domingo, 16 de novembro de 2025

A ACADEMIA FRANCESA (À L'IMMORTALITÉ)

Li recentemente Des siècles d'immortalité- L'Académie française 1635-..., de Hélène Carrère d'Encausse, editado em 2011.

Sendo a mais recente obra publicada sobre a Academia Francesa, este livro constitui um valioso instrumento de trabalho, só possível devido à dedicação de Hélène Carrère d'Encausse (1929-2023), que foi titular da 14ª Cadeira da Academia (1990-2023) e seu Secretário perpétuo desde 1999/2000 até à sua morte.

A autora procede à descrição dos acontecimentos que conduziram à criação da Academia em 1635, pelo Cardeal-Duque de Richelieu e relata-nos a história da venerável instituição, que atravessou com majestosa dignidade (o termo "majestosa" é apropriado, já que o Rei de França era o protector oficial da Academia, tradição prosseguida com os presidentes depois da proclamação da República) tempos muito difíceis, aos quais sobreviveu até aos nossos dias. 

Cardeal-Duque de Richelieu    

Nem sempre a relação com o protector foi pacífica, mas a Academia soube manter tradicionalmente a sua independência (usando por vezes engenhosos expedientes), raras vezes se submetendo, apenas  in extremis, à vontade dos monarcas ou até dos presidentes.

No início, tiveram nela assento preferencialmente os nobres e os clérigos, mas a Academia abriu-se pouco a pouco aos novos tempos, com o Século das Luzes, admitindo Montesquieu (1728), Voltaire (1746) e D'Alembert (1754): foi a entrada dos "filósofos" naquele templo, especialmente consagrado, segundo a vontade de Richelieu, à preservação da língua francesa.

Um certo "progressismo" na Academia com o chamado "reino dos filósofos" não impediu todavia que ela viesse a sofrer as consequências do radicalismo da Revolução Francesa. Expulsa do Louvre, onde estava sediada desde Luís XIV, depois das reuniões iniciais em salões particulares, a Academia a acabou por ser extinta (bem como as demais academias) pela Convenção, em 8 de Agosto de1793. Deve-se ao Abade Morellet a odisseia de ter conseguido salvar uma parte do seu espólio literário. 

Não gostava a Convenção da Academia Francesa, e das outras academias, tidas por demasiado próximas do poder real, embora não ignorasse a necessidade de se estabelecer um "plano de organização de uma sociedade destinada ao progresso das Ciências e das Artes". Mas a palavra Letras foi omissa. Escreve a autora: «La Constitution de l'an III, datée du 3 fructidor (22 août 1795), reprit, dans son article 298, l'idée de cette société, et le 3 brumaire an IV (25 octobre 1795), la Convention, en se séparant, entendu dans une de ses dernières séances le rapport de Daunou: "Nous avons emprunté de Talleyrand et Condorcet le plan d'un Institut national, idée grande et majestueuse dont l'exécution doit effacer en splendeur toutes les académies des rois."». Mas como se anteviu na altura, as Letras foram o parente pobre do "monde savant".

Os começos do Instituto confundem-se com os do Directório. A história do restabelecimento das academias no Instituto é detalhadamente descrita no livro com um pormenor que não cabe neste texto. A "Academia Francesa" ficou numa classe secundária do Instituto. Os académicos que restavam tentaram interessar o general Bonaparte, e depois o imperador Napoleão, no restabelecimento de pleno direito da Academia, mas debalde. Por ter reorganizado o Institut em 1803, Napoleão manteve-se avesso à ideia de uma "Academia" autónoma que desautorizaria o seu próprio projecto inicial. Só com a restauração da monarquia, a Academia Francesa voltou a existir de pleno direito com Luís XVIII, em 21 de Março de 1816.

[Abro um parêntese para referir que o Institut de France, na sequência da reorganização napoleónica, conta hoje cinco academias: Academia Francesa, Academia das Inscrições e Belas-Letras, Academia das Ciências, Academia das Belas Artes e Academia das Ciências Morais e Políticas.]

