terça-feira, 9 de agosto de 2016

LUGARES PÚBLICOS PARA ENCONTROS PRIVADOS




Pouco tempo após a sua publicação em língua francesa (2007), comprei, por curiosidade, Le commerce des pissotières, de Laud Humphreys, editado originalmente em 1970, com o título Tearoom Trade. Impersonal Sex in Public Places. Como tem acontecido com muitos outros livros, porque outras leituras se revelaram prioritárias, ficou a repousar na minha biblioteca até que, por motivos que não vêm ao caso, decidi lê-lo agora.

Verifico, todavia, que este livro, muito mais do que uma descrição superficial de encontros fortuitos, e apesar do tempo decorrido desde a primeira edição, é uma obra de investigação profunda, como é desde logo realçado pelo prefaciador da edição francesa, o sociólogo e politólogo Éric Fassin, professor da Universidade de Paris.

Trata-se de uma espécie de relatório sobre os frequentadores de sanitários públicos numa cidade do Middle West dos Estados Unidos, levado a cabo pelo autor, um pastor da Igreja Episcopal (anglicana) e professor de sociologia em diversas universidades, que inquiriu dos hábitos dos homens (na maioria supostamente heterossexuais) que se dirigiam habitualmente, mesmo diariamente, aos locais que os franceses sempre designaram por tasses, a fim de terem relações sexuais com outros homens, relações efémeras entre parceiros anónimos. Humphreys não se contentou de observar esses homens nas suas práticas sexuais, mas conseguiu, dissimulando a sua identidade, entrevistá-los nas suas próprias casas. Foi assim que pôde precisar as características sociais destes déviants e entrever o lado público da sua vida clandestina. Se alguns eram certamente gays, muitos (a maioria) eram homens casados que ali se detinham quando regressavam do emprego a caminho de casa. O "comércio dos urinóis" revela, pois, a face oculta da norma heterossexual.

Como escreve Éric Fassin no prefácio: «Pourtant, on savait déjà que l'homosexualité n'était pas si marginale, en particulier depuis le choc de la publication du rapport Kinsey sur la sexualité masculine en 1948 - véritable événement dans l'histoire des mœurs, aux États-Unis et bien au-delà... Car, au lieu d'isoler la figure de l'homosexuel, Alfred Kinsey décrit un continuum, de l'hétérosexualité stricte à l'homosexualité exclusive. Autrement dit, la norme sexuelle n'a plus de sens que statistique.»

E ainda: «D'ailleurs, Laud Humphreys lui-même sera porté par ce mouvement [de libération gaie et lesbienne] qu'il encourage et rejoindra rapidement. De révélateur historique, l'ethnographie du sociologue deviendra donc bientôt document archéologique: la figure de la "folle de pissotière", («closet queen») semble devoir rejoindre les archives de la sexualité à l'heure où le placard paraît renvoyé dans les poubelles de l'histoire. L'émancipation est en effet portée par la métaphore «out»: le coming out prend alors le sens que nous lui connaissons aujourd'hui, tandis que l'homosexualité entre à grand bruit dans l'espace public dont elle était bannie depuis plusieurs décennies. C'est le récit national américain hérité des années 1950 qu'il faut reconstruire à la lumière des années 1960 et de leur contestation des normes.»

«...Laud Humphreys prolonge cette logique en déconnectant la séxualité du genre: il ne postule ainsi nul lien entre féminité et homosexualité masculine. Mieux, ce sont les catégories traditionellement censées articuler genre et sexualité , avec l'opposition entre les rôles actif (réputé masculin) et passif (supposé féminin), qu'il récuse en les détachant de la répartition fonctionnelle dans le jeu entre qui pénètre et qui est pénétré, autrement dit, entre "pointeur" et "pointé". La "flexibilité" des rôles en général lui permet ainsi d'envisager le caractère "instable" de certains, moins "tranchés", et donc plus susceptibles de basculer vers un pôle ou bien l'autre, "indépendamment de la personne qui endosse le rôle lors de la rencontre". Ainsi, "celui de l'"hétéro" est transitoire. Dans une rencontre entre déviants, cette étiquette ne tient pas, et elle ne colle longtemps à personne". Il s'agit bien entendu d'une théorie générale, non pas de l'hétérosexualité, mais des rôles dans les jeux. On voit toutefois combien, loin de renvoyer seulement au monde révolu des tasses d'antan, cette perspective rencontre des problématiques qui nous sont contemporaines. L'homosexualité, comme l'hétérosexualité, ou toute autre catégorie dans l'espace du genre et de la sexualité, apparaît ainsi non pas comme un point fixe, solidifié en identité, indépendamment des contextes, mais comme un rôle prenant tous sont sens en fonction de la partie dans laquelle il se joue, selon la règle de tel ou tel jeu - soit comme une figure dans l'une des configurations sexuelles possibles.»

