sexta-feira, 27 de maio de 2016

O MUSEU ARQUEOLÓGICO DE NÁPOLES




Para relatar as complexas peripécias históricas que levaram à fundação do Museu é preciso recuar à primeira metade do século XVIII e à política cultural esclarecida posta em prática por Carlos III de Bourbon, que subiu ao trono de Nápoles em 1734. Herdeiro por parte da mãe (Élisabeth Farnese) de uma extraordinária colecção de obras de arte e de objectos antigos, então ainda dispersa entre Nápoles, Roma (Palácio Farnese, Villa Farnesina e Villa Madame) e Parma (Palácio Ducal de Colorno), Carlos III de Bourbon começou a edificação, no quinto ano do seu reinado (1738), da Villa Reale di Capodimonte, destinada a tornar-se a sede do "Museu Farnesino". Nesse mesmo ano o rei lançou uma campanha de frutuosas escavações em Resina, nos terrenos de uma das residências reais de vilegiatura, já examinadas trinta anos antes pelo príncipe de Elbeuf. Este último tinha desenterrado as estátuas que viriam depois a integrar a colecção de Maria-Amélia de Saxe, a mulher de Carlos III. As pesquisas permitiram descobrir a decoração escultural  muito rica do palco do teatro de Herculanum, composta para uma extraordinária série de estátuas de mármore e de bronze, bem como de numerosas inscrições. Dez anos mais tarde, em 1748, as escavações de Pompeia e no ano seguinte (1749) as efectuadas na vizinha Stabiae: encontraram-se assim objectos de valor artístico excepcional, estátuas de mármore e de bronze como as da Villa dei Pisoni de Herculanum (1754-58), e mesmo vestígios prodigiosos como os papiros que compunham a biblioteca dessa mesma villa. Este abundante material arqueológico (mosaicos, utensílios da vida quotidiana, armas, objectos preciosos, vidros e pinturas esplêndidas) encontrou lugar nas salas da Villa Reale de Portici e constituiu o núcleo do primeiro Museu Herculanense (1750). Foi sobretudo graças a estas prestigiosas novidades que Nápoles, tornada capital de um novo Reino, se tornou também uma etapa obrigatória do Grand Tour, uma espécie de peregrinação cultural em Itália que todos os jovens europeus deviam efectuar para aperfeiçoar a sua educação.


Mas a ameaça do Vesúvio a Portici (uma dúzia de erupções tivera lugar no século precedente) e a lentidão com que prosseguiam os trabalhos em Capodimonte persuadiram o sucessor de Carlos III, Fernando IV de Bourbon, a reunir as colecções da família num único Museu grandioso.

Fernando IV como Minerva (estátua de mármore de António Canova)

Assim, o imponente Palazzo degli Studi de Nápoles foi destinado "ao uso do Reale Museo di Portici, galeria de quadros de Capodimonte, para grande biblioteca Pública, Escola para as três Belas-Artes e sala para o estudo do Nu". A renovação da velha fábrica Renascimento tardio em mau estado foi confiada ao célebre arquitecto Ferdinando Fuga, a quem sucedeu Pompeo Schiantarelli. Foi este último que teve a ideia de edificar o andar superior e o grande hemiciclo das traseiras do palácio, "porque tudo isto podia contribuir para reforçar o esplendor da Capital  e a comodidade do Público" (1780). O alargamento dos espaços de exposição inscrevia-se no projecto audacioso já avançado por Vanvitelli visando transferir para Nápoles a fabulosa colecção romana dos Farnese. Essa operação custosa e complexa, começada em 1787 e prosseguida nos anos seguintes, foi conduzida, a pedido de Fernando IV, pelo especialista da Antiguidade Domenico Venuti e pelo pintor Philipp Hackert. A operação revelou-se muito complicada: a transferência efectiva exigiu vários anos e algumas obras de arte tiveram de esperar longos anos antes de encontrarem o seu lugar definitivo (é o caso do Touro, que fez a sua entrada apenas em 1826).

Augusto (estátua de bronze proveniente do Augusteum, de Herculanum)

O projecto deste novo Museu partia com as intenções mais grandiosas, ao ponto que em 1791 pensou-se acrescentar aos destinos de uso previstos para o edifício dos Estudos um Observatório astronómico, a instalar no Grande Salão, e do qual apenas se realizou um meridiano que dá ainda hoje o seu nome à sala que o acolhe.


Cláudio (estátua de bronze proveniente do Augusteum, de Herculanum)

As dolorosas peripécias deste período, com as duas fugas do rei para Palermo (1798 e 1806) e a década francesa dos governos de Joseph Bonaparte e de Joachim Murat (1806-1815), não facilitariam a conclusão dos trabalhos do novo Museu Napolitano, inaugurado apenas em 1816, com o nome de "Reale Museo Borbonico".

Doríforo (estátua de mármore, réplica do original grego em bronze de Policleto, proveniente de Pompeia)

A história seguinte do Museu permanece ligada aos apelidos dos seus directores, Michele Arditi (1810-1838), Francesco Maria Avelinno (1838-1849) e Giuseppe Fiorelli (1863-1875). Este último foi o precursor de uma política de protecção e de valorização do território que é o fundamento da concepção  moderna do Museu da Antiguidade.

