), aquel individuo que le exige a Jesucristo resucitado que regrese a su tumba para que la Iglesia pueda seguir administrando su legado y convertiendo su mensaje emancipatorio de amor en un mensaje de terror y sumisión nacido de un concepto del hombre espeluznantemente lúcido y enteramente opuesto al de Jesucristo ("Para el hombre no hay preocupación más constante y atormentadora", dice el Gran Inquisidor, "que la de buscar cuanto antes, siendo libre, ante quién inclinarse").

Lo cierto sin embargo es que, al menos a primera vista, el Gran Inquisidor de Francisco no pede ser más opuesto al Gran Inquisidor de Dostoievski. Es último es un anciano de casi noventa años, aalto, sombrío e intimidante, de cara enjuta y ojos hundidos, que viste un hábito monacal viejo y tosco; tiene unas pobladas cejas canosas y su mirada centellea "con siniestro fuego"; no menos siniestros son los auxiliares, los esclavos y la guardia que lo acompañan. El Gran Inquisidor de Bergoglio, en cambio, se presenta solo en la sala de reniones que Fazzini nos ha cedido y, si no fuera por su clergyman yo nunca habría adivinado al heredero de Torquemada en este tipo calvo, longilíneo y sonriente, con un no sé qué de pingüino (ou tal vez de cigüeña, o tal vez de una mezcla imposible de pingüino y cigüeña), un hombre que me estrecha la mano buscándome los ojos con una curiosidad afable.» (pp. 435-436)

Do longo diálogo com o cardeal retenho:

«Padre Fernández, podría explicarme a qué se dedica hoy el Santo Ofício?

Mi interlocutor responde sin vacilar.

- Históricamente, el Santo Ofício buscaba preservar la integridad de la fe, impedir que se produjeran errores doctrinales - cuenta -. Y, claro, es verdad: en su momento llegó a extremos terribles, como el de Giodano Bruno, quemado vivo en la hoguera, o como los de la Inquisición española, solo superada en crueldad por la Inquisición calvinista, mucho peor que la nuestra... Inquisición y Santo Ofício eran lo mismo, en aquella época. Luego, con el tiempo, la Inquisición desapareció y el Santo Ofício mantuvo esa función de cuidado de la integridad de la fe. Y a principios del siglo XX, cuando la Iglesia dio sus batallas contra el Modernismo teológico y acabó condenándolo, el Santo Ofício (y más tarde el actual Dicasterio para la Doctrina de la fe) funcionó casi como un servicio de inteligencia, como un sistema de control; no se quemaba ni se torturaba a nadie, como en tiempos de la Inquisición, pero también era una fuente de sufrimiento y de miedo...» (p. 440)

Também:

«- Cual va a ser la misión del Santo Ofício durante su mandato? El papa le ha encargado renovarlo?

El prefecto apura el vaso y lo deja frente a él.

- Hace un par de meses, a principios de julio, el papa me mandó una carta. En ella me decía que era necesario hacer algunos cambios en el dicasterio, de tal manera que se convierta en un lugar de fomento del pensamiento teológico y la investigación... Nada de salir a la caza de herejes y herejías. - "El dicasterio que presidirás", escribió Bergoglio en esa carta, "en otras épocas llegó a utilizar métodos inmorales. Fueron tiempos donde más que promover el saber teológico se perseguián posibles errores doctrinales. Lo que espero de vos es sin duda algo muy diferente" -. Si a alguien se le acusa de algo, el dicasterio debe ser un espacio de debate con esta persona, un instrumento que nos permita averiguar se tiene una inquietud legítima que tal vez hay que tener en cuenta, o si algo que a simple vista parece un error puede ser en realidad un intento de desarrollar un aspecto o un problema que ha sido olvidado, o que no ha sido suficientemente pensado en la Iglesia. Cosas de ese tipo... En definitiva, lo que el papa me ha pedido es una reconfiguración del dicasterio en esa línea más abierta, ponderada y tolerante: sustituir las sanciones por el diálogo, la persecución por la reflexión.» (pp. 446-447)

Continuando:

«Admiro el pragmatismo humilde del Gran Inquisidor de Bergoglio - que horrorizaría al Gran Inquisidor de Dostoievski -, pero a mí el argumento de Pascal me sigue pareciendo de una mezquindad hedionda: un win-win hipocritón y ventajista de merchachifle de Dios.

