terça-feira, 10 de outubro de 2017

A SOCIEDADE DO MISTÉRIO




Foi recentemente publicado mais um livro do notável escritor Dominique Fernandez (n. 1929), membro da Academia Francesa.

Autor de vastíssima obra, que inclui romances, ensaios, biografias, livros de viagens, livros de fotografias, traduções, e até o libretto de uma ópera, num total de cerca de cem títulos, Fernandez deu agora à estampa um curioso livro, La Société du mystère, volume grosso de 600 páginas, em que, valendo-se da sua extraordinária erudição, imagina uma autobiografia do pintor Agnolo Bronzino, um dos vultos mais famosos da pintura maneirista do Renascimento Italiano. Tem Dominique Fernandez três paixões principais: os rapazes, a pintura e a Itália, creio que por esta ordem. E toda, ou quase, a sua obra é colorida pela homossexualidade, pela arte (nomeadamente pintura e escultura) e pela Itália, sem esquecer obviamente a Grécia, e também a Rússia e os outros países de Leste, e noblesse oblige, mesmo o mundo árabe (Síria e Argélia), e outros cantos do globo, sobre os quais escreveu.

São Sebastião (Bronzino)

Não obstante as suas preferências, Dominique Fernandez foi casado entre 1961 e 1971 com Diane de Margerie, e tem dois filhos (talvez para confirmar o repto de André Gide).

Neste livro, o autor imagina ter comprado num bouquiniste de Florença, especialista em arte, perdido entre muitas obras, um livro antigo, velho de mais de quatro séculos, obra certamente não referenciada pelo proprietário que a vendeu por quarenta euros. Tratava-se nem mais nem menos do que a biografia do famoso pintor Jacopo Pontormo, escrita pelo seu aluno, e amante, Agnolo Bronzino. E pelo texto que se vai lendo, mais do que a vida do mestre, Bronzino acaba por retratar a sua própria vida, como não poderia deixar de ser e convinha à imaginação de Fernandez.

Luneta da Villa Medici, em Poggio a Caiano (Pontormo)

O livro começa assim: «Jacopo m'a-t-il violé, à quatorze ou quinze ans, comme beaucoup de ses confrères le faisaient, usant de leurs élèves pour le bien de ceux-ci, selon une coutume réprouveé par les prudes et sévèrement condamnée par les lois mais répandue dans les ateliers» (p.13). Estava dado o tom.

Idem (pormenor) - Bronzino serviu de modelo para o rapaz despido

Ao longo do livro, Dominique Fernandez procede a uma reconstituição da vida de Bronzino, baseado em factos reais e no seu conhecimento dos costumes da Itália do tempo, mas não deixando de ficcionar largamente a vida do pintor, como é aliás próprio de um romance que nem sequer pretende ser romance histórico.

Angelo di Cosimo di Mariano, chamado o Bronzino devido ao tom bronzeado da sua pele, nasceu em Monticelli (subúrbios de Florença), em 17 de Novembro de 1503 e morreu na mesma cidade em 23 de Novembro de 1572, em casa do seu discípulo preferido, um misto de filho e amante, Alessandro Allori, que também usaria o nome de Alessandro Bronzino, tal a ligação entre ambos.

Saiu de casa de seus pais aos catorze anos, a convite do famoso pintor Pontormo, para trabalhar como seu ajudante, como era normal na altura, e foi por este iniciado não só nos mistérios carnais (fazia parte da preparação) mas também na técnica da pintura, já que o mestre logo lhe detectou particulares qualidades, que haveriam de fazer dele um dos grandes nomes do Renascimento. Anos depois, abandonou o atelier de Pontormo (homem de comportamentos extravagantes), transferindo-se para casa própria e sendo também colaborador, e igualmente amante do não menos famoso Benvenuto Cellini, o autor do incomparável Saleiro em ouro que está hoje no Kunsthistorisches Museum de Viena e do Perseu com a Cabeça de Medusa, que se encontra na Loggia dei Lanzi de Florença.

Segundo Bronzino (isto é, Fernandez) os pintores da fase final do Renascimento seriam Masaccio, Masolino, Filippo Lippi, Paolo Ucello e Piero della Francesca (primeira geração); Leonardo Da Vinci, Botticelli, Ghirlandaio, Filippino Lippi, Perugino (segunda geração); Miguel Ângelo e Rafael (terceira geração) e Giovanni Battista di Jacopo Guasparre, conhecido por Rosso Fiorentino, Benvenuto Cellini e Agnolo Bronzino (quarta geração). (p. 76) No diálogo em que é feita esta afirmação não estão citados, por exemplo, Pontormo ou Andrea del Sarto.

