Em 2022 foi publicado em França Le Mage du Kremlin, do escritor ítalo-suíço nascido em Paris Giuliano da Empoli, que logo resolvi comprar, atendendo ao seu conteúdo. Mas, por qualquer razão que agora não recordo, não cheguei a encomendar.
Quando, no fim de 2022, foi editada a primeira tradução portuguesa, novamente decidi a compra, mas ainda desta vez não concretizei a minha aquisição.
Acontece que no mês passado, no Festival de Veneza, foi apresentado o filme homónimo, com realização de Olivier Assayas, em colaboração com Emmanuel Carrère e interpretação de Jude Law no papel de Vladimir Putin. A estreia da película em França está prevista para Janeiro do próximo ano, não havendo ainda, por isso, edição em DVD. Ao ler a notícia decidi que teria mesmo comprar o livro. E assim fiz, mas com dificuldade. Já lá vai o tempo em que visitava diariamente várias livrarias em Lisboa. Agora vou muito raramente à Baixa, onde já praticamente nada existe do meu tempo. Por isso, procuro habitualmente livrarias periféricas. Após algumas tentativas, em vão, foi ainda em Lisboa que consegui comprar O Mago do Kremlin.
Trata-se de um livro fascinante e indispensável para quem deseje compreender a Rússia de hoje. Daí o seu sucesso em todo o mundo e o facto de estar já traduzido em mais de trinta línguas.
Não é um manual de história nem um romance mas uma obra em que a ficção se entrelaça com a realidade tornando compreensíveis muitos episódios da história contemporânea, ainda ininteligíveis para numerosas criaturas. Também é perfeitamente visível a ironia do autor e o seu requintado cinismo.
O livro é construído à volta de Vadim Baranov (uma personagem imaginária) que descreve a forma como Vladimir Vladimirovitch Putin se transformou no novo Czar de Todas as Rússias. Agora retirado na sua fabulosa mansão, Baranov conta ao autor como se tornou conselheiro de Putin e como este se tornou o dramaturgo, o encenador e o actor de uma peça grandiosa que é a própria Rússia, um espectáculo deslumbrante e simultaneamente assustador para o comum dos mortais.
A análise da queda da União Soviética, do inconstante consulado de Mikhaïl Gorbachov, do perturbante período de Boris Eltsin e do advento de Vladimir Putin, a análise do comportamento do Ocidente, maxime do Estados Unidos, em relação à Rússia, da sua incapacidade em compreender a alma dos eslavos, que Dostoievsky tão bem retratou, tudo passa pelo livro de Giuliano da Empoli, em especial uma severa crítica ao american way of life e à estrutural incapacidade dos norte-americano de conseguirem entender a alma russa e até, em geral, a própria alma europeia, se ela verdadeiramente existe.
Não cabe aqui descrever a obra mas não resisto à transcrição, avulsa, de alguns momentos curiosos.
«Quando pedimos ao nosso público que nos indicasse os seus heróis, as personagens em que se baseia o orgulho da Mãe Rússia, estávamos à espera dos grandes espíritos: Tolstói, Pushkin, Andrei Rublev, ou, sei lá, um cantor, um actor, como aconteceria entre vós. Mas o que nos deram os espectadores, a massa informa do povo habituada a vergar as costas e a baixar o olhar? Só nomes de ditadores. Os heróis deles, os fundadores da pátria, coincidiam com uma lista de autocratas sanguinários: Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, Lenine, Estaline. Fomos obrigados a falsificar os resultados para fazer ganhar Alexandre Nevski, que pelo menos era um guerreiro, não um exterminador. Mas quem recolheu mais votos foi Estaline. Estaline, está a entender? Foi aí que eu compreendi que a Rússia nunca se tornaria um país como os outros. Não que houvesse alguma verdadeira dúvida.» (p. 74)