Hélène Carrère d'Encausse


A Academia atravessou, sem problemas significativos, a Restauração, a Monarquia de Julho, a Segunda República, o Segundo Império e a Terceira República. Foi a grande época do Romantismo, com a admissão de Victor Hugo para a 14ª Cadeira em 1841. Também entraram na Academia os presidentes da República Adolphe Thiers (1833) e Raymond Poincaré (1909) e especialmente os marechais de França: Hubert Lyautey (1912), Joseph Joffre (1918), Ferdinand Foch (1918), Philippe Pétain (1929) e Franchet d'Espèray (1934). E Maxime Weigand (que era apenas general), em 1931. Entre os civis, contam-se Pierre Loti (1891), Henri Bergson (1914), Georges Clemenceau (1918), Paul Valéry (1925), Abel Hermant (1927), Abel Bonnard (1932), François Mauriac (1933), Georges Duhamel (1935), André Maurois (1938), Charles Maurras (1938).

A derrota da França na Segunda Guerra Mundial abriu uma nova crise na Academia. O período do Regime de Vichy foi uma época difícil, tanto mais porque o marechal Pétain era académico e, como "chefe do Estado", era o protector natural da instituição. Todavia, o marechal não se imiscuiu nos assuntos internos da Academia.

No pós-guerra a existência da Academia voltou a estar em perigo. Louis Aragon e Elsa Triolet haviam fundado o Comité national des écrivains (CNE), dominado pelos comunistas e mesmo o Front national, criado pelo Partido Comunista Francês em 1941, havia atraído muitos intelectuais não comunistas. O próprio François Mauriac tinha-se juntado ao CNE e ao Front national.

«Dans L'Aube, un article virulent réclame, en ces jours de liesse, "la dissolution de l'Académie". C'est un propos que l'on entend beaucoup au sein du CNE. L'été 1944 où commença l'épuration est marqué par la volonté des têtes d'affiche du nouveau pouvoir intellectuel, largement communistes, de faire table rase des gloires établies et des institutions; l'Académie française est par là doublement visée. Elle se sait vulnérable, compte tenu de la place qu'ont occupé dans l'État français deux de ses membres: le maréchal Pétain et Abel Bonnard. Le général Weigand, bien qu'il est été arrêté par les Allemands lors de l'invasion de la zone libre, et déporté, fait aussi partie, en ces temps où le statut de collaborateur est largement accordé, de la cohorte des académiciens que les nouvelles instances dénoncent avec fureur et pour qui elles exigent un châtiment.» (pp. 295-296)

Em 31 de Agosto de 1944, a Academia realiza uma sessão com a presença de apenas onze membros, entre os quais Paul Valéry e François Mauriac. Jêrome Tharaud, então director, pronuncia um discurso sobre a situação e fica estabelecido: "L'Académie procède à l'examen du cas de ses membres qui ont manqué au devoir national". Na sessão de 7 de Setembro é confirmado que "Messieurs Abel Bonnard et Abel Hermant doivent s'abstenir désormais de paraître aux séances". Uma decisão mesmo assim excepcional, já que os estatutos da Academia não prevêem a destituição dos seus membros. Quanto a Chrales Maurras, a Academia decide, em 14 de Setembro, aguardar o resultado das investigações a seu respeito. Por sugestão de Paul Valéry, é resolvido "ne pas prendre en considération les candidatures de personnes dont l'attitude et les agissements pendant l'occupation étrangère n'ont pas été conformes aux sentiments et aux intérêts nationaux". Foi a primeira vez na sua história que a Academia decidiu aplicar previamente um critério político às candidaturas. É verdade que em 1816 o rei de França, restaurando plenamente a instituição, tinha expulso e nomeado membros com um critério semelhante, mas a Academia tinha considerado esse procedimento um atentado à sua independência. Em 5 de Outubro, François Mauriac escreveu em "Le Figaro" que era necessário não "bousculler la vieille dame" do Quai Conti, e ainda menos suprimi-la. E sugeriu, para insuflar sangue novo, os nomes de Paulhan, Bernanos, Éluard, Malraux, Aragon. Os académicos recearam então uma interferência do general De Gaulle, que não se verificaria. Também se colocou a questão de saber se o presidente do Governo Provisório, ainda não reconhecido por algumas potências aliadas e amigas, poderia ser considerado o chefe do Estado, e logo o protector da Academia.

