terça-feira, 24 de outubro de 2017

AL BERTO



A recente exibição do filme Al Berto, de Vicente Alves do Ó, sobre os anos de permanência em Sines do poeta Alberto Pidwell Tavares (1948-1997), suscitou-me o interesse de ler o livro de Golgona Anghel, Eis-me Acordado Muito Tempo Depois de Mim - Uma Biografia de Al Berto, que adquiri na altura da sua publicação (2006) e permanecia em repouso na minha biblioteca.


Junto a esse livro descobri o primeiro livro de Al Berto, publicado na colecção "Subúrbios", que ele mesmo criara, À procura do vento num jardim d'Agosto (1977). E também Demasiadamente belos para quem só não queria estar só, de Sérgio M. N. da Costa e Silva, igualmente editado por Al Berto, noutra colecção, o único livro que conheço deste autor, e que foi dado à estampa no mesmo ano de 1977. Adquiri-os nessa data, creio que na Livraria Bertrand, por mera casualidade, pois nada então conhecia do poeta. Li-os na altura em que os comprei, o que nem sempre sucede com os livros que vão chegando às minhas estantes. Talvez por isso, quando surgiu em 1979 (ou 1980 segundo a biógrafa) um novo livro de Al Berto, Meu fruto de morder todas as horas, apressei-me a comprá-lo. A temática era, obviamente, a mesma.


Depois, comprei mais livros de Al Berto, não todos, até à última edição de O Medo, edição que reúne a obra completa, publicado em 1997, já depois da morte do poeta.


Sobre o filme, que a crítica não acolheu com entusiasmo, pouco se me oferece dizer. A película relata os anos de permanência de Al Berto em Sines, após o seu regresso a Portugal (depois de um "exílio" no estrangeiro) após a revolução de 1974. É especialmente exaltada (e sexualmente mostrada q.b.) a sua relação com João Maria do Ó, meio-irmão do realizador, em cenas que hoje já nem sequer se podem considerar "chocantes", a vida agitada no palacete arruinado da família, os contactos com alguns amigos, e amigas, a criação da livraria Tanto Mar, as festas em casa, onde não faltava o travestismo e a droga, e também a rejeição desta "nova" maneira de viver, ostensivamente homossexual, que surpreende e "ofende" os bons habitantes de Sines, a quem nem a revolução "libertadora" do 25 de Abril conseguiu libertar do seu conservadorismo em matéria de costumes. É claro, mas isso não vi no filme, que para lá da relação privilegiada com João Maria, Al Berto engatava sistematicamente os putos da terra, que por vontade própria, por curiosidade ou em troca de alguns favores, fosse um pouco de dinheiro ou de droga (mas poderá chamar-se a isto prostituição?) frequentavam a casa e se entregavam aos prazeres do sexo. Para algumas famílias da região tal coisa era obviamente inaceitável, para outras era absolutamente indiferente (já tinham visto muitas coisas na vida), para a maioria era até uma forma de os rapazes se "desenrascarem" e não andarem a chatear em casa a pedir coisas.


Vendo o filme, quem não conheceu Al Berto (eu falei com ele duas vezes num bar do Bairro Alto, um bar não propriamente gay que se chamava Sudoeste e que não sei se ainda existe), ficará muito pouco esclarecido acerca do poeta, como homem e como artista, tanto mais que os dez últimos anos da sua vida, passados em Lisboa, foram essenciais para a sua afirmação literária. No Sudoeste, Al Berto estava habitualmente rodeado por uma corte de rapazes que o venerava e que contribuía para estimular a sua veia poética. Também nos cruzámos no Frágil, o primeiro bar trendy do Bairro Alto, a funcionar numa antiga padaria, lugar de encontro simultâneo dos nossos mais prestigiados escritores, actores, pintores e a socialite da época, e também por homossexuais de ambos os sexos, sendo que na sua maior parte os primeiros entravam também na segunda categoria.