«Lembro-me de que Boris [Berezovsky] estava tão excitado que entornou com um gesto desajeitado o porta-canetas que tinha à sua frente. Dito isto, o raciocínio dele não era desprovido de sentido. No início dos anos noventa, Gorbachev e Ieltsin tinham feito a revolução, mas no dia seguinte a grande maioria dos russos havia acordado num mundo que não conhecia, no qual não sabia como viver. Antes do afundamento do sonho americano e do sonho da Europa, houve o afundamento do sonho soviético. Entre vós ninguém se apercebeu disso porque vos parecia impossível que um sonho fosse feito de coisas tão pobres e tão cinzentas: uma profissão respeitada como a de funcionário ou de professor, um pequeno Zhiguli [automóvel baseado no Fiat 124 que foi fabricado na União Soviética e na Rússia pela AvtoVAZ entre 1970 e 2012], uma dacha com a sua horta, as férias em Sochi ou de tempos a tempos em Varna, com as pernas a mergulhar no mar Negro e a perspectiva de um bom churrasco entre amigos. E, contudo, esse modelo tinha a sua força e a sua dignidade. Os seus heróis eram o soldado e a mestre-escola, o camionista e o infatigável operário: era a eles que eram dedicados os anúncios nas ruas e nas estações de metro. Em poucos meses, tudo isso foi varrido. os novos heróis, os banqueiros e as top-models impuseram o seu domínio, e os princípios em que se fundava a existência de trezentos milhões de habitantes da URSS foram invertidos. Eles tinham crescido numa pátria e de repente encontravam-se num supermercado. A descoberta do dinheiro foi o acontecimento dessa época que mais transtornou. E a seguir, a descoberta de que o dinheiro podia nada valer, com a queda da bolsa e a inflação em três mil por cento.» (pp. 83-84)
Do encontro do autor com o famoso Eduard Limonov:
«- O que é interessante é que as pessoas como tu pensam que se trata de um modelo a seguir. Mas, na verdade, os americanos são uns zombies; não há maior pecado do que delapidar a nossa vida, Vadia. Eles nem sequer são aflorados pela ideia de que o fito da existência humana possa não ser viver-se o mais confortavelmente ou o máximo tempo possível. Foi quando vi que Ieltsin seguia esse caminho e queria transformar a Rússia numa sucursal low-cost do hospício americano que eu decidi fundar o Partido Nacional-Bolchevique. E sabes porque lhe chamei assim? Para vos enfurecer, para concentrar num único nome tudo o que vocês consideram ser o mal, todas as ideias que ameaçam o pequeno consumidor satisfeito a que vocês reduziram o homem.
- As paixões fazem viver o homem, a sabedoria fá-lo somente durar.
Limonov olhou-me de lado. Não gostava de ser interrompido, muito menos por velhas citações que banalizassem as suas iluminações.
- De facto, é isso - prosseguiu ele. - No Partido Nacional-Bolchevique juntámos ex-estalinistas e ex-trotskistas, homossexuais e skinheads, anarquistas, punks, artistas conceptuais e fanáticos religiosos, budistas e ortodoxos. Quando organizámos o nosso primeiro congresso, o mais complicado foi dispô-los na sala de maneira a não partirem a cabeça uns aos outros. Sempre que penso nisso, ainda não sei como é que fizemos...» (pp. 140-141)
Conversa entre Vladimir Putin e Vadim Baranov:
«Putin teve um estremecimento e, pela primeira vez desde que o conhecia, percebi um clarão de ódio no seu olhar.