Só em 1 de Fevereiro de 1945, depois da condenação do fundador da Action française, em 27 de Janeiro, à pena de prisão perpétua e à indignidade nacional, a Academia decidiu ocupar-se do assunto. Foi uma questão que dividiu os académicos, mas sendo juridicamente estabelecido que o crime de um novo género, a "indignidade nacional" era uma pena infamante que comportava a destituição e a exclusão dos condenados de todas as funções, empregos, cargos públicos e corpos constituídos, a Academia já nada tinha a debater. A cadeira de Maurras foi declarada vaga durante quatro semanas, período conforme ao artigo 5º do regulamento de 1752 que estipulava que a eleição não poderia ter lugar menos de trinta dias "après que le décès de celui qu'il s'agit de remplacer aura été connu de l'Académie...". A vacatura deveria ter sido declarada em 8 de Março mas a Academia só preencheu a cadeira de Charles Maurras após a sua morte.

O processo do marechal Pétain, com a sua condenação à morte e à indignidade nacional em 15 de Agosto de 1945, pena comutada em prisão perpétua por De Gaulle, seguiu o mesmo procedimento por parte da Academia. Declarada vaga a sua cadeira, ela só foi preenchida após a sua morte. No caso de Abel Bonnard, condenado à morte por contumácia, mas exilado no estrangeiro, e de Abel Hermant, também condenado e vivendo em difícil situação material e ao qual a Academia prestava discretamente apoio, as suas vagas foram preenchidas em 1946, ainda em vida dos seus ex-titulares. Mas nunca as palavras irradiação ou exclusão foram pronunciadas de forma oficial relativamente a Pétain e a Maurras.

Tendo o marechal Pétain morrido em 1951, foi substituído em 1952 pelo embaixador André François-Poncet. Após a morte de Maurras, em 1952, foi eleito para o seu lugar o duque de Lévis-Mirepoix.

Em 14 de Fevereiro de 1946 registou-se um facto quase inédito na história da Academia Francesa: Georges Duhamel, Secretário perpétuo demitiu-se, devido à fadiga do cargo no período excepcional do fim da guerra. Não foi um precedente absoluto, já que Jean-Baptiste Mirabaud se demitira em 1755, devido a comportamento que indignara a Academia, e François-Juste Raynouard, em 1826, por graves razões de saúde. Mas a demissão de um Secretário perpétuo é inabitual e contrária aos usos da Academia, para que a palavra perpetuidade não se esvazie de sentido.

Mas a Academia Francesa sobreviveu a mais esta crise. E novos e prestigiados nomes foram entrando: em 1946, com 78 anos, ingressou Paul Claudel, que escrevera uma "Ode du maréchal Pétain" que todos resolveram ignorar. Mas não André Gide, apesar do empenho de François Mauriac. Sabendo do interesse do general De Gaulle quanto à admissão de André Gide, Duhamel, que já não era então Secretário perpétuo, foi visitá-lo e disse: "Nous avons un fauteil pour vous." E Gide respondeu: "Non, Duhamel... Je ne dis pas que si l'on m'avait offert le siège de Valéry... mais, puisque le siège de Valéry a été donné, alors je renonce."

«Pour Duhamel, Gide l'avait joué, tout comme il trompait chacun de ses interlocuteurs de l'Académie: "Il préparait le prix Nobel... une élection à l'Académie aurait sûrement compromis la machination Nobel!" Et de conclure à la "perfidie" qui, selon lui, caractérisait Gide.» (p. 321) 

Em 1946 foram ainda eleitos Étienne Gilson, para a cadeira de Abel Hermant e Jules Romain para a cadeira de Abel Bonnard. Em 1951 foi eleito o general (postumamente marechal) De Lattre de Tassigny, que tendo falecido em 1952 não chegou a tomar posse da cadeira. Em 1955 ingressou Jean Cocteau. Em 1959, Henri Troyat.

Com a V República, entraram Henry de Montherlant (1960), René Clair (1960), o cardeal Eugène Tisserant (1961), Maurice Druon (1966). 

O Maio de 1968 voltou a perturbar a vida da Academia. Ouviram-se gritos: "À mort, l'Académie!". Mas a velha dama do Quai Conti permanece.

Em 1980 produziu-se a "revolução Yourcenar". Há muito tempo que Jean d'Ormesson (eleito em 1973) lutava pela admissão de Marguerite Yourcenar. Desafiando todos os preconceitos, fez desse caso o seu "cavalo de batalha". E a autora célebre de Mémoires d'Hadrien foi a primeira mulher a entrar na Academia Francesa. Jean d'Ormesson, que a recebeu sob a Cúpula, dirigindo-se à sua confrade pronunciou pela primeira vez a palavra Madame.

Em 1983 houve a evolução da etnicidade, com a eleição do poeta senegalês Léopold Sedar Senghor, inventor do termo negritude, admitido após algumas hesitações. 