Me explico.

Existe una ética religiosa y una ética laica, una ética cristiana y una ética atea; hay quien piensa que la primera es superior a la segunda: al menos desde que perdí a la fe en Dios gracias a Unamuno y a Nietzsche (o por culpa de ellos), yo pienso exactamente lo contrario. la oposición entre una y otra ética se encierra en dos versículos casi calcados, uno de un evangelio auténtico y otro de un evangelio apócrifo, uno obra de san Mateo y otro de Jorge Luis Borges. El versículo de san Mateo dice:

Bienaventurados los de limpio corazón, porque verán a Dios.

Por el contrario, el versículo de Borges dice:

Bienaventurados los de limpo corazón, porque ven a Dios.

Del futuro de san Mateo al presente de Borges: ahí radica la diferencia minúscula y descomunal entre ambas éticas.» (p. 457)

No fim do livro, Javier Cercas transmite à mãe o que o papa Francisco lhe disse na breve conversa do avião, e que ele filmou. Transcrevo algumas frases:

- Con la resurrección de Cristo se plantó la semilla de la resurrectión de toda la humanidad. Con el bautizo entramos ya en ese mundo.

- Como dice san Pablo,"si no creemos que Jesucristo resucitó, vana es la fe". (p. 474)

Não cabe neste texto, que vai já muito longo, a descrição integral da conversa com o papa.

* * * * * 

Trata-se de um livro indubitavelmente muito bem escrito. que combina a crónica e o ensaio com a biografia e a auto-biografia. Todavia, a repetição de vários temas, sem necessidade aparente, alongando (inutilmente) a obra com o risco de quebrar o ritmo enunciado, conduz o leitor a pensar que Javier Cercas o fez com o deliberado propósito de publicar um volume particularmente extenso. 

sábado, 4 de outubro de 2025

KOLKHOZE

«Cette nuit-là, rassemblés tous les trois autour de notre mère, nous avons pour la dernière fois fait kolkhoze.» 

 * * * * *

Foi publicado este mês Kolkhoze, de Emmanuel Carrère (n. 1957), certamente um grande livro, grande no tamanho (cerca de 600 páginas) e grande na qualidade, uma obra em que o autor conta a história dos seus antepassados russos e georgianos, em especial de sua mãe, Hélène Carrère d'Encausse (1929-2023), que foi secretário perpétuo (no masculino) da Academia Francesa.

Este livro recorda-me outro, ainda que em registo diferente, esse roman-fleuve que é Les Bienveillantes (2006), de Jonathan Littell. Em ambos, e parcialmente, o Leste e a Ucrânia estão em pano de fundo.

Em Kolkhoze, Emmanuel Carrère conta a história da família, recuando três gerações, com destaque para si mesmo, para a mãe, para o pai, para o tio materno. E insiste que um retrato deve exprimir, na imagem, a personalidade, a época e a classe social do retratado. E na literatura também. Dada a abundância de personagens, lamenta-se que o autor não tenha incluído em apêndice a sua árvore genealógica, o que facilitaria a identificação dos ascendentes ao longo da obra, já que, antes de serem franceses, eles foram georgianos, russos, alemães e outras.

Pleno de ironia, de curiosidades, de fantasias, de recordações, talvez de arrependimentos, o livro, que não é nem um romance, nem uma biografia, nem uma autobiografia, nem um ensaio, nem uma crónica, mas tudo isso e mais, constitui em parte um ajuste de contas com a mãe, essa grande sacerdotisa da Academia Francesa, e com a paixão dela pela Rússia, essa Rússia contra a qual o autor por vezes se indigna, seja a do Império, a Soviética, ou a da actual Federação. E serve-lhe também de confessionário das suas virtudes e sobretudo dos seus vícios, das suas depressões e internamentos, das suas consultas de psicanálise, da sua condição bipolar e até dos seus jantares bem regados e "charrados", como o do restaurante Petrovitch, com Simon Sebag Montefiore (pp. 56 e 132).

Hélène Zurabichvilli, nascida apátrida em Paris, de pai georgiano e de mãe germano-russa (imigrantes), naturalizada francesa, dotada de uma vontade indomável, subiu a pulso todos os degraus da hierarquia cultural e social da França. A sua morte foi evocada solenemente nos Invalides, com honras militares, a presença da nomenclatura cultural, política e social e um discurso do presidente Emmanuel Macron: «Et maintenant c'est à vous, vous la petite-fille des steppes et la mère de la Coupole, l'apatride et la matriarche, l'orpheline et la tsarine, que la France endeuillée présente une dernière fois ses hommages. Vive la République! Vive la France!»

