sábado, 14 de novembro de 2020

AFROCENTRISMO E EUROCENTRISMO

Li, por sugestão do Miguel Castelo Branco, o recém-publicado livro A Ideologia Afrocentrista à Conquista da História - A Memória em Leilão, de François-Xavier Fauvelle, especialista em assuntos africanos e professor no Collège de France.

Trata-se da oportuníssima edição em língua portuguesa do livro homónimo editado em França em 2009 e que reúne três artigos publicados em revistas, o primeiro em 1998, os dois últimos em 2002. Mas que não perderam minimamente interesse, até porque as controvérsias que evoca, oriundas especialmente dos Estados Unidos, levaram tempo a chegar à Europa.

Simplificando: o autor ocupa-se da narrativa histórica "eurocentrista" e da nova narrativa "afrocentrista" que pretende rever a primeira. É verdade que nós estudámos História pelos livros do Mattoso e do Malet, com as civilizações arrumadas segundo a Antiguidade Oriental e a Antiguidade Clássica, sempre numa perspectiva de que a Europa era o centro do mundo. É claro que esta perspectiva continha erros, que têm sido denunciados nas últimas décadas. Mas a perspectiva revisionista de que é a África, a partir do Egipto, que é o berço da civilização universal, especialmente protagonizada pelo investigador senegalês cheikh Anta Diop (1923-1986), [Nations nègres et culture. De l'antiquité nègre égyptienne aux problèmes culturels de l'Afrique noire aujourd'hui (1955] que acusa os europeus de falsificação ocidental da história, decorre mais de interesses políticos do que da "verdade". no seu estado actual. Temos pois um conflito entre uma visão "conservadora" e uma visão "descolonizada" da história. Sócrates, Cleópatra, Jesus, teriam sido brancos ou negros? Foram os egípcios que colonizaram a Grécia? Foram os africanos que conquistaram a América antes dos europeus? Os revisionistas pretendem que os eurocentristas provem o contrário! Um académico britânico, Martin Bernal, sustenta mesmo que a Grécia era muito menos ariana do que geralmente se pensava e muito mais semita e africana (Black Athena: The Afroasiatic Roots of Classical Civilisation).

Não sendo possível enunciar exaustivamente a argumentação do autor, registemos alguns tópicos: «Como muitos críticos demonstraram, Diop e Bernal usam o conceito de "raça" de forma no mínimo duvidosa. Ao quererem inverter, sem grandes precauções, o papel das "raças" branca e negra, não há nada de surpreendente no facto de as suas teorias terem sido enunciadas nos mesmos termos. O mesmo pode ser dito em relação às "etnias" africanas, nas quais Cheikh Anta Diop (que escreveu a sua principal obra antes das independências) vê um instrumento de fragmentação de África, equivalente ao "dividir para melhor reinar" das administrações coloniais. Não podemos negar que, neste ponto, tem razão.» (pp. 40-41)

«Depois de terem querido ignorar durante muito tempo um discurso considerado excêntrico e militante, os investigadores legitimistas tomaram subitamente a consciência, no início dos anos 1990, do perigo de acreditar que o conhecimento devidamente adquirido se bastava a si mesmo. [...] Existia o risco de surgir uma contra-tradição académica, com o seu discurso específico, as suas próprias referências, a sua própria legitimidade. A franja mais radical do movimento expressava-se na Internet e editava uma newsletter ("A voz afrocentrista na Internet"), onde se podia ler que a NASA escondia desde os anos 1980 a descoberta de ruínas piramidais em Marte, prova da origem extraterrestre e negra da Humanidade.» (pp.47-48)

«Em 1996, dois especialistas americanos em Antiguidade tiveram a ideia de reunir, tornando-os acessíveis ao público, alguns dos artigos científicos que a publicação de Black Athena motivara. Com o título Black Athena Revisited [M. Lefkowitz & G. Mc Rogers, Black Athena Revisited (1996)], o  volume analisa as teses de Martin Bernal, quer se trate das raízes egípcias ou "semitas" (sic) da civilização grega, da negrura dos Egípcios ou da conspiração erudita contra a verdade. [...] Publicada no mesmo ano, a obra de Mary Lefkowitz (co-editora da obra anterior) vai no mesmo sentido. Com o título provocador Not out of Africa, a autora dedica-se a determinar a cor da pele de Sócrates e de Cleópatra, mas mostra igualmente que a crença numa origem egípcia da filosofia grega se inscreve numa longa tradição de erros e de mistificações, que não fica atrás da tradição supostamente falsificadora do Ocidente.» (pp. 50-51)