Nos últimos anos, até à data da publicação deste livro (2011), mencionamos alguns dos nomes mais conhecidos que foram admitidos na Academia:  Paul Morand (1968) [após muitas tentativas e com o agrément final do general De Gaulle que sempre se opusera ao seu ingresso], Eugène Ionesco (1970), Julien Green (1971), o cardeal Jean Daniélou (1972), Claude Lévi-Strauss (1973), Félicien Marceau (1975), Alain Peyrefitte (1977), Georges Dumézil (1978), Alain Decaux (1979), Fernand Braudel (1984), Georges Duby (1987), Jacqueline de Romilly (1988), Hélène Carrère d'Encausse (1990) [a autora deste livro], o cardeal Jean-Marie Lustiger (1995), Marc Fumaroli (1995), Angelo Rinaldi (2001), Valéry Giscard d'Estaing (2003), Alain Robbe-Grillet (2004), René Girard (2005), Dominique Fernandez (2007), Amin Maalouf (2011).

A Academia Francesa prossegue na sua trajectória, sempre ocupada com o Dictionnaire (que desde 1694 já conta 8 edições, a nona está a ser publicada em fascículos), uma das suas missões, com rumo à Imortalidade. 

Hélène Carrère d'Encausse foi eleita Secretário perpétuo em 1999, assumindo funções em 1 de Janeiro de 2000. Manteve-se no lugar, perpetuamente, até à sua morte em 5 de Agosto de 2023, com 94 anos. Sucedeu a Maurice Druon. Era filha de Georges Zourabichvili e de Nathalie von Pelken e é mãe de Emmanuel Carrère, Nathalie Carrère e Marina Carrère d'Encausse. Foi casada com Louis Edouard Carrère d'Encausse.

O livro inclui em anexo os Estatutos e Regulamentos, os Usos e Costumes e os Prémios e Mecenatos da Academia. E também os titulares das 40 cadeiras desde a sua fundação e a lista dos Secretários perpétuos, além da Bibliografia sumária.

 

 


sábado, 8 de novembro de 2025

UM JOVEM PORTUGUÊS NA CORTE DE PEDRO, O GRANDE

O investigador norte-americano William P. Rougle publicou em 1983 António Manuel de Vieira na Corte Russa no Século XVIII, sobre a figura de um português que se notabilizou junto do Czar Pedro I, da Rússia.

António Manuel de Vieira, que foi o primeiro Comissário de Polícia de Pedro I, e um dos seus grandes amigos, é mais conhecido na Rússia do que em Portugal, embora a sua vida tenha sido quase totalmente esquecida, nas últimas décadas, pelos historiadores soviéticos e ocidentais. 

A principal fonte e o mais sério dos biógrafos de António de Vieira foi o historiador russo N. S. Shubinsky, que publicou, em 1892, alguns relatos sobre a sua vida em Istorichesky vestnik. Em 1893, este estudo foi incluído no volume Istoricheskie ocherki i raskazy (Ensaios e estudos históricos), que teve quatro edições em dez anos.

As fontes, quer russas quer ocidentais, não são coincidentes quanto ao local e data de nascimento de Vieira. Para uns nasceu em Portugal, natural da província do Minho, para outros em Amesterdão. Até o julgaram napolitano. Parece prevalecer a tese que sustenta que nasceu em 1682, em Amesterdão, filho de um judeu português de poucos meios. Mas sabe-se que Pedro, o Grande o levou para a Rússia quando ele tinha quinze anos, aquando da sua primeira viagem à Europa. 

Escreve Shubinsky (Istoricheskie ocherki i raskazy ): «Enquanto comandante do navio, Pedro I deu-se conta dum jovem marinheiro, ainda quase um rapaz, com traços faciais de judeu, bastante bonito e bem construído. Movia-se no cordame e ajustava as velas com notável destreza, e em geral executava todas as suas tarefas rapidamente e com eficiência. Terminadas as manobras, o Czar mandou-o chamar, louvou a sua graça, deu-lhe um taler e perguntou-lhe quem era e donde era. O marinheiro respondeu-lhe rapidamente que o seu nome era Anton Divier, que era filho de um judeu português que tinha emirado para a Holanda e se convertera aí ao cristianismo, e que o seu pai morrera deixando-o sem meios financeiros e que se tinha tornado marinheiro por necessidade, uma vez que não tinha oportunidade de encontrar uma ocupação mais fácil. O Imperador gostou de tal maneira das respostas inteligentes do rapaz e da sua agradável aparência, que lhe sugeriu que entrasse ao seu serviço, prometendo bom cuidado dele se o servisse com honestidade e dedicação.» (p. 18)