 

Hélène Carrère d'Encausse

As relações de Emmanuel Carrère com a mãe, a quem aliás amava, nem sempre foram as melhores. Por um lado, o afastamento dela do marido, Louis Carrère d'Encausse (desde muito cedo passaram a fazer leitos separados), da classe média francesa, funcionário de uma seguradora e que sempre se reviu na ascendência da mulher, causava-lhe (ao filho) tristeza. Por outro lado, o fascínio da mãe pelo mundo eslavo, e em especial pela Rússia, Vladimir Putin incluído, menosprezando a sua ascendência georgiana, indignava-o. Houve também um caso que motivou a que estivessem dois anos sem se falar. Em 2007, Carrère publicou Un roman russe, onde narra aspectos da vida familiar, entre os quais o facto de seu avô, Georges Zurabichvilli (pai da mãe) ter desaparecido em Bordéus (onde a família se refugiara) em 1944 aquando da libertação da França da ocupação nazi. Georges terá tido contactos com os alemães, embora nada indique que tenha sido um colaboracionista. Mas admite-se que tenha sido fuzilado por elementos da Resistência. Hélène sempre ocultou as circunstâncias da morte do pai e foi Nicolas (irmão de Hélène) quem contou ao sobrinho esse e outros episódios da história da família. A profunda ligação de Emmanuel ao seu tio Nicolas provocou sempre em Hélène um profundo ciúme.

Por curiosidade, cito da página 272 uma referência de Carrère a alguns dos seus companheiros de infância, um dos quais se chamava Dos Santos, não deixando o autor de mencionar (dont la maman était concierge). Sabemos que muitas das emigrantes portuguesas foram "concierges" de prédios francesas.

Importa mencionar que o célebre orientalista francês o judeu-russo marxista Maxime Rodinson, que orientou a tese de doutoramento de Hélène, manteve por ela uma clara paixão a que esta nunca cedeu. Mas ele constituiu sempre para a futura secretário perpétuo da Academia Francesa uma referência e uma amizade e frequentou a sua casa. Nunca tendo sido comunista, Emmanuel afirma que sua mãe foi influenciada pelo raciocínio marxista, que a acompanhou durante toda a vida.

Tendo vivido separada do marido (na prática que não oficialmente), Hélène chegou a ter um amante, um embaixador francês que pretendeu que ela abandonasse marido e filhos para viver com ele, o que ela, naturalmente recusou. Era uma opção que não se compaginava com o seu estilo de vida. Também Louis Carrère d'Encausse teve, secretamente e por escasso tempo, uma amante. Quando descobriu o caso, Hélène forçou o fim imediato dessa ligação. É que, apesar de não coabitarem intimamente, ela era extraordinariamente ciumenta.

Hélène Carrère d'Encausse especializou-se na história da Rússia e notabilizou-se por ter profetizado a queda da União Soviética no seu célebre livro L'Empire éclaté (1978), embora as razões tenham sido diferentes daquelas que então aduziu. A sua obra é vasta, ensinou na Sorbonne e em várias universidades estrangeiras, pertenceu às academias de diversos países, recebeu condecorações um pouco por todo o mundo. A sua vida confunde-se de alguma forma com a cultura da França e com a glória da Rússia. Mesmo com a invasão da Ucrânia, recusou contradizer-se abertamente relativamente às suas afirmações anteriores de que não haveria invasão, usando subterfúgios para o efeito. É por este motivo que Emmanuel, educado durante anos num ambiente russófilo, admitirá no livro que "la Russie est pour moi une affaire de famille".

 

Hélène Carrère d'Encausse no Kremlin em 2000, em entrevista com Vladimir Putin

Importa não esquecer que Carrère visitou algumas vezes a Rússia, a Geórgia, a Ucrânia, e encontrou-se em Tbilissi (quando eu estudei era Tiflis) com sua prima Salomé Zurabichvilli, que é hoje a presidente da Geórgia.