Deusa Roma restaurada como Apolo com cítara (estátua em pórfiro vermelho e mármore branco)

Foi o historiador positivista Ettore Pais que repôs em ordem, no período entre o século XIX e o século XX, as colecções do Museu Napolitano. O seu projecto era muito inovador para a época, e sobreviveu nas suas grandes linhas até muito recentemente. Dividiu as obras por contextos, colocou o acento na disciplina da Pré-história e imprimiu uma forte conotação histórica a certas exposições (as pinturas pompeianas, o retrato e a escultura grega).

Pátio com esculturas modernas

Novos trabalhos de renovação foram empreendidos em 1957, com a transferência da pinacoteca para Capodimonte. Esta nova disposição ofereceu a oportunidade extraordinária para poder reflectir na própria função do Museu: preservar a tradição e o prestígio das colecções reais, mas igualmente ligar mais estritamente o Museu à história e à arqueologia do seu território de pertença.

(Minha tradução da Introdução do Catálogo do Museu)

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O rés-do-chão do Museu abriga as colecções Farnese de escultura e de gemas (pedras preciosas) antigas, a colecção de escultura greco-romana da Câmpania e as estátuas públicas provenientes de Herculanum.

No sub-solo localiza-se a colecção egípcia e a colecção epigráfica.

Na mezzanine está a colecção de  mosaicos, o gabinete secreto (peças eróticas) e a colecção numismática.

No primeiro andar têm lugar  as peças da Villa dos Papiros (de Herculanum), da cultura grega no golfo de Nápoles e da Grande Grécia, a secção de pré-história e de proto-história, o Grande Salão do Meridiano, a colecção de pinturas de Herculanum e de Pompeia, o Santuário de Isis em Pompeia, objectos diversos provenientes de Pompeia e a grande maquete de Pompeia.

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A Colecção Farnese é a mais célebre das colecções romanas da Antiguidade. Foi começada pelo Papa Paulo III Farnese, que concedeu à sua família o direito de proceder a escavações que permitissem descobrir as melhores esculturas e outras peças de arte para a sua residência principal, o Palácio Farnese, onde se encontra hoje a Embaixada de França em Roma e onde Sardou e Puccini colocaram o II acto da Tosca. A colecção foi consideravelmente aumentada pelo cardeal Alessandro Farnese, neto de Paulo III e homem de gosto requintado que foi um dos principais mecenas da época. Não havendo lugar para todas as obras de arte no Palácio Farnese, as consideradas menos importantes foram distribuídas pelas residências secundárias da família, a Villa Madama, nos arredores de Roma (e que deve o nome a Madama Margarida de Parma, filha natural de Carlos Quinto, a quem pertenceu também o Palazzo Madama, em Roma, hoje sede do Senado Italiano), a Villa della Farnesina, o Palácio Ducal de Colorno, em Parma, etc. Este espantoso património foi mudando de mãos ao longo das gerações, devido aos casamentos dos proprietários. A dinastia Farnese extinguiu-se em 1731 (com a morte de Antonio Farnese, último duque de Parma) e a herança da família passou para os Bourbons, através de Elisabeth Farnese, que casou com Filipe V de Espanha e que foi mãe de Carlos III de Espanha, que se tornaria rei de Nápoles (1734). Foi Carlos que transferiu para Nápoles as colecções de Parma, enquanto seu filho Fernando IV, com autorização do papa, transferiu as colecções romanas.

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Não sendo exequível, por questões de espaço, apresentar aqui, simultaneamente, a descrição da maioria das peças expostas e as respectivas fotos, optamos por reproduzir apenas as fotos, tiradas (em geral) sequencialmente ao longo da visita, acompanhadas da sua identificação, sempre que possível ou necessário. Mesmo assim, a quantidade de fotos que se mostram constitui já uma apreciável amostra do acervo do Museu.




Os Tiranicidas, Harmodius e Aristogíton (esculturas romanas em mármore, cópia dos originais gregos em bronze, provenientes da Villa de Adriano, em Tivoli)*

