domingo, 13 de julho de 2025

A NOVA PESTE

Acabou de ser publicado um novo livro de Manuel Maria Carrilho, A Nova Peste: Da Ideologia do Género ao Fanatismo Woke, certamente uma das obras mais estimulantes e lúcidas editadas nos últimos anos.

Não pretendo fazer aqui uma crítica da mesma, não só pela vastidão da temática e da sua implicação na vida contemporânea como pelo facto da profundidade da análise levada a cabo por M. M. Carrilho ser insusceptível de comentário num espaço reduzido como este; seria preciso transcrever integralmente (ou quase) o livro para nos apercebermos do rigor da investigação efectuada pelo autor. Pela sua importância, transcrevo a introdutória página inicial: «Contrariamente ao que muitos diziam, no sentido de o wokismo ser um simples e passageiro fenómeno de moda, que rapidamente desapareceria, estava-se perante uma vaga de fundo, um processo de natureza social, cultural, talvez mesmo civilizacional, que iria ter muitas consequências em diversos planos das sociedades ocidentais, acentuando de um modo brutal os traços censórios e persecutórios que o chamado movimento "politicamente correcto" já tinha vindo a impor por todo o lado, desde as últimas décadas do século XX.»

Começo por saudar o facto de o texto não seguir o Novo Acordo Ortográfico, que constitui, em minha opinião, uma traição à língua portuguesa, produzido por cérebros alienados ou corruptos, e que agora se encontra inconstitucionalmente em vigor, uma vez que não foram cumpridos todos os trâmites legais para a sua institucionalização. 

Limitar-me-ei a algumas notas sobre o texto.

Começa Carrilho por recordar um episódio que indignou muita gente: a interrupção de um espectáculo, no Teatro São Luiz, protagonizada por um ser que se identificou como "actriz, prostituta", proclamando que a personagem que ela contestava teria forçosamente de ser representada por uma pessoa transgénero e lamentando a falta de lugar nos palcos para essas pessoas. Foi a primeira reivindicação identitária no espaço publico português. O autor desenvolve documentadamente esta situação, lembrando uma situação ocorrida na Sorbonne em 2019 (que muito me indignou) em que alguns alunos ou espectadores conseguiram o cancelamento da tragédia As Suplicantes, de Ésquilo, pelo facto de os actores terem a cara pintada de preto, o que foi considerado uma "apropriação cultural".

Houve, depois, o expurgo de páginas de várias obras, algumas clássicas, e a proibição de várias palavras consideradas discriminadoras ou ofensivas como "gordo", substituído por "enorme", "branco", por "pálido", "rapazes" e "raparigas" por "crianças", etc. 

O autor aborda depois o paradigma do ilimitado, escrevendo: «É neste quadro que o wokismo aparece como uma ideologia - isto é, um discurso dogmático que pretende poder explicar tudo, indiferente a todas as objecções ou críticas que lhe sejam feitas - eminentemente reactiva (é sempre "contra", nunca é "a favor" ou "por" nada, o seu discurso tem sempre a forma da rejeição ou da denúncia, nunca a da proposta), adaptando formas de pensamento e de acção eminentemente fanáticas, de conflito e de confrontação, de hostilidade e de delação, de vitimização e de agressividade, com as quais pretende substituir na vida das sociedades democráticas contemporâneas todas as formas de afirmação e diálogo, de argumentação e de convivialidade que têm caracterizado, grosso modo, o mundo ocidental.» (pp. 27-28)

