sábado, 14 de maio de 2016

SEXUALIDADE EM MARROCOS




Devido a uma expressa referência numa revista francesa lida há algumas semanas, tive a curiosidade de procurar na minha biblioteca o livro L'amour circoncis, do prof. Abdelhak Serhane, que comprara na altura da sua publicação, em 2002, mas que então apenas tivera ocasião de folhear.

Romancista, poeta, ensaísta, o autor retrata neste livro aspectos fundamentais da sexualidade em Marrocos e, por extensão, nos países muçulmanos, ainda que muitos deles (aspectos) não se possam generalizar a todo o mundo islâmico, pois existem diferenças, por vezes profundas, entre as nações árabes.

Editada pela primeira vez, em Casablanca, em 1995, a obra de Abdelhak Serhane é suficientemente interessante para ser lida, ainda que o panorama descrito pelo autor não corresponda exactamente ao que julgamos ser a prática actual, nem mesmo a que se verificava já na altura da sua primeira publicação. Por outro lado, Serhane não se exime a repetir considerações ao longo de 200 páginas, exercício absolutamente dispensável.

Entre outros temas, trata o livro do processo de socialização da criança marroquina até à adolescência, da identidade da mulher na tradição marroquina, da sexualidade segundo a tradição, da figura do pai, da relação mãe/filhos, da circuncisão, da sexualidade "depravada", do reino das mulheres e da mutação da sociedade em Marrocos. E enfatiza as contradições flagrantes entre a teoria e a prática sexuais, contradições aliás bem conhecidas de todos nós, especialmente dos que têm algum contacto mais directo com a civilização islâmica. Em qualquer caso, e não sendo propriamente novidade, a matéria desenvolvida por Serhane merece que se lhe dedique alguma atenção. É o que, muito em síntese, passo a fazer.

A circuncisão, a que todas as crianças do sexo masculino devem ser submetidas, ainda que não mencionada uma única vez no Corão, é um rito de passagem e corresponde à integração e socialização da criança muçulmana. Uma vez circuncidada, a criança é rejeitada pelo mundo feminino e é recuperada pelo mundo dos homens. O autor evoca amiúde Freud para sustentar a sua tese sobre a castração.

No capítulo dedicado às perversões surge a masturbação, absolutamente comum mas considerada um pecado vergonhoso e terrível. A homossexualidade, cuja prática se encontra largamente difundida na sociedade marroquina, é tida como abominável, uma coisa horrorosa e repugnante. Todavia, há que sublinhar (e estamos a falar do sexo masculino, já que a informação relativa ao sexo feminino é obviamente muito mais restrita) que a homossexualidade "activa" e a homossexualidade "passiva" não têm a mesma significação simbólica no imaginário colectivo dos marroquinos, pois a primeira é considerada uma manifestação de virilidade. Entre os marroquinos é especialmente praticada entre homens ou rapazes mais velhos e rapazes mais novos ou até crianças. Neste aspecto, Serhane é bem explícito quanto ao que se passa nas escolas corânicas e que citaremos adiante. Entre marroquinos e estrangeiros, e neste ponto o livro é omisso, a facilidade com que um homossexual do "exterior" encontra um parceiro masculino é uma das razões do afluxo de turistas a Marrocos (e a outros países árabes como a Tunísia e o Egipto) nas últimas décadas. Muitos e grandes nomes europeus das artes e das letras tiveram nessas terras os seus dias felizes, como haveriam de consignar nas suas próprias obras.

Outro aspecto largamente abordado por Serhane é a questão do prazer. A esposa não deve demonstrar qualquer atitude de satisfação no acto sexual pois presume-se uma mulher casta. O prazer está reservado às prostitutas, que o devem demonstrar amplamente. O acto sexual com a esposa destina-se apenas (teoricamente) à procriação. A meio caminho entre a esposa e a prostituta está a concubina, que pode permanecer no lar e que é religiosamente aceite. Esta questão da ocultação do prazer por parte da mulher (e até do homem no coito com a esposa) é mais um tabu hoje pouco respeitado, como Serhane deverá saber.

