Uma das figuras mais notáveis do Século das Luzes, François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-1778), espírito enciclopédico mas personagem complexa, marcou a sua época pelas suas ideias, pelos seus escritos, pela sua intervenção política. Familiar de Frederico II, da Prússia, correspondente de Catarina II, da Rússia (que adquiriu a sua biblioteca), Voltaire é autor de uma vasta e polémica obra. Anti-clerical, racista, anti-semita, homófobo, anti-islâmico, continua a ser uma figura controversa, quer pelas suas afirmações, quer pelas suas contradições. Grande inimigo das religiões, converteu-se ao catolicismo antes de morrer.
Tem sido recorrente no espaço público, nos últimos dias, a referência a Voltaire a propósito da liberdade de expressão, que defendeu, de que usou e de que abusou. Reli, a propósito, a sua peça Mahomet le prophète (1741), uma obra hoje irrepresentável em qualquer palco.
Não que se trate de um drama escandaloso, fossem as suas personagens figuras comuns. Espectáculos muito mais chocantes têm sido apresentados nos teatros do mundo. A vexata quaestio reside no facto de Voltaire pôr em cena Muhammad, profeta do Islão, atribuindo-lhe os piores crimes. Verdadeiramente provocatória (era essa a intenção de Voltaire), a peça foi representada em Lille (1741), com escasso êxito, e depois em Paris (1742), tendo sido proibida pelo Parlamento de Paris depois de três representações. Napoleão Bonaparte confirmaria esta condenação. Que eu saiba, e apesar de algumas tentativas, a peça não voltou a ser apresentada. De resto, trata-se de um texto em verso, literariamente interessante mas de medíocre importância dramática, cinco breves actos que são pretexto para o ataque a uma religião e ao seu fundador.
Vem isto a propósito dos recentes incidentes em França, ainda na sequência da publicação e republicação pela revista "Charlie Hebdo" de caricaturas do profeta Muhammad, consideradas pelos muçulmanos ofensivas da sua religião. Será a liberdade de expressão ilimitada? Existe o direito à blasfémia? A questão suscita veemente polémica e são variados os argumentos brandidos por ambas as partes.
Parece, todavia, que o discernimento impõe limites a determinadas publicações. Por exemplo, o atentado ao bom nome é punível por lei; nem tudo se pode escrever, ou desenhar. Isto é tanto mais válido, quando está em causa uma atitude que é tida por profundamente ofensiva dos crentes de uma religião professada por mais de 1,5 mil milhões de pessoas; até que fossem só uma dezena. Será admissível, em nome de um certo conceito de laicidade, provocar directamente os seguidores de Muhammad? Terá essa atitude motivações políticas subjacentes? É que neste caso das caricaturas do "Charlie Hebdo" nada parece gratuito.
Ao escrever Mahomet le prophète, Voltaire pretendeu atacar particularmente o Islão mas, no fundo, tratou-se de um ataque a todas as religiões, as quais ele execrava. Os tempos, todavia, eram outros e a peça tornou-se conhecida de apenas umas centenas de franceses e de pouquíssimos estrangeiros. Numa época de globalização, há que pensar que aquilo que hoje se publica atinge milhões de pessoas, tem uma expressão universal.
A questão das caricaturas do "Charlie Hebdo" provocou, desde 2015, uma série de atentados em França e, por indução, noutros países. Sendo vasto o campo em que se pode exercer a veia satírica da revista, não parece de bom senso utilizar imagens que significam para muitos a profanação da sua fé. E convém especialmente não reincidir quando já se conhecem as consequências.
É evidente, para um certo estrato cultural e social, que a publicação de umas imagens não justifica um atentado, um homicídio que seja. Para os laicos, trata-se de uma resposta totalmente desproporcional. Ainda por cima, quando as vítimas, a generalidade delas, nada tem a ver com a difusão dessas imagens. Outros pensam o contrário. Este é o mundo em que vivemos e não devemos ser insensatos. Não se trata de coarctar a liberdade de expressão mas tão só a de a confinar nos limites da razão. Todos nós defendemos a esfera da nossa liberdade pessoal, mas só é legítimo fazê-lo quando ela não invade a esfera da liberdade dos outros. Reflicta-se no velho ditado popular: «Quem semeia ventos, colhe tempestades".
Um crime é sempre um crime, e como tal absolutamente condenável. Mas convém evitar as condições que conduzem a esse crime, sendo elas antecipadamente conhecidas. E convém saber, também, sem ambiguidades, se os crimes cometidos em nome do Islão o são realmente ou se o Islão está a servir de pretexto para tais acções, cuja finalidade é distinta . Importa recordar que o prof. Olivier Roy, um dos mais eminentes islamólogos franceses, tem afirmado que a situação presente não decorre da radicalização do Islão mas da islamização dos radicais. Uma diferença que não é despicienda.
O "Estado Islâmico" não tinha (não tem) nada de islâmico, salvo o nome.
Estejamos, pois, alerta!
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