quarta-feira, 24 de julho de 2019

CAVALEIROS DE MALTA




A minha recente estada em Rhodes (em Malta estive há já alguns anos), suscitou-me o desejo de reler Chevaliers de Malte, de Roger Peyrefitte, tradicionalmente considerado um escritor menor, talvez devido à sua reputação sulfurosa (há reputações sulfurosas bem aceites, outras mal aceites e outras que transitam de categoria, como o caso do actualmente venerado marquês de Sade), mas a quem se devem obras maiores da literatura francesa.

Homem de espantosa erudição, especialmente em História, e nesta particularmente em História da Antiguidade, História da Igreja ou de algumas instituições, Roger Peyrefitte (1907-2000) publicou cerca de cinquenta livros, certamente desiguais na forma como aborda os problemas e mesmo na excelência da escrita, ainda que tenha sempre mantido, tanto quanto posso avaliar, a exactidão de nomes, datas, factos ou textos citados, como, aliás, ele faz questão de salientar na obra agora em referência.

Julgo que ninguém de boa fé poderá negar que Les Amitiés particulières (1943), Les Ambassades (1951), ou a trilogia sobre Alexandre le Grand (1977/1979/1981) sejam obras despiciendas, ainda que por vezes uma atracção excessiva pela coscuvilhice pareça tornar-se central nos seus livros (quando, em geral, é acessória), especialmente nos publicados nos últimos anos da sua vida.

Cultivando principalmente o romance, diríamos mesmo o romance histórico, também escreveu teatro, além dos inúmeros artigos que publicou nos mais diversos jornais e revistas. Les Amitiés particulières (que recebeu o Prémio Renaudot), o seu primeiro romance, de carácter autobiográfico, foi mesmo passado ao cinema (1964) por Jean Delannoy, obtendo assinalável êxito.

Diplomata de carreira, foi forçado a apresentar a sua demissão em 1940, por uma questão de costumes. Reintegrado em 1943, retirou-se definitivamente em 1945.

O livro em apreço aborda as relações turbulentas entre a Santa Sé e a Ordem de Malta durante o pontificado de Pio XII, devido especialmente às ambições do cardeal Nicola Canali, já Grão-Mestre da Ordem do Santo Sepulcro (e Penitenciário-Mor da Santa Sé e Presidente da Pontifícia Comissão para o Estado da Cidade do Vaticano) e que desejava, por quaisquer meios, tornar-se igualmente Grão-Mestre da Ordem de Malta.

Assim, Canali é a bête noire do livro, que permite a Peyrefitte desenvolver todas as intrigas da Corte Pontifícia. De resto, a escalpelização das intrigas nas instituições sobre que se debruçou passou a constituir um leitmotiv da sua obra. Compreende-se, pois, que se tenha tornado persona non grata em certos meios, não porque haja divulgado mentiras mas porque a divulgação de certas verdades é sempre incómoda para os visados, mormente quando estes procuram dissimulá-las sob um véu de incorruptibilidade.

Sobre Canali referir-se-á, por curiosidade (isto nada tem a ver com o livro), que foi o último cardeal da Igreja Romana que não foi bispo. Até Pio XII, e durante séculos, qualquer pessoa podia ser cardeal. No Renascimento, houve cardeais impúberes e sem quaisquer ordens religiosas. Ainda é do meu tempo a existência de cardeais que apenas eram sacerdotes. Só a partir de João XXIII foi estabelecido que todos os cardeais deveriam ser bispos. Assim, o escolhido só receberia o chapéu cardinalício depois de ter sido sagrado bispo (se fosse padre) e de ter sido ordenado sacerdote e a seguir sagrado bispo (se fosse leigo). De facto, o cargo de cardeal, especialmente como eleitor do Papa, é bastante lateral à ordem de sucessão apostólica. As coisas hoje, na prática, são totalmente diferentes.


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