A separação de sexos (actualmente menos visível) na sociedade marroquina favorece a homossexualidade, especialmente nos rapazes solteiros, mas é sempre difícil de determinar quando funciona como substituição (anterior ao casamento) ou como desejo e gozo autónomo. Uma das características curiosas do mundo muçulmano é que este exige que o homem adulto seja casado e que tenha filhos, ainda que seja homossexual e que após o casamento continue a manter habitualmente práticas homossexuais. O que se torna necessário é salvar as aparências. Um homem solteiro é sempre "suspeito", assim como uma mulher, que mesmo não se dedicando à prostituição ou ao concubinato é olhada com algum desprezo pela sociedade.

A zoofilia, expressamente abordada por Serhane, e considerada o pior dos vícios, é praticada com frequência no campo, quando a masturbação começa a revelar-se insuficiente para o rapaz solteiro e sem parceiros sexuais.  Entre os animais procurados distinguem-se as burras, as vacas, as cabras, as ovelhas, as galinhas, etc., mas não as cadelas, pois existe uma crença segundo a qual a cadela retém o sexo masculino após o acto.

O hammam é descrito como um espaço fortemente erotizado, seja masculino ou feminino, e propenso a contactos homossexuais, não obstante ser um lugar de purificação. Ao longo dos séculos (hoje menos) o hammam foi um elemento fundamental na vida do muçulmano. A presença do(a)s massagistas nestes "banhos turcos" serve também de compensação à falta de verdadeira afeição nas relações conjugais.

A prostituição (masculina e feminina) é considerada um grave delito religioso mas pratica-se em larga escala, até mesmo oficialmente no caso feminino (conheço pessoalmente o bairro das casas de passe, em Tunis). «La prostituée propose donc à l'homme ce qu'il refuse de (re)chercher chez sa femme; de peur de rencontrer en elle "la putain" à la fois crainte et adulée. Avec la prostituée, tout est permis. Les vices et les manies peuvent être assouvis alors qu'avec l'épouse, le coït est banalisé. Il demeure un devoir. La banalisation du coït conjugal permet à l'homme le contrôle de la sexualité de la femme et la canalisation de cette sexualité vers des buts sociaux plus valorisés et valorisants. La prostituée a donc pour fonction de satisfaire les fantasies sexuelles des hommes et de préserver la virginité des jeunes filles pour épargner l'honneur des familles.» (pp. 169-170)

Sobre a passagem dos garotos nas escolas corânicas (M'sid), Serhane escreve: «Très souvent, c'est avec les faveurs de son corps que l'enfant contourne l'agressivité du maître. Il peut ainsi faire l'apprentissage de la sodomisation qu'il subit dans la peur, la soumission et la violence. Une expérience sexuelle traumatisante pour le jeune enfant qui en sera toujours la vicitime brutalisée. Ces écoles, dont le but est l'apprentissage de la parole divine, peuvent servir également de "cours tacites de pédérastie appliquée avec ou sans le concours de l'honorable maître  de l'école" selon Driss Chraïbi. C'est un lieu de contradiction où le Coran peut cohabiter avec le viol (quand le maître ne s'en mêle pas, les élèves plus âgés se chargent d'initier les plus jeunes en se livrant sur eux à des pratiques sodomites).On remarque que le fait d'abuser des enfants se rencontre avec une fréquence inquiétante chez les maitres d'écoles à cause des facilités qui leur sont offertes. Dans le milieu traditionnel marocain, ces facilités sont même encouragées par la croyance populaire: "qui veut apprendre, dit le proverbe, doir passer sous le maitre"; associant ainsi l'apprentissage au viol.» (pp. 41-42)