Carrilho insurge-se depois com a transição do social para o societal e da conversão da chamada esquerda de "governo" a uma nova forma de liberalismo, que emergiu nas últimas décadas do século, com a designação de neoliberalismo, à promoção das privatizações, ao endeusamento do mercado e ao abandono das causas tradicionais da esquerda. E escreve: «Mas quando este processo chegou ao fim, por volta da transição do século, ela [a esquerda] viu-se, inesperadamente, sem causas, que efectivamente a diferenciassem e, ao mesmo tempo, sem um povo que inequivocamente a apoiasse. [...] Nesta situação, essa esquerda, sem a indispensável reflexão que o ineditismo da situação aconselhava, ou melhor, absolutamente exigia, pensou ter encontrado duas oportunas bóias  de salvação no contexto que se lhe oferecia: por um lado, a bóia das causas fracturantes, que viriam a consagrar-se mais tarde como causas societais: o casamento gay, a transexualidade, a eutanásia, etc., num caldo de reivindicações que, alimentado por um neofeminismo radical e por um anti-racismo de natureza dogmática, viriam a dar forma ao wokismo. E, por outro lado, a bóia da Europa, a que François Mitterrand, depois do estrondoso fracasso da experiência socialista francesa de 1981/83. tinha talentosamente recorrido para apagar politicamente esse tão significativo desaire, num golpe retórico-florentino com que conseguiu apresentar a Europa como o novo sonho "socialista", proclamando que "a França é a nossa pátria, mas a Europa é o nosso destino"... O processo de ersatz do socialismo para o europeísmo teve aqui a sua origem, com consequências então difíceis de imaginar.» (p. 29)

Ainda sobre o "ilimitado", Carrilho escreve: «É que com essa Europa dos anos 80 do século XX nasce algo novo, que é um outro ilimitado, este de matriz fundamentalmente política, o europeísmo. Ou seja, um ilimitado que se desdobra por uma multiplicidade de vertentes que se tornaram, de meados dos anos 80 do século XX até hoje, para a generalidade dos europeus, num assunto tão corrente como comum, mas também cada vez mais incompreensível e indecifrável: desde os ziguezagues em relação ao federalismo até à ausência de políticas comuns em domínios nucleares como, entre outros, a energia, a saúde ou a defesa, passando pelo seu caótico e interminável alargamento, na verdade sem fim, esquecida que foi a sábia máxima do "não alargamento sem aprofundamento (isto é, sem reformas) das instituições europeias existentes". O ilimitado tornou-se assim no horizonte da Europa...» (pp. 29-30)

 E ainda:

«Neste quadro, em que as soberanias nacionais foram desaparecendo  na ilusão de uma sempre anunciada, mas nunca vislumbrada, soberania europeia, sem a existência de um povo europeu que lhe dê substância e legitimidade, sem fronteiras que lhe dêem limites e forma, o europeísmo contribuiu poderosamente para o processo de esvaziamento das ideologias tradicionais que estruturavam os espaços públicos europeus, para a liquidação da dimensão colectiva da cidadania e para o reforço da consagração do indivíduo, a quem foi sendo oferecido o reconhecimento de toda uma ilimitada panóplia de direitos, nomeadamente enquanto indivíduos pertencentes a todo o tipo de minorias, numa espiral que permitisse transformar todos os caprichos, sexuais ou rácicos, étnicos ou outros, em direitos... humanos!» (pp. 30-31) 

O autor debruça-se depois sobre o identitarismo, considera que a teoria do género se transformou numa real ideologia do género e que esta é a matriz de todo o wokismo. Alude à obra fundadora dos gender studies, o livro de Judith Butler, Gender Trouble - Feminism and the Subversion of Identity (1990), que ultrapassa a fase anterior do feminismo (Simone de Beauvoir, Elisabeth Badinter ou Sylviane Agacinski), anunciando uma ruptura de natureza ideológica, contrariando frontalmente os dados da ciência, pela completa dissociação do sexo e do género. 

Na página 45, Carrilho cita Alain de Benoist: «na realidade o género representa a dimensão social-histórica, cultural e simbólica, da pertença ao sexo biológico. É o sexo tomado na sua acepção cultural, na multiplicidade das suas construções sociais, das suas representações imaginárias e simbólicas. Os dados adquiridos da etnologia e da antropologia social revelaram a multiplicidade das construções sociais do género. Mas o que eles também revelaram foi que todas as culturas distinguem entre o masculino e o feminino, porque esta distinção remete para a diferença binária dos sexos.» E na página 47 recorre à bem conhecida Camille Paglia: «a fria verdade biológica é que as mudanças de sexo são impossíveis. Cada célula dos nossos corpos, com excepção das células sanguíneas, contém durante toda a vida o código do nosso género de nascimento.» Entre as feministas libertárias, o autor menciona além de Paglia, Annie Le Brun e Peggy Sastre. Desta última, cita os livros Ex utero - Pour en finir avec le feminisme e La domination masculine n'existe pas, título provocador que não pretende negar a dominação masculina mas explicá-la em termos científicos, numa base evolucionista, e não em termos políticos e ideológicos.

