Héracles matando a Hidra de Lerna (Museu do Louvre) |
Nunca fui um entusiasta da União Europeia. Quando foi criada a CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço), em 1951, ainda era criança e nada percebia da matéria. Aquando dos Tratados de Roma (1957) que originaram a CEE (Comunidade Económica Europeia) e a CEEA (EURATOM) (Comunidade Europeia da Energia Atómica), continuava a ser muito jovem e, não pertencendo Portugal a essas organizações, o assunto passava-me realmente ao lado. O Tratado de Bruxelas (1965), que reuniu as três instituições sob a designação de Comunidade Europeia (CE) e as suas perspectivas provocou-me alguma apreensão, mas continuava a não dizer directamente respeito a Portugal. Comecei verdadeiramente a interessar-me em 1986, quando Portugal aderiu à CE. A interessar-me e a interrogar-me.
O Tratado de Maastricht (1992), que criou a União Europeia (1993) foi saudado por muita gente como uma etapa fundamental na construção de uma "nova" Europa, eu diria, de uma "nova" meia-Europa, já que não incluía os países da Europa de Leste, então ainda na órbita da União Soviética. As esperanças eram largamente incensadas mas nem todos depositavam as mesmas expectativas no futuro que se avizinhava. Já houvera o Acto Único Europeu (1986), preconizando as etapas que levariam à consagração do mercado interno e à criação da UE. Seguiram-se-lhe outros tratados. A história deste espaço europeu está recheada de tratados: Tratado de Amesterdão (1997); Tratado de Nice (2001), visando o alargamento aos países de Leste e prevendo a elaboração de uma Constituição Europeia, documento abortado pela não ratificação pela França e pela Holanda; Tratado de Lisboa (2007), que entrou em vigor em 2009 e substituiu a projectada Constituição.
O Tratado de Lisboa reformulou substancialmente os mecanismos até então em vigor, foi objecto de larga contestação em muitos países e prosseguiu, sob o pretexto de uma maior democratização da UE, a retirada das parcelas de soberania ainda detidas pelos estados-membros, reduzindo a uma caricatura as independências nacionais.
Entretanto, em 1 de Janeiro de 2002, entrara em vigor a moeda única da UE, o euro (caro a Mitterrand para evitar a "hegemonia" alemã) , embora nem todos os países a ela tenham aderido. E a União sofreu um súbito e perigoso alargamento em 2004 com a entrada apressada dos países que haviam saído da esfera de influência soviética.
Existem muitos mais documentos na história atribulada deste "espaço de democracia", como o Acordo Schengen, pactos de adesão, protocolos, declarações, etc., alguns abortados, mas o que escrevi chega. Nem vale a pena invocar os ideais "generosos" dos pais fundadores, Jean Monnet e Robert Schuman.
Manda a verdade que se diga que a "construção" europeia foi realizada quase sempre à revelia dos cidadãos dos diversos países, aos quais nunca foi explicada a natureza dos tratados acordados pelos respectivos governos nem pedida a sua opinião quanto à subscrição dos mesmos. Nem tão pouco se informaram as populações sobre a transferência progressiva das mais importantes parcelas das soberanias nacionais.
Vêm estas linhas a propósito da Grécia e do "acordo" desta madrugada em Bruxelas. Já se escreveu, nos últimos meses, especialmente nas últimas semanas e obsessivamente nos últimos dias, tudo e o seu contrário sobre a situação da Grécia.
Com todas as suas instituições, sustentando uma burocracia cuja manutenção implica importâncias astronómicas, a União Europeia, ao fim dos 50 anos da sua existência tornou-se um monstro terrível, uma Hidra de Lerna, a qual acabou por ser morta pelo mitológico Héracles (voltamos sempre à Grécia), que Tsipras talvez pretenda agora incarnar.
Não vale a pena reeditar a argumentação sustentada pelos diversos quadrantes ideológicos e políticos europeus. Mas importa recordar que o ultimato desta madrugada a Atenas denuncia uma fractura irreversível na União Europeia. Nada ficará como antes.
A constituição do "espaço político europeu" (então ocidental), que pretendia ser mais tarde uma união política, começou a construir-se pelo lado errado, embora o mais fácil e apetecível, o de uma união económica. A sua evolução, como se conclui dos documentos que citei, foi longa e atribulada, com avanços e recuos, mas sempre pouco democrática, ainda que evocando sempre a Democracia. E chegámos ao momento actual. Por ironia do destino, parece que (e talvez seja esse o desígnio de Schäuble) só agora se começa a desenhar a união política pré-configurada pela adopção da economia de mercado livre: a união dos países que se renderam ao neoliberalismo por ora triunfante. Não havendo já escolhas possíveis no espaço da União, as eleições nacionais passaram a ser uma farsa e o papel dos dirigentes dos países europeus uns meros títeres às ordens do capitalismo internacional. O caso Syriza tem o mérito de demonstrar aos mais crédulos que a Democracia na Europa acabou.
