quarta-feira, 9 de agosto de 2017

A FACE DIPLOMÁTICA DE SALAZAR



O embaixador Bernardo Futscher Pereira, chefe da nossa representação em Dublin, publicou agora o segundo volume de uma obra dedicada à diplomacia do Estado Novo, isto é, de Salazar.
Intitula-se o livro Crepúsculo do Colonialismo - A Diplomacia do Estado Novo (1949-1961). Trata-se da continuação de A Diplomacia de Salazar (1932-1949), dado à estampa em fins de 2012, e a que nos referimos aqui.

Segundo o autor, haverá um terceiro volume que cobrirá o período que vai desde 1949 até à queda do regime, em 25 de Abril de 1974.

No presente livro, sempre devidamente documentado, o autor ocupa-se principalmente da questão de Macau, da base das Lajes, da relação com Nehru, do "advento" do Terceiro Mundo, do relacionamento complicado com os EUA,  Reino Unido e Brasil, de Humberto Delgado e Henrique Galvão, da eclosão dos movimentos nacionalistas em África, dos primeiros incidentes em Luanda e, finalmente, da invasão de Goa pela União Indiana, em 17 de Dezembro de 1961 (hora de Lisboa).

Uma das preocupações do autor é frisar uma atitude muito peculiar de Salazar: atrasar as decisões, para evitar soluções que poderiam ser então inconvenientes e esperar que o tempo se encarregue de resolver as situações mais difíceis.

Tendo sempre como pano de fundo a situação política internacional nesta década, o fim dos impérios, a mudança da estratégia norte-americana, o surgimento dos "não-alinhados", a ascensão à independência das colónias africanas, que eram a quase totalidade do continente negro.

Não havendo aqui espaço para comentar em profundidade tão importante obra, pela qual o embaixador Bernardo Futscher Pereira é credor dos agradecimentos de todos os que se interessam por estas matérias, atrever-me-ia a fazer duas rectificações, aliás de pormenor e que em nada afectam a essência da obra.

A primeira diz respeito ao Padroado do Oriente, questão que opunha Nehru a Salazar e incomodava a Santa Sé. Desde há muito que o arcebispo de Goa usava o título de Patriarca das Índias (Orientais). O título de Patriarca das Índias Ocidentais pertencia à Espanha. O último a usá-lo foi o arcebispo de Madrid Eijo y Garay, que morreu em 1963.

Em 1953, o cargo era exercido por D. José da Costa Nunes. Tratava-se mais de uma questão simbólica do que substancial mas fazia parte da estratégia de Nehru que pressionava o Vaticano para reduzir a influência do catolicismo português na Índia. Salazar não desejava abrir mão de qualquer privilégio e Costa Nunes, que devotara a vida ao Padroado não desejava sair. Para tal, Salazar exigia da Santa Sé gestos compensatórios de carácter honorífico para Costa Nunes.

Escreve Futscher Pereira (p. 78): «Em maio, em plena crise diplomática com a Índia, foram finalmente concedidas a D. José da Costa Nunes as honrarias reclamadas, em boa verdade bem modestas. D. José foi nomeado vice-camerlengo da Cúria Romana e presidente dos Congressos Eucarísticos Internacionais e elevado a arcebispo.» Esclareço: em 1953 a Santa Sé oficializou a renúncia ao cargo de D. José, mas este não foi elevado a arcebispo (já era arcebispo de Goa). Passou sim a ser arcebispo de Odessa (in partibus), conservando o título pessoal de patriarca, pelo que passou a ser designado por Patriarca de Odessa.

A outra tem a ver com a invasão de Goa. Relativamente ao choque que o acontecimento provocou em Salazar, escreve o autor (p. 259): « Salazar comentou para Franco Nogueira: "Querem pegar-me fogo. Está bem. Mas deixem-me primeiro explicar as coisas como se passaram. E depois peguem-me fogo." Por fim, porém, eximiu-se dessa tarefa ingrata. Alegando rouquidão, pediu a Mário de Figueiredo, seu amigo de sempre, para ler o discurso que escrevera para a sessão da Assembleia Nacional realizada a 3 de Janeiro de 1962. Sua Excelência o Presidente do Conselho não estava preparado para dar a cara por derrotas.» Ora Salazar esteve presente nessa sessão da Assembleia Nacional. Eu vi a transmissão integral pela RTP. Ele começou mesmo a ler o discurso, mas, passados alguns minutos, devido a visível rouquidão, talvez de carácter nervoso, pediu a Mário de Figueiredo, presidente da Assembleia, que co-presidia à sessão, que continuasse a ler o discurso. Recordo até um aparte, quando Mário de Figueiredo interrompeu a leitura para colocar uma questão sobre o que Salazar tinha escrito (creio que sobre a falta de solidariedade da Aliança Luso-Britânica). Salazar olhou-o rispidamente e limitou-se a dizer: "Continue".

É claro que estes pormenores nada invalidam o mérito da obra em apreço.

NOTA DO BLOGGER: A Aliança Inglesa, ao longo da História, serviu apenas para satisfação dos interesses britânicos. Foi unívoca e não biunívoca. Uma tristeza.



2 comentários:

Obs. vagabundo disse...

Acerca da "Aliança Inglesa" parece-me que também nos foi útil para mantermos posições no Mundo, que doutra forma, até pela escassez da população nacional, nos seria impossível manter a "seco".

Assim, graças ao "guarda-chuva British" lá nos fomos mantendo, sendo os primeiros a chegar a novas paragens, e os últimos a regressar.

Mas, claro, não há almoços grátis...

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Creio que o saldo não nos é favorável, mas é questão para longos debates.