Segundo Carrilho, a palavra woke «surgiu e foi-se vulgarizando na comunidade afro-americana dos EUA durante todo o século passado, mas só neste século, mais precisamente a partir de 2008, é que ganhou um relevo significativo. Isso aconteceu, primeiro, através da cantora Georgia A. Muldrow, com uma música que repetia o refrão "I stay woke", assumindo em declarações então proferidas que ser woke era algo específico da experiência negra. Mas só um pouco mais tarde, com a eclosão do movimento Black Lifes Matter, em 2013, é que a palavra se generaliza com um sentido cada vez mais político, começando a suscitar o aparecimento de artigos e livros sobre o tema.» (p. 71)

O wokismo do nosso tempo «nasceu num lugar tão inesperado como cheio de consequências: nas universidades. Ou seja, em instituições que tradicionalmente  se caracterizavam pela investigação independente e objectiva, pelo respeito pelos imperativos de cientificidade das diversas disciplinas. Tudo isto foi, no entanto, varrido em poucos anos, por uma convergência de factores em que se destacou a imposição de novos temas como a teoria crítica da raça, a ideologia de género ou a interseccionalidade. [...] Além disso, foi também a origem universitária do wokismo que acelerou a sua influência e disseminação no conjunto das sociedades ocidentais, desde logo - como sublinha Braunstein - dos "ensinos primário e secundário, sobre os media e as indústrias culturais, mas também sobre as empresas, m primeiro lugar as GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft), que difundem com fervor esta nova religião"» (p. 73)

O autor considera que foi da convergência de três teses: tese do poder ilimitado da linguagem, tese da generalizada indiferenciação e tese do poder como um atributo estrutural intrinsecamente articulado com o saber (esta inspirada por Michel Foucault) que resultou o wokismo como ideologia, isto é, como um corpus de afirmações que se colocam fora de qualquer análise ou discussão. «As consequências da ideologia woke tornam-se assim claras; elas são várias,  como já vimos, mas as duas que creio ser fundamental destacar são, em primeiro lugar, o modo como esta ideologia, legitimando-se a si própria, se constitui como instância de poder a que todas as pessoas e todas as instituições se deverão vergar, sob a ameaça de uma enorme panóplia de denúncias, punições ou mesmo agressões. E, seguidamente, como o faz de modo a imunizar-se a si própria em relação a qualquer debate, crítica ou contestação, instalando-se estrategicamente numa posição em que tudo é visto em termos de poder versus submissão, de dominação versus servidão. (p. 76)

Carrilho assinala também uma das figuras centrais do wokismo, a vítima, que vai dar origem à cultura da vitimização. «A vítima impõe-se através da sua associação com o que é reconhecido como insuportável ao olhar dos outros, sendo por isso indissociável da progressiva emergência de um novo tecido social, de uma verdadeira sociedade de vítimas [...] "Realizando uma profecia bíblica, os últimos tornam-se nos primeiros. A vítima tudo justifica, é em seu nome que se faz a guerra contra o Iraque ou contra os pedófilos. Antes ignorada pela história, a vítima tornou-se numa categoria social venerada por uns, instrumentalizada por outros. O qualificativo de vítima confere uma nova dignidade a quem a assume." (p. 78). Citando Pascal Bruckner: «"basta dizer-se vítima para se ter razão, toda a gente se baterá para ocupar essa gratificante posição. Ser vítima tornar-se-á numa vocação, num trabalho a tempo inteiro."» (p. 82). 

O autor fala depois do ressentimento, tão bem analisado por Max Scheller, sentimento indispensável na teoria da vitimização e na visão wokista do mundo que começa a ser adoptada pelas grande empresas norte-americanas. Temos, pois, o capitalismo woke. «Como mostrou Yascha Mounk num artigo de Março de 2024, analisando o funcionamento do Gemini - a novidade lançada pelo Google para responder ao aparecimento do ChatGPT - e as respostas por ele dadas a variadas questões que lhe foram colocadas, a IA já está a ser claramente infiltrada e manipulada pelo espírito woke.» (p. 92). «A adopção do dogma (DEI - diversidade, equidade, inclusão - pelas empresas GAFAM, e muitas outras, que quase todos assumem explicitamente nos seus sites, é pois altamente inquietante, sendo inequívoco, como diz Mounk, que "o viés político actual da inteligência artificial tende visivelmente para o lado woke," o que torna decisivo o debate sobre esta questão, no sentido de se saber "se a inteligência artificial respeitará ou deformará a realidade, se ela dará a todos os instrumentos necessários para nos exprimirmos livremente ou se, pelo contrário, confiará a alguns autoproclamados preceptores o direito de nos darem lições de como pensarmos e agirmos."» (pp. 93-94)