Dionysus e Ampelus (Pierino da Vinci)

No livro, Bronzino alude às suas relações com outros artistas, como Pierino da Vinci, sobrinho de Leonardo da Vinci, Giovanni Bazzi (il Sodoma), Girolamo Mazzola (il Parmigianino), etc.

Voltando às épocas da pintura florentina (p. 403), Fernandez escreve: «l'âge de l'éveil, au sortir de la barbarie gothique (Cimabue, Giotto, Orcagna, valeureux pionniers); un deuxième âge, celui de la maturité (Paolo Uccello, Fra Angelico, Masaccio, Piero della Francesca, le quinzième siècle en général); le troisième âge, le nôtre, celui du seizième siècle, l'âge de l'acomplissement, de la perfection, qui s'est ouvert avec Botticelli, épanoui avec Léonard, pour culminer de nos jours, avec Miche-Ange.»  E à pergunta de Sandro (Alessandro Allori, o discípulo amado), «un quatrième âge est-il possible?» Bronzino responde: «Oui, possible et même arrivé, mais forcément inférieur au troisième, car à la perfection ne peut succéder que le déclin.»

Não sendo possível referir todos os aspectos relevantes da obra, nem mesmo os mais significativos, registemos a visão geral. O leitmotiv é, como não podia deixar de ser, a questão do sexo, especialmente as relações entre o sexo masculino, e a sua repercussão na arte. E as "habilidades" dos pintores e escultores para representarem o nu, tão integral quanto possível, numa sociedade simultaneamente muito permissiva e muito repressiva. Por exemplo, o famoso Benvenuto Cellini foi sentenciado quatro vezes por relações com rapazes, a última com o seu aprendiz Fernando di Giovanni di Montepulciano, que lhe valeria quatro anos de prisão, comutada em quatro anos de prisão domiciliária, graças à intervenção dos Médicis. Bronzino, com muito tacto, conseguiu "passar entre os pingos da chuva", ocultando normalmente nas suas pinturas as "partes vergonhosas" com um tecido ligeiro. Só Miguel Ângelo, considerado il Divino, não foi verdadeiramente incomodado, embora um papa tivesse encarado a hipótese de desfigurar ou mesmo apagar os nus da Capela Sixtina, o que teria sido para a Humanidade uma irremediável perda.

Ganimedes e a águia (Cellini)

Muitos destes artistas, Bronzino é um exemplo, foram também poetas de mérito, trocando entre si os seus escritos, em que se enaltecia a beleza dos jovens e os seus atributos. Escreve Fernandez (de seu próprio punho) quando resolve fazer durante o livro considerações para explicitar o "texto" de Bronzino: «Bronzino répète qu'il s'en voulait de duper cette excellente personne, pour laquelle il se sentait une sincère affection, malgré la surprise de l'avoir découverte un peu différente de ce qu'il avait cru. Elle n'avait rien compris à ce sonnet, rien deviné des sous-entendus, rien flairé de ce qu'il renfermait de scandaleux, preuve qu'il était réussi: assez énigmatique pour garantir à son auteur l'impunité, assez audacieux pour se faire admettre dans la "société du mystère" (comme ils l'appelaient entre eux). (pp. 194-5)

Esta "sociedade do mistério" que dá o título ao livro, funcionava perfeitamente, ou quase, em Florença, apenas expondo os incautos ou atrevidos ao rigor da lei. No último capítulo surge mesmo don Agostino Lupi, prior de San Lorenzo, ele que era suposto ser um homem mais aberto, a sustentar os benefícios da censura e da Inquisição na produção artística. Segundo don Agostino, o facto de os artistas recearem expor abertamente os sexos do sexo masculino, os corpos demasiado ostensivos dos jovens, obrigava-os a um contorcionismo, a uma capacidade inventiva para respeitar os limites do admissível, residindo nessa atitude a verdadeira arte. Os que transgrediam, como Pontormo ou Cellini, corriam ao desastre. Daí, a bondade do Index.

Não deixa de ser curiosa esta reflexão de Dominique Fernandez, ainda que felizmente tal prática não tenha constituído regra. Embora muitas vezes seja mais excitante um quase nu do que um nu integral. E quando os artistas optaram pelo quase não foi sempre por receio das perseguições dos poderes civis ou religiosos.