* Segundo relata o historiador grego Tucídides, na sua célebre obra A Guerra do Peloponeso, Harmodius e Aristogíton foram dois atenienses que se tornaram célebres por terem morto Hiparco, filho do ditador Pisístrato, responsável pela introdução da "tirania" em Atenas. De acordo com Tucídides, Hiparco teria feito duas vezes propostas de carácter sexual a Harmodius, amante de Aristogíton, que as rejeitou. A relação de Harmodius e Aristogíton enquadrava-se no modelo pederástico da Grécia Antiga, sendo Aristogíton o amante mais velho e Harmodius o adolescente que importava proteger. Para se vingar da recusa de Harmodius, Hiparco humilhou publicamente a irmã deste o que provocou a fúria dos dois amantes que conceberam um plano para matar Hiparco e seu irmão Hípias durante o festival das Panateneias. Em conjunto com outros atenienses desencadearam o golpe mas apenas conseguiram matar Hiparco. Na confusão do momento Harmodius foi morto pelos guardas. Aristogíton terá sido torturado até à morte, com a intenção de que revelasse o nome dos outros conspiradores. Harmodius e Aristogíton tornaram-se símbolo da liberdade e da democracia e foram os primeiros atenienses a terem um grupo escultórico em sua honra, da autoria de Antenor, encomendado por Clístenes e pago com dinheiros públicos (o que aconteceu pela primeira vez) e que foi colocado na Ágora. As esculturas foram mais tarde levadas para a Pérsia, por Xerxes quando invadiu a Grécia, e devolvidas depois por Antíoco. Posteriormente, os ateniense encomendaram outro grupo escultórico a Crítias, que também se perdeu, existindo hoje apenas cópias romanas. O grupo exibido no Museu é uma réplica das esculturas de Crítias. A história dos dois amantes passou a ser citada como exemplo de heroísmo e devoção. Muitos anos mais tarde, quando o político Timarco foi perseguido (por razões políticas)  com a acusação de que se teria prostituído na juventude, foi defendido por Demóstenes, que evocou a ligação de Harmodius e Aristogíton, e também a de Aquiles e Pátroclo, como exemplo dos efeitos benéficos das uniões do mesmo sexo.

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Touro Farnese (grupo escultórico em mármore, proveniente das Termas de Caracala, em Roma)*

* Esta obra-prima, que partilha com o Laocoonte, dos Museus do Vaticano, o privilégio de ser mencionada na História Natural, de Plínio, o Antigo, é ainda hoje emblemática da riqueza da Colecção Farnese. O grupo ilustra o mito do suplício de Dirce, uma ninfa esposa de Lico, rei de Tebas, que maltratava a sobrinha do marido, Antíope (que se refugiara em sua casa), a quem tratava como escrava por inveja da sua beleza e por suspeitar que o marido estaria apaixonado por ela. Conseguindo fugir para junto dos filhos gémeos, Anfião e Zethos, estes, para vingar a mãe, atacaram Tebas, destronaram Lico, e ataram Dirce aos cornos de um touro que a arrastou até despedaçá-la nos rochedos.

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Hércules Farnese (estátua em mármore, proveniente das Termas de Caracala, em Roma, cópia do bronze de Lysippo de Sicyone)
Dioniso e Eros
Adriano
Dioniso
Antínoo
Apolo com cítara
Sátiro com pequeno Baco
Ganimedes com Zeus transformado em águia
Pan e Dafnis

Musa Urânia
Pothos
Esculápio
Tibério
Taça Farnese
Minerva
Guerreiro com rapaz (Aquiles e Troilo)
Idem
Fauno
Atena

Antínoo - Baco
Adriano
Sarcófago dos irmãos
Hipócrates
Moschion
Píndaro, Heródoto, Sófocles e Ésquilo

Sócrates

Cibele entronizada











(Como em alguns outros grandes museus que conheço, também existem salas de arrumação expostas ao público)

Maquete de Pompeia

Figuras licitantes e Hércules ébrio (em cima) ; Io e Argos (em baixo) - Pompeia

Fastígio com arquitectura - Herculanum (em cima); Onfale e Hércules - Pompeia (em baixo)

Arquitectura e Narciso - Pompeia

Suplício de Dirce - Pompeia

Larário com cena de sacrifício e serpentes - Pompeia


Dioniso com coroa de uvas

Atlante Farnese ( estátua de mármore, cópia de um original grego do século II AC, proveniente da Biblioteca do Forum de Trajano)
Pintura de parede de jardim (Casa da Pulseira de Ouro) - Pompeia
Os Corredores (cópia em bronze de dois efebos, cujo original é atribuído a Lysippo, cerca do século IV AC, provenientes da Villa do Papiros, de Herculanum)
Idem
Idem
Sátiro adormecido
Hermes
Seleuco I
O Mergulhador (pintura de um túmulo de Paestum)
Cave canem - Pompeia (em baixo)

Batalha de Alexandre (proveniente da Casa do Fauno - Pompeia)

Idem (reprodução)

Fauno (proveniente da Casa do Fauno - Pompeia)

Baco montando um leão (proveniente da Casa do Fauno - Pompeia)

Apresentamos a seguir as imagens de algumas peças expostas no Gabinete Secreto, provenientes de Pompeia:






























Por razões várias - e ainda que este post nunca tivesse a intenção de reproduzir todas as obras expostas no Museu Arqueológico de Nápoles - verifica-se a omissão de algumas peças significativas. Contudo, a maior parte das preciosidades do Museu está aqui retratada.

Por falta de tempo, não visitámos a Secção de Numismática e a Secção de Epigrafia encontrava-se encerrada.

Também não nos foi possível compartimentar por secções as peças do primeiro andar, ainda que correspondam grosso modo ao percurso da visita.


1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente. A arte é a grande vitória sobre o efémero. A paciência impressa na tua "reportagem" sustenta esse reconhecimento. Grazie.