- Mete uma coisa na cabeça, Vadia, os mercadores nunca dirigiram a Rússia. E sabes porquê? Porque não são capazes de garantir as duas coisas que os russos pedem ao Estado: ordem no interior e poderio no exterior. Só por duas vezes, por dois breves períodos, os mercadores governaram o nosso país: poucos meses após a revolução de 1917, antes do advento dos bolcheviques, e poucos anos após a queda do Muro, durante o período de Ieltsin. E qual foi o resultado? O caos. A explosão da violência, a lei da selva, os lobos que saem das florestas e entram nas cidades para devorar a população sem defesa.» (pp. 156-157)
Para a realização dos Jogos Olímpicos de Sochi, que Baranov superintendeu:
«Devo dizer que cada um desempenhou de bom grado o papel que lhe fora atribuído. Alguns até com talento. Os únicos que não contratei foram os professores, os tecnocratas responsáveis pelas catástrofes dos anos noventa, os porta-estandartes do politicamente correcto e os progressistas que se batem por lavabos transgénero. Esses, preferi deixá-los para a oposição; com efeito, era necessário que a oposição fosse constituída precisamente por personagens como eles. De certa maneira, tornaram-se os meus melhores actores, nem sequer fomos obrigados a contratá-los para que trabalhassem para nós. Pequenos moscovitas que se sentiam em terra estranha logo que ultrapassavam o terceiro anel da periferia, pessoas que nem teriam sido capazes de deslocar um cadeirão - quanto mais governar a Rússia... Cada vez que tomavam a palavra, consolidavam a nossa popularidade. Os economistas com a sua arrogância de PhD, os oligarcas sobreviventes dos anos noventa, os profissionais dos direitos humanos, as pasionarias feministas, os ecologistas, os vegans, os activistas gay: um maná caído do céu para nós. Quando as raparigas daquele grupo de música profanaram a Catedral do Cristo Salvador, berrando obscenidades contra Putin e o patriarca, fizeram-nos ganhar cinco pontos nas sondagens.» (pp. 182-183)
Putin sobre Boris Berezovsky (que apareceu enforcado no seu apartamento em Londres):
«- Claro, ele ajudava os inimigos da Rússia em toda a parte, na Ucrânia, na Letónia, na Geórgia, é verdade. Sabe-se lá como as coisa aconteceram ao certo. Estás a ver, Vadia, os teóricos da conspiração julgam-se muito espertos, mas são uns grandes ingénuos. Gostariam que tudo tivesse um sentido oculto e desvalorizam sistematicamente o poder do disparate, da distracção, do acaso. Dito isto, tanto melhor assim: é o contrário do que eles quereriam, mas os teóricos da conspiração só nos dão força. Se em lugar de se ver o poder como aquilo que ele é, com as suas fraquezas humanas, lhe conferirmos a aura de uma identidade omnisciente, capaz de urdir não sei que trama, fazemos-lhe o maior cumprimento possível, não achas? Fazemo-lo crer ainda maior do que ele é.
- "Puisque ces mystères nous dépassent, feignons d'en être l'organisateur." [adaptação de uma frase de Jean Cocteau em Les Mariés de la Tour Eiffel]
O Czar detestava as minhas citações e não falava francês, mas naquela manhã eu não estava num humor que lhe agradasse. Fitou-me por um instante em silêncio, e depois decidiu ignorar-me.» (pp. 224-225)
«Diante de mim, o Czar lia a carta de Berezovsky. A seguir, pousou-a, imperturbável, como uma pedra apanhada no fundo de uma torrente. Dei-me conta nesse momento de que Boris também tivera razão sobre este ponto. Putin não era um grande actor, como eu julgara, mas somente um grande espião. Ofício esquizofrénico que requer, é certo, qualidades de actor. Ms o verdadeiro actor é extrovertido, o seu prazer de comunicar é real. O espião, em contrapartida, tem de saber bloquear todas as emoções, caso as tenha. Na prática, esses dois talentos servem-lhe, ele tem de simular a empatia do actor e simular a frieza do cirurgião na sala de operações. Mas se Putin não era um grande actor, eu também não era um grande encenador, quando muito um cúmplice.» (pp. 225-226)
«Mas quando apresentei a minha demissão, o Czar tinha outra coisa em mente. Creio que acolheu a minha retirada com alívio: já não precisava de mim. Inventar uma ordem nova exige uma certa dose de imaginação, mas basta a devoção cega dos servidores para a fazer respeitar.» (p. 260)