Algumas transcrições:

«Dans 1984, chacun doit chaque jour participer à deux minutes de haine collective. La télé russe martèle cette haine 24 heures sur 24. 24 heures sur 24, c'est la même incantation: l'Occident veut la mort de la Russie mais la Russie vaincra comme elle a toujours vaincu parce qu'elle est la Troisième Rome et que sa vie est misérable mais que son âme est forte, alors que la vie de l'Occident est agréable mais son âme est faible, dégénérée, minée par les LGBT+, les woke, les écologistes, les nazis et les pédophiles. "La raison de l'opération militaire spéciale, dit le ministre des Affaires étrangères Sergueï Lavrov - celui avec qui Salomé se flattait de négocier dans le respect mutuel -, la raison de l'opération militaire spéciale réside dans le contentement de soi des pays occidentaux depuis la fin de la Deuxième Guerre mondiale." "Vous avez la belle vie, nous on vit dans la merde": c'est ce qu'on me disait déjà à Koltenitch. Mais à Koltenitch, au début de ce siècle, ils avaient encore honte de vivre dans la merde. Ceux qui vivaient dans la merde, Poutine leur a rendu la fierté. Vivre dans la merde est le signe de leur élection. Ils sont le sel de la terre. Ils font peur à nouveaux: aux pédés, aux trans, à tous ces déviants dont le "contentement de soi" offense la Russie. Il est bon de faire partie de cette foule qui fait peur, il est bon de haïr ceux qui n'en font pas partie. Ceux-là, on leur pourrit la vie sur les réseaux sociaux, on les pourchasse, on trace de grands Z sur leurs portes. La lettre Z, à l'origine un marquage militaire, est devenu le symbole du soutien à l'opération spéciale, aux soldats, au président. On la voit partout. On en badigeonne les blindés, les murs, les statues de Lénine, les portes de salon de coiffure. On se la tatoue sur le front, on se rase le crâne en traçant sa marque. Les enfants des écoles se rassemblent pour former d'immenses Z, qu'on voit du ciel et montre à la télévision. Le Z est la croix gammée du poutinisme. Entre Z et non-Z, la division est partout: au travail, dans les familles. Le mari ne parle plus à sa femme, le frère á son soeur.» (pp. 440-441)

 

Hélène Carrère d'Encausse no Kremlin em 2009, recebendo de Dmitry Medvedev a Ordem da Honra da Rússia

É evidente que Emmanuel Carrère exagera e empresta à narrativa uma boa dose de fantasia, quiçá fruto da sua bipolaridade. Mas transcrevi porque convém reconhecer que existe na Rússia muita gente que apoia a política de Vladimir Vladimirovitch Putin, certamente muito mais do que metade da população segundo as estatísticas que são periodicamente divulgadas pelos mais variados órgãos de comunicação social.

Sobre Catarina II, Carrère escreve:

«Mon travail, au café du port, consiste à lire et annoter, parallèlement, la biographie de Catherine II par ma mère et celle de Potemkine par Simon Sebag Montefiore - l'historien anglais qui m'avait surnommé, rappelez-vous, the unstoppable herring eater , l'inarrêtable mangeur de harengs. Ma mère décrit Catherine grande politique mais aussi intelectuelle de haut vol, correspondant avec Voltaire, Grimm, Diderot - Diderot qui, séjournant à Saint-Pétersbourg, lui meurtrira le genou à force de la malaxer en lui expliquant comment gouverner la Russie. Je ne suis pas surpris que ma mère passe beaucoup plus vite sur l'impressionant appétit sexuel de l'impératrice, mais là-dessus on peut compter sur Simon Sebag Montefiore, ami de l'anecdote et du potin, intarissable sur la passion qui a fait de Catherine et de son favori "des fournaises humaines, réclamant une quantité infinie de combustible sous forme de désir, de gloire, d'extravagance". Dans un mélange bien à eux de français et de russe, ils échangent où qu'ils soient plusieurs billets par jour, portant à quelques lignes d'intervalle sur la conduite de l'Empire et sur la façon dont ils feront l'amour quand ils se retrouveront. Potemkine était un ogre, un fauve, beau et laid, d'une folle bravoure. Quand la frénésie sexuelle décline, ils cessent d'être amants pour devenir d'indéfectibles partenaires. Catherine, "qui ne pouvait pas rester san amour pendant une heure", continuera jusqu'à l'âge de soixante douze ans à avoir des amants. C'était une fonction á la Cour. On commençait pour y accéder par être aide de camp de Potemkine, qui donnait son feu vert ou non. Le nouveau venu vivait sous son regard, et le règne écrasant de la comparaison. L'âge venant, Catherine note avec lucidité qu'il n'est "pas facile pour des jeunes gens, entourés à la Cour de princesses ravissantes, de passer leurs nuits avec une robuste vieille dame". Les ruptures qui s'ensuivent la mettent au désespoir. Potemkine la console, jusque dans son lit. On les entend hurler ensemble, des heures durant, en mémoire d'un favori disparu. Puis Catherine s'en trouve un nouveau, de quarante ans son cadet, et elle écrit à Potemkine: "Je suis grosse et joyeuse, je reviens à la vie comme une mouche en été." Ensemble, ils gouvernent la Russie, c'est-à-dire qu'ils l'étendent.» (pp. 479-480-481)