Quanto ao livro, intitulando-se uma biografia, é especialmente uma bibliografia ou uma biografia literária, e perde grande parte do interesse que poderia revestir, tanto mais que a autora, tanto quanto é sabido, dispunha de um manancial de documentação e testemunhos sobre a vida do poeta. Todavia, um certo puritanismo provisoriamente suspenso no pós 25 de Abril (pelo menos nas grandes cidades) regressou à nossa vida pública, onde só é dizível o que é politicamente correcto, o que se insere na lógica LGBT e não perturba especialmente a moral burguesa. Aceitam-se os casamentos same-sex mas são mal vistos os engates de rua, isto é, o oposto à trajectória pessoal de Al Berto e à estrutura da sua obra. Tanto assim, que a autora refere que o poeta morreu vítima de um linfoma (o que pode não ser objectivamente incorrecto) quando toda a gente sabe, embora isso não tenha sido divulgado na altura do seu passamento, que a verdadeira causa da morte foi estar contaminado com sida. Também é verdade que ele negou sempre essa evidência, afirmando que tinha um cancro e, quase até ao fim da vida, assegurou que haveria de vencê-lo. Mas, na altura, a ciência ainda não dispunha, contra a sida, dos recursos existentes nos nossos dias.


De qualquer forma, do ponto de vista da produção literária de Al Berto, a obra tem evidente interesse, pois é a única que conheço referindo os seus livros, outros escritos, a estada no estrangeiro, a participação em conferências internacionais, as opiniões dos seus confrades, a atenção que o "meio literário" nacional lhe concedeu quando o "descobriu", até porque ele ousava dizer (e escrever) aquilo que muitos só eram capazes de pensar ou de realizar na clandestinidade dos urinóis públicos e dos quartos recônditos das pensões mal afamadas. Mesmo assim o país político reconheceu-lhe o valor e Jorge Sampaio agraciou-o com o grau de oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada.


No dia do seu funeral, em 15 de Junho de 1997, Mário Cesariny prestou o seguinte depoimento: «Acompanhei pouco o Al Berto mas acompanhei o suficiente para saber que ele é, para mim, o último sobrevivente de uma cidade desaparecida. Uma cidade de Lisboa que para mim desapareceu há muito tempo. Mas vejo na poesia dele que ele sonhava com essa cidade, e sonhar já não é pouco, não é? Gostava imenso dele, achava-o uma pessoa encantadora e um bicho da noite, da tal noite que vai rareando. O que foi a minha cidade de Lisboa desapareceu há muitos anos e acho que Al Berto ainda sonhava essa cidade. Era uma pessoa excepcional, um bom poeta. Li o Horto de Incêndio, tem muito bons poemas. Para mim o poeta é muito mais importante que os poemas e ali está um poeta. Acho que é o melhor que posso dizer.»


A Lisboa "da noite" a que Cesariny se refere, e que os iniciados tão bem compreendem, foi morrendo aos poucos por causas diversas que não cabe aqui mencionar. Aliás, o que se verificou em Lisboa aconteceu na maior parte das grandes cidades europeias, embora as razões possam não ser exactamente as mesmas, mas quase. Cesariny, que nascera em 1923, ainda usufruiu de um certo tipo da Lisboa a que Raul Brandão alude nas suas Memórias. Al Berto muito pouco, mas intuiu o que tinha perdido. Em 1997 o "encanto" de Lisboa, que levava tantos estrangeiros a visitarem-na frequentemente, tinha acabado ou estava moribundo. Hoje, desapareceu de vez. Se fosse vivo, Cesariny, que morreu em 2006, não suportaria continuar a viver.

Mas o mais importante, para citar o título de um livro de Eduardo Prado Coelho, é "tudo o que eu não escrevi".


1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente post. De facto,com Cesarinys,Al Bertos, e outros menos célebres,de- sapareceu uma Lisboa,senão um Portugal (pois uma certa provincia tambem se foi) com encantos e interesses que davam vida,animação,liberdades,ensinamentos,aventuras. E em troca? O "politicamente correcto",o medo da possivel transgressão,o recolhimento em casa,à sombra da telenovela e da porta bem fechada. Em vez da aventura,a pantufa. Para os jovens,álcool e droga,porque não,a sociedade compreende. Mas nada mais. Devem preparar-se para a futura pantufa. E como não temos outro mundo,vamos suportando este,e recordando com alguma amargura as nossas memórias de outros tempos,que desparecerão conosco.