Muito haveria a dizer sobre o texto de Abdelhak Serhane, que não cabe no espaço de um post. Registei apenas alguns dos aspectos mais focados. Aliás, a sexualidade no Islão é um mundo e apesar de ser abordada habitualmente de forma "discreta" existem já, em ensaio e ficção, numerosas obras sobre o tema, escritas por árabes e não-árabes, e mais rigorosas do que a que agora se aprecia. Importa salientar, de forma especial, que os interditos sexuais têm variado conforme as épocas e os lugares, que existe uma distinção clara entre o preceito religioso e a aceitação social, que as manifestas contradições entre o que se proclama e o que se pratica são abissais.

O próprio livro do prof. Serhane, ao longo das páginas, revela contradições na sua apreciação da sexualidade dos marroquinos. Há, todavia, uma coisa que deve ficar clara: o papel da mulher (nos nossos dias e mesmo ao longo da história) nunca foi o papel secundário que parece ser-lhe religiosamente atribuído. A mulher casada, e muito particularmente se já for mãe (em particular de rapazes) tem realmente um poder muito maior do que aparentemente se supõe. Ao governar a casa, ela impõe-se muitas vezes ao marido, e a sua absoluta submissão releva do conceito preconcebido no Ocidente.

Mas em assunto tão vasto e tão complexo importa não generalizar. Os próprios muçulmanos emitem opiniões diversas e os "estrangeiros" deverão remeter-se ao que vêem, ouvem, experimentam e lêem.

1 comentário:

Zephyrus disse...

Há uns anos conheci num hostel do Porto um homossexual de Cádis que me contou as suas aventuras em Marrocos, onde me disse ter muitos amigos. Segundo os seus conhecimentos da sociedade marroquina, entre quatro paredes «manda» a mulher.

Muito haveria a dizer sobre esta questão.

Mulher, lua, noite, são símbolos de uma linguagem universal, perpétua, cósmica e imutável.

A Maçonaria nunca as aceitou.

A Rainha da Noite da Flauta Mágica.

As mães castradoras portuguesas e o medo difuso incutido nos homens que fazem dos portugueses um povo manso onde impera esta paz podre e onde até o grande ditador do Século XX foi «doce» ao lado de um Franco ou de um Mussolini.

Jorge de Sena dedicou interessantes versos às mulheres portuguesas.

Tenho adiado a procura de algumas obras sobre a sexualidade em países do mundo muçulmano publicadas antes da Segunda Guerra.

Estou convicto que existe um fundo creencial comum a toda a Humanidade que antecede a introdução das grandes religiões onde a vivência da sexualidade é pilar fundamental. Nas tribos do deserto até ao século XX permaneceram resquícios desses tempos.

Está mais que estudado que a homossexualidade e a homoafectividade são normais entre jovens do sexo masculino e da mesma faixa etária e fazem parte do processo natural de crescimento emocional. Polémicas como a do Colégio Militar farão sentido?

O meu pai nunca suportou a companhia da minha mãe e vice-versa, mas tinham e têm uma excelente relação. No Alentejo e Algarve é comum a separação. Os homens passam a maior parte do tempo com os homens e as mulheres com as mulheres. No Minho a sociedade parece impor «vida de casal». Na minha família, homens e mulheres eram muito independentes, cada um «por si». A liberdade sexual sempre foi outra. Também existem indícios de que antes das invasões dos almorávidas e dos almoádas certas liberdades no Al-Andaluz seriam comuns.

Vem aí o São João e o Sul até décadas recentes conservou ritos pagãos mantidos pelos muçulmanos e moçárabes, ritos mágicos que a Igreja tentou banir.

As revistas francesas de História que ocasionalmente compro lançaram recentemente artigos sobre a Maçonaria entre os muçulmanos ou o avanço do Islamismo nestas sociedades.

Muito haveria para discutir em tertúlia sobre este tema mas aqui não é local certo.

Muito obrigado por este post e pelo serviço público que faz neste blogue.