REVI ANTEONTEM, UMA VEZ MAIS, UM FILME NOTÁVEL !!!
“KHARTOUM” (1966), de Basil Dearden, com argumento de Robert Ardrey, sobre a queda de Khartoum e a morte do célebre general Gordon Pasha. Com o mesmo tema, Robin Maugham escreveria, alguns anos depois, o livro “THE LAST ENCOUNTER” (1972).
São intérpretes deste filme Charlton Heston (Gordon Pasha), Laurence Olivier (Muhammad Ahmad, o Mahdi), Richard Johnson (Coronel Stewart), Ralph Richardson (William Gladstone, primeiro-ministro britânico), Nigel Green (General Wolseley), Peter Arne (Major Kitchener), Johnny Sekka (Khalil), etc.
As interpretações de Charlton Heston e de Laurence Olivier são de antologia.
O livro de Robin Maugham (sobrinho de Somerset Maugham, e também homossexual como o seu tio), igualmente autor do célebre romance “The Servant” (1948), este protagonizado no cinema por Dirk Bogarde, reconstitui um suposto diário secreto de Charles Gordon entre 15 de Dezembro de 1884 e 25 de Janeiro de 1885, que ficou na posse de um soldado britânico, Trooper William Warren, o qual não aparece no filme. Este ter-se-ia voluntariado no Cairo para ultrapassar o cerco das forças do Mahdi e entregar ao general, em Khartoum, uma mensagem do major Kitchener (o futuro Lord Kitchener). Warren era um rapaz que Gordon conhecera em Inglaterra (ao tempo um garoto vadio), e que protegera, admitindo-o na sua casa de recolhimento de menores em dificuldades em Fort Wallington (uma espécie de Casa Pia lá do sítio, onde Gordon, durante muitos anos acolheu milhares de rapazes, e que ainda hoje existe com outra designação) e que já o havia acompanhado na expedição ao Congo. O general nutria pelo rapaz, agora soldado, uma afeição muito especial, no limite do sexual, que era correspondida.
Os diários autênticos de Gordon, cujo último é de 14 de Dezembro de 1884, foram enviados para Inglaterra e estão conservados.
Gordon é habitualmente descrito como um místico, um anglicano heterodoxo, um homem que foi considerado um herói, um mártir e um santo. Nunca casou, embora adulado por inúmeras mulheres; viveu sempre rodeado de soldados, o que é um inequívoco padrão de vida. Em Khartoum, o seu criado particular, o sudanês Khalil, a que estava ligado por uma cumplicidade pelo menos espiritual, pretendeu morrer com ele no palácio e só fugiu perante as suas ordens. Ao contrário da personagem Warren, ausente da película, a despedida de Khalil é mostrada no filme.
Voltando a Warren, o general confia-lhe o diário secreto com a ordem de o destruir, que o rapaz não cumpre. E talvez seja esta a razão por que aceitou fugir aquando do ataque, quando pretendia também morrer ao lado do general.
A obra de Robin Maugham, que afirma ter reunido durante vinte anos material para o livro, consiste na própria edição do famoso diário secreto, uma criação ficcional do autor.
O filme de Basil Dearden e o livro de Robin Maugham são naturalmente semelhantes, mas não idênticos, como se explica acima. O livro, mais do que o filme, enfatiza a circunstância homossexual do general, embora se admita que ela foi sempre sublimada. Referem-se ambos à partida de Gordon para o Sudão, à resistência às forças do Mahdi e à sua morte em 26 de Janeiro de 1885.
Vou resumir o essencial.
Charles George Gordon, Gordon Chinês ou Gordon Pasha (1833-1885) foi um oficial e administrador britânico. Adquiriu notoriedade quando comandou na China uma força europeia que dominou a Rebelião de Taiping, no quadro da Guerra do Ópio, sendo largamente honrado pelo imperador. Foi depois governador-geral do Sudão, ao serviço do khediva do Egipto (e dos interesses britânicos), tendo sufocado revoltas locais e reprimido o tráfico de escravos. Regressado à Europa para assumir novas funções, esteve também na Índia, no Congo e em outros lugares.