A rendição de Alexis Tsipras às exigências de Berlim decorreu da necessidade de evitar, para já, na Grécia uma guerra civil. As exigências de Berlim aos gregos, que nada têm a ver com a dívida (que todo o mundo sabe impagável) decorreu da necessidade de mostrar que não há lugar a alternativas ao pensamento único que se revê no monoteísmo do mercado. E de deixar um aviso aos cidadãos dos países que terão em breve eleições legislativas que só uma governação do "Centro" é exequível.
Os Estados Unidos da Europa, que Victor Hugo propôs no século XIX e muita gente tem defendido, lembrando os Estados Unidos da América, não são viáveis. A Europa, embora vestida como Civilização Ocidental, é um mosaico de velhas culturas, muitas línguas, várias religiões (ainda que na generalidade cristãs), usos e costumes diferentes. São mais de dois mil anos de história, de alianças e guerras, de valores alternada e sucessivamente comuns e distintos. Nada tem a ver com os Estados Unidos da América, que apesar de uma população predominantemente anglo-saxónica (não falo propriamente dos nativos que foram exterminados pelos colonizadores), tiveram longas e mortíferas guerras até chegarem à União. E que, além disso, pouco mais contam do que duzentos anos de vida comum.
Talvez por isso se tenha começado a construir a Europa na vertente económica, já que na política e cultural tal constituiria uma impossibilidade. O que é mais difícil de perceber é como líderes socialistas (ou social-democratas) subscreveram tratados que consagravam a antítese da mais elementar governação socializante. Porventura com a ideia da preservação de um Estado Social minimamente decente, ideia peregrina, pois ele seria uma das mais desejadas presas do Capital, agora convertido no grande capitalismo financeiro. De resto, e apesar dos protestos póstumos de François Hollande ontem em Bruxelas, a Internacional Socialista já desapareceu (o actual presidente até é grego, o senhor George Papandreou).
À divisão Oeste/Leste da Europa, destruída pela desintegração da União Soviética (precioso serviço que ficámos a dever a Mikhail Gorbachov), surge agora a divisão Norte/Sul, protagonizada pela Alemanha. Nem falta uma "cortina de ferro" material, como a que está a ser construída pela Hungria na fronteira com a Sérvia. Diz-se que é a divisão entre os ricos e trabalhadores do Norte e os pobres e preguiçosos do Sul. Duplamente falso. Nem o Norte é mais trabalhador, nem sequer em geral mais rico, mas, por razões as mais diversas, obedece ao diktat alemão.
Escrevi aqui em 2012 sobre o fim da União Europeia, um "cadáver adiado que procria". Já escrevera aqui, em 2011, sobre o perigo alemão, a propósito do livro de Pierre Béhar, Du Ier au IVe Reich (1990).
Neste momento não se sabe o que vai acontecer nos próximos dias. Será o governo de Alexis Tsipras capaz de apresentar amanhã o programa exigido pela União Europeia, ou pelo Eurogrupo (por acaso uma instituição ilegal) ou por Merkel e Hollande, já não se sabe exactamente por quem? Será esse programa aprovado pelo Parlamento grego? E depois? Será para cumprir? Haverá novas exigências dos credores? E a dívida? Sim, e a dívida?
Em qualquer caso, o Syriza e o "Oxi" dos gregos tiveram o mérito de lembrar, aos que porventura ainda duvidassem, que, sob a falsa aparência de liberdade, vivemos num regime totalitário que respeita algumas liberdades formais, para melhor ocultar a natureza ditatorial de uma governação absoluta.
Quro crer que, esta madrugada, começou definitivamente a contagem decrescente para o fim da União Europeia. Pode haver sobressaltos de percurso, tentativas de remediar algumas situações. remendos ali e acolá, mas instalou-se uma desconfiança que permanecerá. Sem esquecer que para lá da divisão Norte/Sul que apontámos, continua a existir uma divisão com o Leste, cristão mas ortodoxo, agora protagonizado por Vladimir Putin.
1 comentário:
O desmembramento da União Europeia é coisa de relativamente pouco tempo. O futuro se encarregará de o confirmar.
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