«No Ocidente, os vossos governantes são como adolescentes, não podem ficar sozinhos, procuram sempre um olhar que pouse sobre eles, tem-se a impressão de que, se fossem obrigados a passar um dia num quarto, sem companhia, se dissolveriam no ar como um sopro de vento morno. O nosso czar, pelo contrário, vive na solidão e nutre-se dela. É no recolhimento que ele acumula a força que surpreende tantos dos vossos observadores. Com o tempo, isso tornou-se quase um elemento, como o céu ou o vento. Vocês esqueceram-se do que significa viver como adulto, plantado na realidade. Julgam que um chefe é uma espécie de animador, querem chefes que se assemelhem a vós, que estejam ao vosso nível. A distância preserva a autoridade. Como Deus, o Czar pode ser objecto de entusiasmo, mas sem que ele próprio se entusiasme, a sua natureza é necessariamente indiferente. O rosto dele já adquiriu a palidez marmórea da imortalidade.» (pp. 260-261)
«Imaginemos agora que o poder deixe de necessitar da colaboração humana. Que a sua segurança - e a sua força - seja garantida por instrumentos que não têm a possibilidade de se revoltar contra ele. Um exército de sensores, de drones, de robôs capazes de atacar a qualquer momento, sem a menor hesitação. Isso seria, finalmente, o poder na sua forma absoluta. Enquanto se basear na colaboração de homens de carne e osso, todo o poder, por mais duro que seja, deverá contar com o consentimento destes. Mas quando for baseado em máquinas que mantenham a ordem e a disciplina, não haverá mais nenhum freio. O problema das máquinas não é que elas venham a revoltar-se contra o homem, é que ela sigam as ordens à letra.» (p. 264)
E como morceau de bravoure:
«Doravante, onde quer que nos encontremos, podemos ser identificados, chamados à ordem, neutralizados se necessário. O indivíduo solitário, o livre-arbítrio, a democracia, tornaram-se obsoletos: a multiplicação dos dados transformou a humanidade num único sistema nervoso, um mecanismo feito de configurações standard tão previsível como um bando de pássaros ou um cardume de peixes. Não estamos ainda em guerra, mas já estamos militarizados. Os soviéticos tinham sonhado com isso. O nosso Estado sempre se baseou na mobilização. Éramos uma nação inteiramente fundada na ideia da guerra, da defesa da pátria contra agressões que pudessem vir do estrangeiro. Todos os sacrifícios, todos os inúmeros atentados à liberdade, se justificavam assim: a defesa de uma liberdade maior, a da mãe pátria. O KGB tinha projectado, nos anos cinquenta, um sistema para registar todas as relações de cada cidadão soviético. O vertuskka [Vertushka (em russo: Вертушка), também conhecida por Kremlyovka (em russo: Кремлёвка) ou Spetssvyaz (em russo: Спецсвязь), é o nome coloquial de um sistema fechado de comunicações telefónicas entre partidos políticos e governos na União Soviética e na Rússia. Recebeu o nome informal (calão) de Vertushka porque, ao contrário da rede telefónica convencional, onde a ligação era feita através de um operador, os assinantes ligavam-se uns aos outros utilizando uma central telefónica automática e um disco de marcação chamado Vertushka em russo. A existência do sistema era uma novidade numa era dominada pelas centrais telefónicas manuais. O telefone não utilizava disco de marcação e certos subsistemas do sistema ligavam-se diretamente ao Kremlin. Sobretudo no período soviético, esta ligação permitia ao líder comunicar com subordinados importantes, como secretários regionais do partido, oficiais militares de alta patente ou chefes de importantes fábricas estatais. O sistema governamental ATS, que sofre modernizações regulares, continua em funcionamento até aos dias de hoje] do meu pai era o símbolo disso. Mas o Facebook foi muito mais longe. Os californianos ultrapassaram todos os sonhos dos velhos burocratas soviéticos. Não há limites para a vigilância que eles conseguiram instaurar. Graças a eles, qualquer momento da nossa existência se tornou uma fonte de informações.» (p. 265)
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Como Vladimir Vladimirovitch Putin continua vivo e presidente da Federação Russa o fim do livro não é o fim da história. A edição original tem três anos e Giuliano da Empoli não podia, nem pode, prever os acontecimentos que terão o Kremlin por palco. Por isso encontrou um expediente original para concluir a obra: a aposentação voluntária do Vadim Baranov, o "mago do Kremlin".
Não será de mais repetir que se trata de um livro que observa com particular acuidade a Rússia de hoje e o homem de sempre (parafraseando Leonardo Coimbra), o mundo em que vivemos e o mundo provável do futuro.
Vale a pena ler. Espero que o filme faça jus ao livro.