Emmanuel Carrère casou e divorciou-se duas vezes e vive agora com Charline, a sua terceira companheira. Ele mesmo admite a sua dificuldade em manter uma relação prolongada. Sobre "Secret-défense", transcrevo:

«Charline a un ami écrivain, Arthur, qui a lui-même une petite bande d'amis, comme lui entre trente et quarante ans, comme lui gays, qui ont en commun le goût du canular. Cela semble une forme d'humour un peu vieillote, le canular, le mot lui-même sonne comme "carabin" ou "khagneux", mais Arthur et ses amis un font un art, léger et inventif, tel qu'on ne sais jamais ce qui est vrai et ne l'est pas dans ce qu'ils disent. Cela peut être assez primitif - annoncer que l'addition d'un repas dans une taverne grecque se monte à 1 850 euros - ou plus sophistiqué. Arthur, qui a écrit et publié plus de deux mille pages d'un fascinant Jounal Sexuel (ça, c'est vrai), nous a confié un jour qu'il venait d'être contacté par le conseiller culturel de l'ambassade du Maroc, car le roi Mohammed VI avait beaucoup apprécié son libre et souhaitait le rencontrer - dans la plus grande discrétion, eu égard au sujet. Aprè avoir envisagé plusieurs possibiités, suite de grande hotel ou ambassade, le conseiller culturel et Arthur avaient pensé que cette entrevue confidentielle pourrait avoir lieu chez Charline et moi. Ce qui impliquait, si nous étions d'accord, que les services de sécurité marocains inspectent notre appartement et que deux agents occupent, quelque jours avant le grand jour, notre chambre d'amis. Ils étaient d'accord pour dormir dans le même lit. Le problème avec de telles fabulations, c'est que plus elles sont fréquentes et ritualisées, moins elles ont de chance d'être crues. Cela ne freine pas Arthur et ses amis, qui pratiquent comme une ascese collective la willing suspension of disbelief, la suspension volontaire de l'incrédulité, qui este selon Coleridge la première exigence de la lecture romanesque. Toute la bande nous a rejoint pour quelques jours à Ikaria et, à force d'entendre des canulars, nous avons décidé, Charline et moi, d'en faire un à notre tour. Quand nous nous sommes retrouvés, comme chaque soir, à la taverne, j'ai pris à peine arrivé un air soucieux, quittant la table tous les dix minutes pour téléphoner, revenant de ses conciliabules chaque fois plus sombre et défait. On m'a gentiment demandé si ça allait. Visiblement pas. Charline faisait la navette d'eux à moi, de moi à eux, en disant qu'il ne fallai pas s'inquieter sur le ton le plus inquiétant. Nous avons fait un peu durer le plaisir, et puis j'ai fini pour avouer que ces appels mystérieux, c'étaient mes soeurs, er qu'il se passait quelque chose d'embêtant. Quelque chose de trop lourde pour moi, mais je leur demandais instamment, à eux, de garder le secret parce qu'on avait encore l'espoir que ça ne s'ébruite pas. Ma mère était em ce moment interrogée par la DGSE. Depuis plusieurs semaines, lens gens du contre-espionnage français la soupçonnaient. Elle sortait du bureau d'Emmanuel Macron quand ils ont pris le risque de lui demander, avant qu'elle quite l'Elysée, d'ouvrir son sac à main. Ils ont confisqué et fait parler son iPhone. Elle avait enregistré toute sa conversation avec Macron sur la politique de la France à l'égard de la Russie et, avant celle-ci, plusieurs autres entretiens classés secret-défense. Elle transmettait directement ces renseignments sur un compte Signal dont la DGSE avait de bonnes raisons de penser que c'était le compte personnel de Vladimir Poutine. Au début de la soirée, mes soeurs et moi espérions encore que l'affaire serait etouffé mais, d'un coup de fil à l'autre, il était de plus en plus évident qu'elle allait sortir. J'assistai en direct à cette catastrophe: ma mère, au soir de sa vie, du jour au lendemain déshonorée. J'ai joué mon rôle avec conviction, lâchant les informations avec réticence au début, plus librement quand il est devenu évident que l'affaire serait publique, le scandale énorme. J'étais décomposé, un homme dont l'univers vacille sur ses bases et, même si j'ai du mal à croire que ces garçons que chaque jour inventent un nouveau bobard aient pu réellement avaler celui-ci, nous avons vraiment poussé les choses jusqu'à feindre de lire, sur mon téléphone, la première dépêche de l'AFP, et ils m'assurent avoir, tous, marché comme un seul homme.» (pp. 483-484-485)