«Para lá das teorias divergentes, são sobretudo duas concepções da história que se opõem. A tradição histórica dita ocidental convida actualmente a estudar as influências, amiúde recíprocas, entre culturas, a seguir os traços de trocas culturais e económicas entre diferentes regiões, a compreender as miscigenações. Com um século de atraso, o afrocentrismo oferece uma visão romântica da história, entendida como um campo de batalha repleto de efeitos especiais, de acções heróicas, e pondo em conflito "raças" de cores diferentes, através de um artifício cinematográfico que permitirá apreender melhor o resultado do combate. Esta percepção a preto e branco da história levou a uma verdadeira crispação do debate. Ou se está ou não se está do lado certo. Hoje em dia, é difícil discutir as teorias de Cheikh Anta Diop ou de Martin Bernal sem se ser suspeito de racismo e de perpetuar, sob formas ainda mais dissimuladas, a conspiração ocidental.» (p. 52)

«Embora o termo afrocentrismo tenha começado a ser usado nos anos 1980, o fenómeno tem uma história mais longa, que atravessa a segunda metade do século XX. Presente sob diferentes formas e em  formas distintas numa multidão de autores de origens variadas, o afrocentrismo participa de tradições diversas, entrecruzadas, por vezes contraditórias: o pan-africanismo dos estudantes africanos da França do pós-guerra (alimentado pelo desejo de descolonizar os espíritos); o romantismo oitocentista do movimento da negritude (no postulado de uma "mentalidade" negra partilhada por todos os africanos e pessoas de origem africana); o radicalismo dos black muslims ou o idealismo rastafári (em particular, no seu desejo de regresso à "autenticidade africana"; o "pan-africanismo" de um Marcus Garvey, marcado por uma condescendência com África; ou ainda o fundamentalismo de um certo número de movimentos como a Nação do Islão.» (pp. 60-61)

«Mas, ao mesmo tempo, tece à escala global solidariedades de um novo tipo, que não respondem à necessidade imediata de subverter uma situação de opressão bem definida (à semelhança do movimento pelos direitos cívicos, do anticolonialismo ou até do terceiro-mundismo), mas que procuram mobilizar um público em função de um traço físico comum: a cor da pele.» (p. 62)

«Reposicionar África no centro da história do mundo é, com efeito, o que proclamam os intelectuais afrocentristas. De acordo com o seu principal teórico contemporâneo, esta nova filosofia "coloca [...] os ideais africanos no centro de qualquer análise que envolva a cultura e o comportamento africanos".» (p. 63)

«Este princípio de apropriação e de reescrita da história em benefício do "mundo negro" transparece também numa outra obra de Van Sertima, consagrada à presença africana na Ásia antiga, do Próximo Oriente à China. Nela são especialmente mencionadas as migrações antigas que fariam dos africanos os verdadeiros fundadores das civilizações árabe e indianas. Segundo este esquema, Krishna e Buda são "deuses negros".» (p. 65)

«É certo que a lógica comunitária, a lógica comercial, e mais ainda a arquitectura da Internet fazem com que o internauta negro receba online sugestões de arte "negra", de música negra" e de outros produtos "negros" que correspondem à sua alma "negra". [...] ... o afrocentrismo apresenta-se como novo discurso politicamente correcto no seio da comunidade dos americanos "africanos". [...] Diz-me a tua cor e eu dir-te-ei o que deves pensar: para os brancos, o "pensamento ocidental", para os negros, o afrocentrismo.» (pp. 71-72)

«O "Renascimento Africano", caro ao presidente sul-africano Thabo Mbeki e ao seu círculo de intelectuais e empresários, pode ser interpretado, por seu turno, como uma variante local do afrocentrismo global: com efeito, uma análise dos discursos revela a mesma instrumentalização da história orientada para uma terapia de grupo, bem como empréstimos directos das temáticas e dos autores afrocentristas.» (p. 94)

«Seria de esperar que uma ideologia como o afrocentrismo generalizada entre as minorias de origem africana dos países ocidentais e que não hesita em estigmatizar o "racismo" dos brancos e considerar todos os africanos e qualquer pessoa de cor negra vítimas da história, reservasse ao tráfico negreiro e à história da escravatura um lugar central nos seus discursos político-científicos e nas suas reivindicações. Este não é, porém, o caso, pelo menos à primeira vista. Assim, quase não encontramos uma única palavra sobre o tráfico de escravos na obra do historiados senegalês cheikh Anta Diop, intelectual de enorme renome no seio das diásporas negras e figura tutelar do afrocentrismo. [...] Quando o tráfico negreiro é mencionado na sua obra, é-o apenas de forma acessória, porque Cheikh Anta Diop via neste facto histórico de longa duração um elemento económico estrutural que tornara possível o desenvolvimento do processo de raça e a ocultação sistemática do carácter profundamente africano e "negro da civilização do Antigo Egipto".» (pp. 99-100-101)

