terça-feira, 14 de agosto de 2018

RECORDAÇÕES DE INFÂNCIA



Para uns dias de férias na praia resolvi levar um livro há muitos anos adormecido na minha biblioteca: Un souvenir d'enfance de Léonard De Vinci, de Sigmund Freud, traduzido por Marie Bonaparte. Lera algumas das obras mais importantes do Mestre de Viena, mas esta, inexplicavelmente, permanecia em sossego numa estante. Leonardo, o homem que Freud considera o Fausto italiano, devido ao seu incansável e insaciável espírito de investigação. (p. 26)

Neste livro, Freud debruça-se sobre a sexualidade infantil (um dos seus temas de eleição) e enuncia as três possibilidades de curiosidade intelectual após o período de investigação da dita sexualidade infantil. (p. 34)

Insiste Freud, neste seu ensaio, que Leonardo se limitou, no decorrer da sua vida, a uma homossexualidade platónica (salvo, talvez, o período em que se iniciou nas artes, quando trabalhou como garzone, dos 14 aos 21 anos, no atelier de Andrea Del Verrocchio, à época o mais notável pintor e escultor florentino). Sabemos hoje que não foi assim, e Freud possivelmente o saberia também, mas a prática habitual da homossexualidade de Da Vinci ou não encaixaria nos seus esquemas mentais  ou a sua exposição pública não seria conveniente para os padrões da época.

Segundo Freud, uma única vez Leonardo inseriu nos seus escritos científicos um dado relativo à sua infância. É quando refere que, ainda no berço, um abutre se lhe dirigiu e lhe abriu a boca com a cauda, tendo-lha enfiado várias vezes entre os lábios. Transcrevo o original italiano da pena do artista: «Questo scriver si distintamente del nibbio par che sia mio destino, perchè nella mia prima infantia è mi parea che essendo io in culla, che un nibbio venissi a me e aprissi la bocca colla sua coda e molte volte mi percotessi con tal coda dentro alle labbra.» (Codex Atlanticus di Leonardo da Vinci - Biblioteca Ambrosiana di Milano). (p. 64)

Esta investida do abutre corresponde à ideia de um fellatio, até porque coda (cauda, em italiano) é o símbolo mais conhecido e a designação do ersatz do membro viril. (p. 53) Ao longo da obra, Freud discorre sobre as circunstâncias do nascimento de Leonardo, filho ilegítimo, arrancado aos cinco anos aos braços da mãe para passar a viver com o pai e com a madrasta que, aliás, cuidadosamente se ocupou dele. Todavia, a ligação à mãe biológica, que o amamentou, permaneceu para sempre em Leonardo. E sendo Freud um estudioso das civilizações orientais, em especial da egípcia, não deixa de salientar que na escrita sagrada hieroglífica os egípcios figuravam a Mãe sob a imagem de um abutre. A divindade maternal, com cabeça de abutre, era designada por Mut, sendo curioso que "mãe" se diga "Mutter" em alemão. (p. 57)

Escreve o Mestre: «Si nous tenons compte de la vraisemblance historique suivant laquelle Léonard se comporta toute sa vie sentimentalement en homosexuel, la question se pose: ce fantasme n'a-t-il pas trait à quelque lien causal entre les rapports de Léonard enfant avec sa mère et son ultérieure homosexualité, manifeste bien que platonique?» (p. 77) «Chez tous nos homosexuels hommes, nous avons retrouvé, dans la toute première enfance, période oublié ensuite par le sujet, un três intense attachement érotique à une femme, à la mère généralement, attachement provoqué ou favorisé par la tendresse excessive de la mère elle-même, ensuite renforcé par un effacement du père de la vie de l'enfant.» (pp. 78-9)

Ao longo da obra, Freud vai tecendo pertinentes considerações. Por exemplo: «Tout le monde, même l'être le plus normal, est capable du choix homosexuel de l'objet, l'a accompli à un moment donné de sa vie, puis, ou bien s'y tient encore dans son inconscient, ou bien s'en défend par une énergique attitude contraire.» (p.92) «La fable de la cicogne, du grand oiseau qui apporte les enfants, que l'on conte à ceux-ci quand leur curiosité s'éveille, les phallus ailés des anciens, l'expression "vögeln" (de Vogel: oiseau) dont on désigne en allemand populaire l'activité sexuelle de l'homme, le nom d'ucello (oiseau) donné par les Italiens au membre viril; autant de fragments d'un grand ensemble nous enseignant que le désir de voler ne signifie rien autre, dans nos rêves, que le désir ardent d'ètre apte aux actes sexuels. C'est là un souhait infantile très précoce.» (p. 129)

Ou ainda: «Mais même en possession de la plus ample documentation historique et du maniement certain de tous les mécanismes psychiques, l'investigation psychanalytique  en deux points importants resterait impuissante à rendre compte de la nécessité qui commanda à un être de devenir ce qu'il fut et de devenir rien d'autre. Nous avons dû admettre que, chez Léonard, le hasard de sa naissance illégitime et l'excessive tendresse de sa mère exercèrent l'influence la plus décisive sur la formation de son caractère et sur sa destinée, le refoulement survenu après cette phase d'enfance ayant conditionné et la sublimation de la libido en soif de savoir et l'inactivité sexuelle de toute sa vie.» (p. 148) «La psychanalyse reste donc impuissante à expliquer ces deux particularités de Léonard: sa tendance extrême au refoulement des instincts et son extraordinaire capacité à la sublimation des intincts primitifs.» (p. 149)

Na capa do livro é apresentada a pintura de Leonardo da Vinci "A Virgem, o Menino Jesus e Santa Ana", exposta no Museu do Louvre. Freud tece diversas considerações sobre as pinturas inacabadas de Leonardo, sempre insatisfeito com as suas obras, o que é o caso do quadro em questão, da "Gioconda" ou da "Última Ceia". Relativamente ao primeiro, Freud enfatiza a ligação primordial entre a Virgem e o Menino (a Mãe e o Filho) considerando Santa Ana uma figura acessória. E estabelece uma comparação geométrica entre a pintura e o abutre dos seus sonhos. Reproduzimos abaixo a interpretação de Freud:


A parte tracejada do desenho representa o abutre. À esquerda, a cabeça e o pescoço do abutre, o corpo confunde-se com o manto azul da Virgem, e à direita alta, a cauda na direcção da boca do Menino. Insondáveis os desígnios de Freud e da psicanálise.

Em 2015, Mário Cláudio publicou Retrato de Rapaz, sobre a vida de Salaï, discípulo e amante preferido de Leonardo Da Vinci. Nesta obra de ficção, a todos os títulos exemplar, o escritor não só retrata Salaï como evidentemente Leonardo, utilizando as informações hoje existentes sobre o Mestre florentino e que não eram ainda conhecidas no tempo de Sigmund Freud. Sobre o livro de Mário Cláudio escrevi então aqui, à data em que o mesmo recebeu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores.


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