Em 1881, estalou uma revolta, chefiada por Muhammad Ahmad bin Abdullah, que se proclamou o Mahdi (o Guia ou o Messias do Islão) contra o khediva, as forças otomanas (o Egipto fazia então parte oficial do Império Otomano, ainda que dotado de alguma autonomia) e o estabelecimento britânico. O Mahdi pretendia criar um estado islâmico no Médio Oriente e fazer as suas orações em Meca, em Bagdad e em Constantinopla, segundo a missão que recebera do Profeta Muhammad (que a paz esteja com ele). Em 1884, Gordon foi enviado para Khartoum, com a missão exclusiva de evacuar os soldados egípcios e os civis europeus, mas não dispondo de um exército, por decisão do primeiro-ministro William Gladstone, que recusava um envolvimento directo dos ingleses. Gordon e o Mahdi encontraram-se mais do que uma vez (no livro e no filme, embora realmente não tenham chegado a encontrar-se, ao que parece). Respeitavam-se e trocavam mensagens, tendo o general oferecido a Muhammad Ahmad o sultanato de Kurdufan em troca da paz e o Mahdi proposto ao general a sua conversão ao islão. Evidentemente, ambos recusaram.
Gordon foi portanto enviado para o Sudão sem tropas, devido à oposição de Gladstone, dispondo apenas da guarnição sudanesa local. Mais tarde, quando o cerco do Mahdi apertou, Gladstone protelou todos os pedidos de auxílio feitos por Gordon, usando de um cinismo e uma hipocrisia característicos da política britânica. Evelyn Baring, cônsul-geral britânico no Egipto e controlador do país, dificultou igualmente a organização da pretendida expedição de auxílio, que só muito tarde foi parcialmente organizada pelo general Wolseley, que enviou finalmente dois vapores para Khartoum. Chegaram, porém, dois dias depois da queda da cidade e regressaram à base.
O cerco iniciou-se às 3.30 h da manhã de 26 de Janeiro de 1885. O palácio foi o principal alvo. O Mahdi dera expressas ordens para que Gordon não fosse morto, mas as suas instruções não foram cumpridas. O corpo foi decapitado e a cabeça exposta à multidão dos revoltosos. Há várias versões sobre os últimos momentos de Gordon Pasha: os do filme e do livro, em que vestiu o grande uniforme e apareceu sozinho no cimo da escadaria do palácio, sendo alvejado por uma lança, e os que são relatados por alguns historiadores.
Mais tarde, o marechal Lord Herbert Kitchener venceu os mahdistas (já desorganizados) na batalha de Omdurman (1898). O Mahdi morrera seis meses depois de Gordon, tendo sido sepultado sumptuosamente. Para vingar a morte de Gordon, Kitchener mandou destruir o túmulo, cortou com a espada a cabeça do cadáver, que guardou, e atirou o corpo ao rio.
Curiosamente, Lord Kitchener era, como Gordon, celibatário e homossexual. Note-se que as três grandes figuras do império britânico vitoriano em África: Gordon, Kitchener e Cecil Rhodes eram homossexuais solteiros, embora Rhodes não escondesse as suas preferências e vivesse sempre rodeado de uma corte de garotos. A permanência em África subtraia-os aos rigores da hipócrita moral vitoriana e abria-lhes vastos horizontes de contactos. Cecil Rhodes foi o grande obreiro do eixo Cairo/Cabo (que destruiu o nosso Mapa Cor-de-Rosa) e deu o nome a dois territórios de África, as Rodésias, hoje a Zâmbia e o Zimbabwe.
A história de Gordon e a história da ocupação britânica do Egipto e do Sudão são descritas em páginas de leitura obrigatória para quem se interesse por estes temas e disponha do tempo indispensável. O que aqui resumi é um lampejo da realidade. Espero que possa suscitar a curiosidade dos leitores.


Sem comentários:
Enviar um comentário