No capítulo sobre o Racismo, Carrilho escreve: «Se, como disse, é na ideologia de género que penso encontrar-se a matriz do wokismo, é no anti-racismo, numa concepção inédita deste fenómeno, que se situa o seu verdadeiro motor. Ele também tem as suas raízes nos EUA, e desdobra-se por duas linhas, dois conceitos, o de racialismo e o de racismo - o "racialismo" aponta para a crença na existência de diferentes raças, o "racismo" afirma a superioridade de uma raça sobre outras - que convergem no facto de ambos fazerem da raça a categoria política, sociológica e cultural central da sua estratégia wokista. Esta convergência é um passo vital para dar forma a uma ideologia que faz do racismo uma característica intrínseca ao Ocidente, que lhe seria inerente, tanto na sua história como na sua actualidade, racismo que deve por isso ser entendido como sistémico, e visa considerar a identidade branca como estruturalmente racista. Impõe-se aqui referir que este processo aparece então acoplado à afirmação de uma nova opção ideológica, a uma nova concepção de identidade, que se assume como uma verdadeira política, a política da identidade.» (p. 97)

«A política da identidade nasce nesta confluência, em que tanto o marxismo como o liberalismo são rejeitados, e uma nova leitura da dominação e do poder se instala, muito inspirada nos trabalhos de Michel Foucault, sobretudo na ideia de um poder sem centro, que se dissemina por todo o lado, pelo que é por todo o lado que se torna imperativo combatê-lo. Ignorando-se - et pour cause! - as reservas que Foucault sempre exprimiu em relação à noção de identidade, que ele concebeu sempre de um modo plural, com todas as limitações que tal noção imporia às pretensões representativas que a política de identidade reivindicava.» (pp. 98-99)

Sobre o patriarcado, o autor refere a noção tradicional e a que o wokismo sustenta, aludindo a O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, publicado em 1967: «É a ela que se deve a primeira tematização do papel do patriarcado, tendo por fio condutor a explicação de como factores biológicos, ontológicos e culturais foram decisivos pra consolidar a dominação histórica do homem sobre a mulher, que se vê remetida para um papel doméstico e de reprodução, enquanto o homem se torna no responsável por lutar e caçar, proteger e dirigir a comunidade.» (p. 118) Ora, segundo Emmanuel Todd, o estatuto do homem e da mulher variou imenso através da história, como é explicado na página 119.

Sobre o conceito de interseccionalidade, o autor escreve: «[...] a noção de interseccionalidade, proposta pela jurista negra americana Kimberlé W. Crenshaw em 1989, num artigo a que deu o longo título de "Demarginalizing the Intersection of Race ans Sexe: a Black Feminist Critic of Antidiscrimintion Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics" e que foi seguido, pouco depois, em meados de 1991, por um outro, "Mapping the Margins; Intersectionality, Identity and Violence against Women of Colour", ambos publicados em revistas jurídicas e mais tarde reunidos em livro.» (p. 123)

A intenção da autora era mostrar que «entre a raça e o sexo existe uma forte e incontornável intersecção, intersecção essa que - apesar da similitude da discriminação de que seriam alvo - não tinha qualquer tradução política nem, sobretudo, jurídica, sendo ela literalmente impensável pelo sempre dominante patriarcado.» (p. 124)