Nesta sua primeira viagem à Europa, Pedro I visitou não só Amesterdão mas também Londres. Daí uma discrepância quanto ao encontro do rapaz com o Czar. Escreve o autor: «Em Julho de 1724, o abade português Tomás da Silva de Avelar, depois de um mês e meio em Moscovo onde como emissário de D. João V esteve presente na coroação de Isabel I, viajou para São Petersburgo onde foi amavelmente recebido por Pedro I e António de Vieira. Numa carta escrita de Dantzig datada de 26 de Setembro de 1724 para Marco António de Azevedo Coutinho em Londres, lê-se: "... em Petresbourg fui logo visitar o nosso famoso António Manuel Vieira, que o Czar trouxe comsigo de Inglaterra achado lá na marinha em pobre estado, e condição..." (p. 21) [Alguma coisa não confere neste texto. Isabel I foi coroada em 1742 (deve ser troca de 1724 em vez de 1742) e Pedro I já tinha morrido, obviamente.]

Existem outras versões sobre o surgimento de Vieira, de quem sabemos pouco durante os primeiros anos em que esteve ao serviço do Czar. Escreve Gelbig (Russkie izbrannik) que Pedro I o deu ao serviço de Alexandre Danilovitch Menshikov, como mensageiro, e só mais tarde o utilizou como pajem ao seu serviço pessoal. 

Os serviços de Vieira agradaram ao imperador que, sendo ele já capitão de cavalaria, em 1708 o promoveu ao posto de major. Em 1711, foi promovido, juntamente com Pavel Yaguzhinsky, a Ajudante-General, posto especialmente criado para eles. 

O seu trabalho pusera-o em contacto íntimo com a família Menshikov, tendo-se desenvolvido uma relação íntima entre Vieira e a irmã mais velha de Menshikov, Anna Danilovna. A situação desagradou a Menshikov (um rapaz que Pedro I encontrara nos estábulos, se tornara seu amigo pessoal e acabaria por ser nomeado príncipe e marechal do Império), que tentou impedir o casamento quando a irmã ficou grávida, tendo fustigado Vieira. Este queixou-se ao Czar que determinou que o casamento se efectuasse no prazo de três dias. 

Segundo Shubinsky, a decisão de casar foi motivada pelo facto de Vieira pretender melhorar a sua posição social de modo a poder mais rapidamente ser aceite pela sociedade da Corte. Não ousando casar dentro da nobreza russa, devido à sua ascendência judaica, Vieira fixou a sua atenção na nova aristocracia,  à qual se pertencia não por nascimento mas por serviço ao Czar.

Em 1713, Pedro I mandou Vieira para Revel (hoje Tallin) para coordenar a construção do porto. Depois de estadas em Inglaterra e na Dinamarca regressou à Rússia em 1716, continuando a servir o Czar como Ajudante-General, e depois como primeiro Comissário de Polícia em São Petersburgo, em 1718. As instruções cometidas por Pedro I a Vieira encontram-se devidamente discriminadas no livro. E também a forma, por vezes muito severa, como foram aplicadas por Vieira. 

Mais do que Comissário de Polícia, Vieira foi o grande fiscal das construções da cidade e da manutenção não só da ordem mas igualmente da limpeza, da utilização das estradas e das pontes, e também da prevenção dos incêndios, da iluminação pública, do controlo das edificações.

«Como Comissário da Polícia, Vieira informava o Czar diariamente, servindo deste modo de intermediário entre ele e os outros funcionários. Por outro lado, Pedro I interessou-se activamente pelo trabalho de Vieira e tinha o cuidado de verificar se as suas ordens eram cumpridas com eficiência.» (p. 51)