Este livro, tão volumoso, após quase uma centena de obras, aparece como que um testamento literário (e artístico) do autor, que conta agora 88 anos. Ao apropriar-se da figura de Bronzino, que ele muito admira, Fernandez exprime pela imaginária pena dele o seu próprio pensamento. Não que não fosse já suficientemente conhecido, mas surge aqui devidamente condensado pela suposta mão de um pintor renascentista. Diria mais: a partir de metade do livro, este tende a confundir-se com uma biografia do próprio Fernandez, ressalvadas as circunstâncias de época. E é por isso que, de vez em quando, o autor suspende a pretensa narrativa bronziniana para exprimir directamente o seu pensamento, à luz da época presente.

5 comentários:

Zephyrus disse...

Apesar dos esforcos da Inquisicao, Florenca tinha muita prostituicao masculina no seculo XV, e ha tambem uma relacao discutivel com o aparecimento misterioso da sifilis no Renascimento. Florenca, Roma ou Veneza eram conhecidas como destinos para as elites inglesas que queriam experimentar o sexo com homens, e por isso destinos populares para aqueles que levavam a cabo a Grand Tour no inicio da idade adulta. No seculo XX, com o abandono gradual da moral puritana, esse habito de viajar para obter experiencias de indole sexual morreu.

Anónimo disse...

Ora bem,o Maneirismo italiano chega à blogosfera nacional,senão mesmo ao mundo mediático nacional. Alem das referências laterais de Vitos Serrão,e de outras sobre Pontormo e Rosso nas crónicas de João Bénard da Costa,nada mais conheço. Talvez defeito meu. Mas afinal não me surpreende que a "moda" do Maneirismo,com os precusores Friedlander(anos 40 e 50 sobretudo) Shearman (50 e 60)o Giuliano Briganti "La Maniera Italiana" de 1961) comece a ser falada por cá em 2017... É o destino... Mas há que reconhecer que até em França(que acolheu o Rosso depois dos desastres de 1527) tem sido preguiçosa em relação aos trabalhos essenciais anglo-americanos. Veja-se que uma das obras mais importantes para a apreciação e compreensão da época,o "Le Sac de Rome 1527",do André Chastel,foi publicado em Princeton em 1977,e só traduzido para francês em 1984! Mas como mais vale tarde do que nunca,aguardemos que a difusão deste blog contribua a que um público mais extenso se dedique à contemplação dos Pontormos,dos Rossos,dos Bronzinos,dos Pargimianinos,dos Beccafumis,dos Salviatis,etc,etc. Claro que o Fernandez é conhecedor da Itália em diversos ângulos,e o livro aqui comentado se apresenta como "romance". Mas contem erros desnecessários,que talvez se desculpem pelo mérito de chamar a atenção para uma época tão rica da vida italiana,tão à frente do resto da Europa em civilização,num sentido humanístico e simplesmente humano. Mas continuaremos em próximo comentário.

Anónimo disse...

Prosseguindo:Uma das personagens principais,senão a principal,deste romance-ensaio,é sem dúvida a cidade de Florença,os seus costumes,a sua animadíssima vida política,o papel das elites sociais,religiosas,económicas,a evolução do gosto artístico do Renascimento "clássico" para o Maneirismo,etc. Mas sobre os chamados "costumes",que justificadamente tanto interessam a Fernandez,ao autor do blog,e ao Zephirus,penso que todos precisam urgentemente de uma leitura que lhes fará abrir os olhos: do sr. Michael Rocke,"Forbidden Friendships.Homosexuality and Male Culture in Renaissance Florence",edição da Oxford University Press. Podem ou não manifestar a revisão de algumas das suas posições,mas revê-las-ão libertando-se do peso do actual "politicamente correcto". E agradeço ao Zephirus a piada da semana com o "abandono gradual da moral puritana"...

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Comprei esse livro há dez anos (acabo de verificar no meu ficheiro) mas confesso que ainda não tive oportunidade de lê-lo. De facto o conhecimento da História é tão vasto que o tempo não chega para tudo. Já é muito bom estar ao par das novidades e adquiri-las. Quanto à leitura, há que respeitar prioridades.

Todavia, não vejo que o meu modesto "post" possa ser infirmado pelo livro de Rocke, já que me limitei a uma recensão sumária do livro de Fernandez. Certamente Rocke será muito mais pormenorizado; prometo lê-lo logo que possível.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Acrescento que o livro de Rocke são 370 páginas compactas!!! Das quais 140 são notas, índices e bibliografia.