«Sabemos que a Nação do Islão é um movimento negro e muçulmano que produz, pelo menos internamente, o seu próprio discurso histórico segundo o qual os negros são muçulmanos originais e autênticos - um discurso que entraria em competição com o discurso afrocentrista, se a sua coexistência não revelasse antes a variedade dos instrumentos identitários e a complementariedade das posturas sociais à disposição dos simpatizantes.» (pp. 103-104)

«Normalmente acusado de sexismo e homofobia, o movimento é actualmente dirigido por Louis Farrakhan, autor notório pelas suas tiradas anti-semitas. Não é anódino, diga-se de passagem, que a produção de um discurso histórico centrado no tráfico negreiro e na escravatura e que põe em causa, como veremos, os judeus, emane de um movimento que proclama a sua solidariedade com o mundo árabe muçulmano e com a causa palestiniana (daí as tomadas de posição anti-israelitas e os deslizes judeofóbicos e anti-semitas).» (p. 104)

«Tudo começou em 1991 com uma série de ataques no seio da "nação hip-hop", que envolveram o rapper negro Ice Cube e Bill Adler - que se apresenta a si próprio como "judeu e activista do rap" (Jew and rap activist) -, a propósito da menção pública que o primeiro fez de uma obra intitulada The Secret Relationship Between Blacks and Jews. Este livro, publicado sob a égide da Nação do Islão, defende a responsabilidade massiva e até agora insuspeita (a "relação secreta") dos judeus no tráfico negreiro.» (p. 105)

Face à resposta do Centro Simon Wiesenthal que promoveu a publicação de duas obras a contestar a afirmação, os líderes da Nação do Islão, Louis Farrakhan e Khalid Abdul Muhammad substituíram os rappers negros e retomaram as teses de The Secret Relationship. A discussão prosseguiu. Henry Louis Gates comparou aquela obra aos Protocolos dos Sábios de Sião. Pode ler-se na mesma: «Os judeus seriam, na verdade, responsáveis pelo maior crime perpetrado contra uma "raça" (sic) de homens: o tráfico negreiro e a escravização de milhões de "cidadãos" (citizens) africanos - um crime que, tendo em conta a inversão de perspectiva, pode ser legitimamente chamado "crime contra a humanidade (crime against humanity), de onde passa facilmente à noção de um "Holocausto negro africano" (Black African Holocaust). Os judeus não são apenas os cúmplices deste crime, mas acima de tudo os seus principais organizadores e beneficiários, como testemunharia a sua "imensa riqueza".» (p. 118)

Transcrevemos algumas passagens do livro de Fauvelle para melhor elucidação do leitor, sabendo que apenas a leitura da obra permitirá que ele se aperceba globalmente desta nova ideologia que procura refazer a História. A argumentação afrocentrista, que se pretende científica, é extraordinariamente frágil e não resiste à "verdade" estabelecida pelas investigações "ocidentais" ao longo dos séculos, ainda que não existam verdades absolutamente definitivas. O corpus dos conhecimentos validados civilizacionalmente até ao século XX parece ainda bastante sólido para contestar a maior parte das teses do afrocentrismo, sem prejuízo do reconhecimento da importância das civilizações africanas, as quais só muito recentemente passaram a ser objecto de estudo em níveis elevados de ensino e em determinadas geografias.

O livro de François-Xavier Fauvelle inclui uma interessante bibliografia destinada a quem deseje estudar mais pormenorizadamente a matéria.


1 comentário:

Leitor ocasional disse...

Pagamos o preço de fazer da África um "buraco negro" até à Conferência de Viena onde foi feita a sua divisão a régua e esquadro, salvo a linha costeira.

Custará muito falar dos Reinos Africanos, conforme temos ouvido na Antena 2, num programa relativo a livro onde se relatam a expedições portuguesas ao interior de África, e ao "dialogo" que tivemos com estes Reinos, e o facto de alguns Principies terem sido recebidos em Lisboa com respeito pelo seu estatuto?

É conhecemos melhor Incas e Maias que estes Reinos ..

É que História que não se conhece permite muita "invenção criativa" ....