«O facto de Vieira ser uma pessoa chegada a Pedro I permitiu-lhe ganhar a afeição da família real, e cedo se tornou um homem de confiança da mulher de Pedro I e futura governadora da Rússia (1725-1727), a qual, segundo Shubinsky, "apreciava muito a bonomia do português que a entretinha com as suas piadas e histórias inesgotáveis". Sempre que Catarina não se encontrava em São Petersburgo, era confiado a Vieira o cargo de olhar pelos estudos e saúde de suas filhas (Anna, Isabel e Natália Petrovna) e enteados (Pedro e Natália Alekseevitch), tal como podemos ver pelas notas semanais que Vieira lhe enviava. O apreço de Catarina por Vieira estendia-se também à família deste. A sua única filha N. N. Antonovna era uma ajudante e dama de honor de Catarina I, e em 1722 o seu filho Pedro Antonovitch, com dez anos de idade, foi nomeado pajem da filha mais velha da Czarina, Anna Petrovna.» (p. 52)

Vieira foi promovido a Brigadeiro a 16 de Janeiro de 1721 e a Major-General a 6 de Janeiro de 1725, vinte e dois dias antes da morte de Pedro I. Catarina I, que lhe sucedeu, querendo expressar o afecto e gratidão por António de Vieira, agraciou-o com a cobiçada Ordem de Santo Alexandre Nevsky, no dia da sua criação, em 21 de Maio de 1725. Em Fevereiro de 1726 foi designado para o Senado e a 24 de Outubro de 1726 foi feito Conde. Em Dezembro desse mesmo ano, Catarina I promoveu-o a Tenente-General, a segunda patente mais alta do exército russo.

Apesar de serem (forçadamente) cunhados, a relações de Vieira com o Príncipe Menshikov nunca foram amistosas, apesar de manterem relações de trabalho. E deterioraram-se após o episódio da Curlândia que aqui não especificaremos.

«Nos fins de Janeiro de 1727, Catarina I adoeceu gravemente o que levou as várias facções da Corte a iniciarem a sua luta no sentido de impor o candidato que lhe iria suceder.

Os favoritos incluíam as duas filhas de Catarina, Anna e Isabel, e o neto de Pedro, o Grande, Pedro Alekseevitch, de onze anos de idade.

O trono por direito pertencia ao Grão-Duque Pedro Alekseevitch, que era apoiado, portanto, pela velha aristocracia para além do poderoso embaixador austríaco, Conde Rabutin, que actuava no interesse do Imperador Carlos VI da Áustria, tio do Grão-Duque por casamento. No entanto, opunham-se à sua candidatura a maioria daqueles que, em 1718, tinham ajudado Pedro, o Grande a obter a sentença de morte para o seu filho Aleksei, o pai do Grão-Duque. Entre estes, contavam-se o Príncipe Menshikov, Pedro Tolstoi, António de Vieira, Pavel Yaguzhinsky, Grigori Skornyakov-Pisarev e Ivan Buturlin, para só mencionar algumas das figuras mais conhecidas. Receavam eles que, uma vez no poder, o jovem Grão-Duque se vingasse de todos aqueles que tinham conspirado contra o seu pai.» (pp. 65-66)

Por sugestão do embaixador dinamarquês, Menshikov mudou de opinião propondo a Catarina (sua ex-amante) que a sua filha Maria se casasse com o Grão Duque, ao que aquela em princípio acedeu. O Conde Tolstoi e outros notáveis resolveram então conspirar contra essa solução, aliciando para o caso Vieira logo que este regressou da Curlândia. Tendo a saúde de Catarina piorado, estando a morte iminente, Menshikov conseguiu, em 16 de Abril de 1727, obter a assinatura da soberana num documento em que Pedro era declarado como sucessor e a filha daquele, Maria, como sua noiva.

Naquele dia, e na cerimónia solene a que assistia toda a Corte, Vieira estaria embriagado. Menshikov aproveitou a circunstância para o mandar prender por crime de lesa-majestade, por se rir, dizer piadas e ter o Grão-Duque sentado nos joelhos, etc. Foi constituída uma comissão para averiguar dos factos, a que Vieira respondeu, tendo Menshikov obtido ainda de Catarina a autoridade necessária para "interrogar" Vieira para que este denunciasse os seus cúmplices, já que era suposto existir uma conspiração. Após ter sido chicoteado, Vieira indicou os nomes dos cúmplices a tempo de Catarina, horas antes de morrer, a 6 de Maio de 1727, ter aceite a condenação de Vieira.