Sobre os equívocos da french theory, Carrilho escreve: « As décadas de 60 e 70 foram um período prodigioso na cultura francesa, em particular no domínio ensaístico, tanto pelas rupturas que protagonizou como pela originalidade das ideias que propôs e pela diversidade das áreas que tocou, da filosofia à psicanálise, da literatura à antropologia, da linguística à sociologia, etc., com um impacto político sem igual no período que se seguiu à 2ª Guerra Mundial. Não foi certamente por acaso que o "Maio de 68" ficou na história como algo que - associado a uma inesperada multiplicidade de acontecimentos de vária ordem - representou uma verdadeira mudança de época. Esta época foi designada sobretudo como o período do estruturalismo, pelo lado da linguística e da antropologia, e como o período da desconstrução, pelo lado da filosofia, da sociologia e dos estudos literários, mas nenhuma designação cobre o enorme espectro das suas propostas e das áreas em que elas mais se fizeram sentir. Além de que há muitos autores deste período que é difícil enquadrar em qualquer daquelas designações, como é o caso de Gilles Deleuze, Jean  Baudrillard, Jean-François Lyotard, e o próprio Michel Foucault - sobretudo o da última fase - ou Jacques Lacan, entre outros.» (p. 135)

«Curiosamente, o começo do acolhimento nos EUA de alguns dos pensadores franceses mais marcantes dos anos 60/70 coincide com o declínio da atenção  e da importância que lhes são dadas em França e em vários outros países europeus. Nesse acolhimento destacaram-se dois deles, Michel Foucault e Jacques Derrida, que passam então muito tempo na América, sobretudo na Califórnia, a fazer conferências e seminários sobre as suas ideias, sempre com uma recepção entusiástica, tão entusiástica que rapidamente vai dar origem à consagração da expressão french theory para caracterizar essa recente - talvez a última, pelo menos até hoje - importação cultural europeia.» (pp. 136-137)

A cultura do cancelamento (cancel culture) é «uma prática censória cuja características balanceiam entre uma clara inspiração totalitária e um comportamento assumidamente fanático. Trata-se de uma "cultura" que o wokismo advogou sempre em paralelo com a defesa das suas teses neo-racistas e neofeministas, de uma nova forma de censura que, diferentemente das suas formas, digamos "canónicas", não é imposta pelo Estado, antes decorre de múltiplas instâncias de poder que, hoje em dia, são quem na verdade o exerce: das instituições paraestatais às plataformas tecnológicas, das grandes fundações aos media (tradicionais e redes sociais), passando pelas universidades, todas essas instâncias contribuindo activamente para a generalização de um estado de espírito do espaço publico próximo do que Alexis de Tocqueville antecipou no século XIX ao adiantar a possibilidade do aparecimento de uma nova forma de tirania, a tirania da opinião. (p. 142)

Sobre o movimento Me Too convém recuar às origens: «O Me Too foi lançado como uma hashtag nas redes sociais, com o objectivo de, a pretexto de denúncias do comportamento do famoso produtor cinematográfico Harvey Weinstein, denunciar outros casos de diversas alegadas agressões sexuais, em diversos ambientes, de convívio ou de trabalho. A expressão "Me Too" tinha sido pela primeira vez utilizada cerca de uma década antes, em 2002, por Tarana Burke, mas só depois de a actriz Alyssa Milano a ter adoptado no Twitter, em 2017, é que ela conheceria a projecção que viria a ter. A ideia era incentivar a denúncia de situações de todos os tipos de agressões sexuais de que mulheres tivessem sido vítimas, e teve um apoio imediato muito generalizado e de nomes muito fortes, dos meios cinematográficos e artísticos. Até ao Verão de 2024, a hashtag #MeToo tinha sido usada cerca de doze milhões de vezes nas redes sociais de todo o  mundo, tendo surgido algumas variantes em alguns países, tendo sido talvez a principal a francesa #balancetonporc, lançada por Sandra Muller, ainda em Outubro de 2017. O movimento Me Too não tem equivalente na história do feminismo, pela amplitude que tomou e pela intensidade com que conseguiu afirmar-se no espaço público ocidental. [...] E tudo se passa como se a palavra tivesse, por um lado, um efeito terapêutico para as alegadas vítimas e, por outro, consequências punitivas sociais, e eventualmente penais, para os alegados agressores. Recolhendo naturalmente muitos apoios dos diversos movimentos feministas contemporâneos, o Me Too levantou todavia questões tão graves como controversas, uma vez que avançou atropelando alguns princípios básicos do Direito, nomeadamente o princípio de presunção de inocência, que trocou na prática pelo princípio de verdade da vítima, reivindicando a equivalência da acusação com a condenação, ou melhor a transformação automática de qualquer acusação pública em condenação do visado, substituindo assim o tribunal judicial, onde a acusação apresenta as suas provas, o acusado expõe a sua defesa e um juiz imparcial pronuncia a sentença.» (pp. 156-157) O autor desenvolve depois, pormenorizadamente, várias  consequências nefastas do movimento, incluindo a "questão trans" «uma vez que o neofeminismo defende que se pode ter o género que se quiser, independentemente do sexo biológico com que se tenha nascido, enquanto o transexualismo afirma que só se pode ser o que se quer ser, mudando o próprio corpo, fazendo assim coincidir sexo e género, precisamente o que o neofeminismo separou, cavando-se assim um conflito sem saída entre o essencialismo transexual e a performatividade neofeminista.» p. 163)