Um dos méritos do trabalho de Humphreys é o rigor científico dos métodos aplicados. O livro exibe quadros e estatísticas de grande precisão sobre os frequentadores dos urinóis, no caso concreto situados em jardins públicos, segundo  o uso norte-americano, da zona analisada pelo autor. São descritos com detalhe os actos praticados e as circunstâncias em que as acções decorrem, e os papéis, de grande flexibilidade (como acontece por toda a parte), desempenhados pelos participantes. Apesar da investigação de Humphreys ter sido efectuada entre 1966 e 1968, e publicada em 1970, isto é, há cinquenta anos, e do território observado ser o Middle West americano, nem o tempo nem o local invalidam as conclusões, ainda que os Estados Unidos sejam um lugar sui generis do mundo civilizado.

Os resultados a que chegou Humphreys revestem um carácter de universalidade e poderiam ser, com alguns ajustamentos, aplicados a qualquer país europeu. Sobre os frequentadores dos urinóis, lê-se a certa altura do livro um adágio da polícia americana: «Os heterossexuais de hoje serão no máximo de quatro ou cinco anos os concorrentes de amanhã.»

O livro termina com um  valioso posfácio de Henri Peretz, que traduziu o original para francês,

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Os urinóis públicos em Portugal começaram a ser progressivamente encerrados alguns anos após a proclamação da III República. Não pretendo insinuar que a democracia é incompatível com a existência desses estabelecimentos, mas o facto de eles serem utilizados para actividades distintas daquelas para que foram inicialmente criados, e que se podem também classificar de fisiológicas, suscita-me a interrogação de que uma certa dose de puritanismo deve-se ter apoderado dos nossos governantes (uso a expressão no sentido mais lato, desde membros do Governo, a vereadores de câmaras, administradores de empresas e todos quantos exercem uma tutela sobre esses lugares). Nas estações de caminho de ferro, naquelas onde não foram encerrados, passou a ser paga a sua utilização, e presumo que a taxa se destina mais a evitar a frequência do que a realizar um lucro. Nos jardins públicos, aos quais se refere particularmente o livro em apreço, entre nós desapareceram, tal como nas estações de metropolitano e nas praias. Restam os sanitários de alguns centros comerciais, já que, mesmo para urinar, não é normalmente possível a um não cliente utilizar os toilettes de restaurantes e cafés. E em muitos destes é preciso pedir a chave.

A França, um país onde as tasses faziam parte da paisagem local e cuja frequência por homens de todas as idades, raças, religiões, profissões e classe social, as tornara famosas, o seu desmantelamento iniciou-se com a presidência do general De Gaulle (dizem que por pressão de sua mulher Yvonne), supostamente homófobo. E nos restantes países europeus seguiu-se a mesma política restritiva, quiçá por imposição comunitária de Bruxelas, que se intromete nos mais ínfimos pormenores da vida íntima dos cidadãos. Ocorre sempre recordar a legislação europeia sobre a dimensão dos preservativos, que não me lembro se chegou a ser adoptada.

Da leitura do livro do pastor e professor Laud Humphreys, doutor em sociologia, decorre claramente que a sociedade teria o maior interesse, a muitos títulos, em manter abertos estes locais públicos destinados a um convívio "impessoal" e privado. Quem quiser saber pormenores poderá ler a obra.


1 comentário:

Zephyrus disse...

Fui criado ao lado de uma praia onde ocorriam este tipo de encontros. Estava proibido de ir para essa zona mas a curiosidade nos adolescentes é sempre grande e o local também era frequentado por estrangeiras naturistas. Eu e rapazes da mesma idade íamos para lá ver as mulheres e via-se o suficiente para traçar um quadro muito interessante sobre a sexualidade dos portugueses. Curiosamente, o topless desapareceu das praias no final dos anos 90 e o naturismo passou de moda. Actualmente, já não há mulheres a apanhar sol no local. Apenas lá vão homens encontrar-se com outros.