Subsiste a dúvida se a descrição relata realmente um "canular" ou se existe alguma verdade nos factos e o verdadeiro "canular" é o de Emmanuel Carrère tentar convercer-nos que se trata de um "canular" um acontecimento verdadeiro.

É que há mais:

«Un an après la mort de ma mère, un chercheur étudiant les archives du KGB a établi que d'importantes figures du monde intellectuel et médiatique français étaient des agents d'influences soviétiques: un journaliste d'investigation du Canard enchaîné, le rédacteur en chef de L'Express. Elle aussi a été surveillée, approchée. Échec total et, de mon point de vue, bonne nouvelle: à plusieurs reprises, elle a reçu les émissaires du KGB, compris à demi-mot ce qu'ils lui voulaient, et les a courtoisement éconduits. Le nom de code sous lequel on se référait à elle était "Sylvie". J'ai du mal à imaginer un prénom qui lui aille moins bien.» (p. 486)

 

Hélène Carrère d'Encausse e seu filho Emmanuel Carrère

Hélène Carrére d'Encausse morreu com 94 anos, vítima de um cancro que se disseminou por todo o organismo. Prescindindo de outros cuidados, tratou-se apenas com a sua médica generalista, a quem exigiu absoluto segredo.  Só mais tarde informou uma das filhas, obrigando-a ainda a sigilo. Manteve a regularidade da sua vida, ainda que com os inevitáveis constrangimentos. Os outros filhos apenas foram avisados perto do fim, quando era já impossível esconder a verdade. Recusou informar o marido (na altura já bastante diminuído), quando se tranferiu de casa para a clínica de cuidados paliativos. Também não o disse ao irmão Nicolas, de quem vivia voluntariamente afastada.

Emmanuel descreve em páginas do mais elevado recorte emotivo e literário os últimos dias da sua vida, a imensa coragem da mãe, a grande dignidade na morte, a recusa firme da eutanásia, a sua confissão a um padre católico, ela que era ortodoa russa. Lembrei-me de Une mort très douce, de Simone de Beauvoir, que li há sessenta anos. Já submetida à morfina, ligeiramente delirante, as últimas palavras que claramente articulou foram Kylian Mbappé, regista o filho. 

Não cabe naturalmente aqui registar mais do que um apontamento breve deste livro imenso, por vezes irregular,  mas que ficará entre as grandes obras da literatura francesa contemporânea.

 

Túmulo de Hélène Carrère d'Encausse no Cemitério de Montparnasse (division 27)

Emmanuel Carrère é um homem inteligente, conhece bem a Rússia (que, desde pequeno, a mãe lhe incutiu no coração e no cérebro) mas, até talvez por isso, ao condenar a invasão da Ucrânia recusa-se a compreender as razões que subjazem por detrás dessa "operação militar especial" e que são evidentes para a maioria dos russos e para tanta gente por esse mundo. Mesmo para uma boa parte dos ucranianos, que a trazem dentro de si, e que só não o confessam, muitos deles, porque a isso são coagidos, manu militari, por uma minoria que em Kyev se apossou do poder. Sei do que falo e, sobre isso, já escrevi muitas vezes.

Acresce dizer que a leitura deste livro aproveitará a todos mas em especial aos leitores que tenham algum conhecimento da língua russa, da literatura e da história da Rússia.