«É este o texto do ukaz: "Retirar a Devier e Tolstoi os seus títulos, honras e terras e exilá-los: Devier para a Sibéria, Tolstoi e o seu filho para Solovki; retirar a Baturin os seus títulos e exilá-lo para uma região distante; retirar a Skornyakov-Pisarev os seus títulos, honras e terras, chicoteá-lo e exilá-lo; retirar a Naryskin os títulos e deportá-lo; transferir Ushakov para um regimento conveniente; afastar o Príncipe I. Dolgorukov da Corte, despromovê-lo e alistá-lo num batalhão." Segundo Shubinsky, Menshikov acrescentou um post-scriptum ao ukaz, para que Vieira se recordasse dele: Devier para ser chicoteado antes de ser exilado.» (p. 70)

Vieira foi enviado para a região de Yakutsk. Menshikov estendeu o seu rigor à própria irmã, que era mulher de Vieira, obrigando-a a ir viver no campo com os três filhos. 

Quando Menshikov caiu, por seu turno, em desgraça, em 1727, e foi exilado para a Sibéria, a sua queda não melhorou a situação de Vieira mas um pouco a de sua mulher que, por decreto de Pedro II, foi autorizada a viver numa das suas melhores propriedades. Depois da morte de Pedro II, em 1729, e da ascensão de Anna Ivanovna e, consequentemente, do conde alemão Ernst Johann Biron, seu primeiro ministro não oficial e amante, não se verificou de imediato qualquer mudança na situação de Vieira ou da mulher. Só em 1735 foi permitido a Anna Vieira regressar a São Petersburgo para cuidar da educação dos filhos, Alexandre e Anton, que foram admitidos na Guarda Imperial. 

António de Vieira fez a viagem de seis meses para a Sibéria com o antigo Major-General e companheiro de conspiração Grigori Skornyakov-Pisarev, mas este, em 1731, teve a sorte de ser nomeado comandante da recentemente fundada povoação de Okhotsk, na Sibéria. Tendo a gestão de Pisarev sido deficiente, em 1739, finalmente, a Imperatriz retirou Vieira do exílio e nomeou-o em substituição daquele. A actuação de Vieira foi notável, tendo mandado prender Pisarev e restabelecido o normal funcionamento da região, e o relatório sobre a sua eficiência chegou a São Petersburgo. A 7 de Dezembro de 1741, no dia seguinte à sua subida ao trono, a nova Imperatriz Isabel Petrovna emitiu a seguinte ordem para o Senado:

«"Anton Dever e Skornyakov-Pisarev que foram condenados a ir para a Sibéria, serão perdoados e libertados do seu exílio"». (p. 87)

Após o seu regresso a São Petersburgo, em 1743, Isabel I restituiu-lhe todas as suas antigas honras, títulos e propriedades. 

«Tomamos conhecimento através da correspondência do Marquês Dalion (o embaixador francês na Corte russa na altura), que a Imperatriz Isabel quase não proporcionara a Vieira uma oportunidade para descansar da sua longa viagem de regresso a casa, antes que o pusesse de novo ao seu serviço. A reputação de Vieira como inquiridor rígido e leal, não se esbatera durante os anos do seu exílio. Escrevendo para o Marquês Ameiot, de São Petersburgo em 19 de Março de 1743 (C.G.), sobre um suposto golpe no palácio com o objectivo de derrubar a Imperatriz, o Marquês Dalion diz-lhe que a comissão reunida para o examinar é

"composta por Anton Manuel de Vier, recentemente chegado do seu exílio na Sibéria, português de nascimento e cunhado do falecido Príncipe Menshikov, o camareiro Schouvaloff... e o porta-bandeira Grunstein. A escolha destes homens austeros que eram devotos a Sua Majestade por inclinação e  por gratidão parece indicar que irão fazer importantes descobertas..."» (p. 87)

«Em 5 de Julho de 1744, a Imperatriz promoveu Vieira ao mais alto posto do Exército russo, o de Chefe de Estado Maior ("General-anshef").» (p. 93)

António Manuel de Vieira pôde gozar tranquilamente e confortavelmente os últimos dias da sua vida. Morreu em 24 de Junho de 1745, com 63 anos de idade, e foi sepultado no cemitério do Mosteiro de Alexandre Nevsky, em São Petersburgo.

[Quando visitei São Petersburgo há alguns anos, passei uma manhã no cemitério do Mosteiro, onde observei os túmulos das grandes figuras da literatura e da música russas. Não sabia que Vieira ali repousava também, pois não teria perdido a oportunidade de ver a sua sepultura, caso fosse possível identificá-la.] 

O livro inclui, em apêndice, a genealogia dos Condes de Vieira (Devier) até aos finais do século XIX.