Sobre a classificação do wokismo, Carrilho escreve: «As análises dos fenómenos woke são muito consensuais na sinalização do seu carácter dogmático e inquisitorial. A questão que se coloca mais frequentemente é a de saber como é que se deve classificar esse seu carácter, se ele aponta para uma nova forma de totalitarismo ou de fanatismo, que são fenómenos bem distintos. A minha opção foi considerar o wokismo como um fanatismo, uma vez que, aceitando a caracterização conceptual e temática do totalitarismo feita por Hannah Arendt no seu incontornável livro As Origens do Totalitarismo, de 1951, é para mim claro que o wokismo não se enquadra nessa concepção. E embora seja compreensível, num determinado ângulo de abordagem do fenómeno woke, caracterizá-lo como uma religião, como Jean-François Braunstein fez no seu livro La Religion Woke, penso que uma tal opção dá uma ideia errada, ou pelo menos equívoca, do wokismo, que - independentemente das suas raízes religiosas, de uma religiosidade americana muito específica, que J.-F. Braunstein expõe com grande detalhe - é hoje um movimento incontroversamente laico.» (p. 169). E o autor explica convenientemente porquê.

A terminar, Manuel Maria Carrilho debruça-se sobre o wokismo em Portugal e as suas características particulares, citando alguns casos exemplares.

E cita Yascha Mounk, quando este afirma que "o wokismo vai estruturar a vida intelectual ocidental nos próximos trinta anos, tal como a contestação e a defesa do marxismo estruturou a sociedade durante décadas" (p. 191)

Em conclusão, o autor considera serem os seguintes os "10 mandamentos woke":

1º - Contra o universalismo

2º - Contra o iluminismo

3º - Contra a racionalidade

4º - Contra a ciência

5º - Contra a cultura e a história

6º - Contra a igualdade

7º - Contra a liberdade de expressão

8º - Contra o direito e a imparcialidade

9º - Contra o princípio de presunção de inocência

 10º - Contra a democracia liberal

Num Posfácio, em que discorre sobre a actual situação política mundial, Carrilho escreve: « A questão, a difícil questão, é saber se é possível a um corpo político indolente, desorientado por constantes elucubrações retóricas (sobre a paz, sobre a democracia, sobre o crescimento, sobre a energia, sobre a burocracia, sobre a segurança, etc.) como é hoje a União Europeia, aceder à ordem dos acontecimentos, que é onde se faz a História - mas também, quando se falha esse lance, onde se sai dela... O seu comportamento no caso da invasão da Ucrânia pela Rússia - já vivido como um trauma, embora de menor sismicidade - leva a pensar que não, que pelo contrário o atoleiro em que a União Europeia transformou a sua intervenção só torna tudo mais difícil, deixando agora (escrevo a 16/02), como se viu, todos os trunfos nas mãos de Donald Trump.» (p. 203)

O texto já vai longo e apenas procedi a algumas notas e transcrições dispersas da obra, cuja importância é desnecessário salientar. Trata-se, como escrevi no início, de um dos livros de mais profunda  reflexão sobre o mundo contemporâneo publicado nos últimos anos, cobrindo um vastíssimo leque de questões.

É POR ISSO IMPERATIVO LER ESTE LIVRO E DIVULGÁ-LO! 

 

2 comentários:

Anónimo disse...

irene montero, jose antonio martin pallin, sarah santaolalla...

Anónimo disse...

¿otra plandemia?