O investigador norte-americano William P. Rougle publicou em 1983 António Manuel de Vieira na Corte Russa no Século XVIII, sobre a figura de um português que se notabilizou junto do Czar Pedro I, da Rússia.
António Manuel de Vieira, que foi o primeiro Comissário de Polícia de Pedro I, e um dos seus grandes amigos, é mais conhecido na Rússia do que em Portugal, embora a sua vida tenha sido quase totalmente esquecida, nas últimas décadas, pelos historiadores soviéticos e ocidentais.
A principal fonte e o mais sério dos biógrafos de António de Vieira foi o historiador russo N. S. Shubinsky, que publicou, em 1892, alguns relatos sobre a sua vida em Istorichesky vestnik. Em 1893, este estudo foi incluído no volume Istoricheskie ocherki i raskazy (Ensaios e estudos históricos), que teve quatro edições em dez anos.
As fontes, quer russas quer ocidentais, não são coincidentes quanto ao local e data de nascimento de Vieira. Para uns nasceu em Portugal, natural da província do Minho, para outros em Amesterdão. Até o julgaram napolitano. Parece prevalecer a tese que sustenta que nasceu em 1682, em Amesterdão, filho de um judeu português de poucos meios. Mas sabe-se que Pedro, o Grande o levou para a Rússia quando ele tinha quinze anos, aquando da sua primeira viagem à Europa.
Escreve Shubinsky (Istoricheskie ocherki i raskazy ): «Enquanto comandante do navio, Pedro I deu-se conta dum jovem marinheiro, ainda quase um rapaz, com traços faciais de judeu, bastante bonito e bem construído. Movia-se no cordame e ajustava as velas com notável destreza, e em geral executava todas as suas tarefas rapidamente e com eficiência. Terminadas as manobras, o Czar mandou-o chamar, louvou a sua graça, deu-lhe um taler e perguntou-lhe quem era e donde era. O marinheiro respondeu-lhe rapidamente que o seu nome era Anton Divier, que era filho de um judeu português que tinha emirado para a Holanda e se convertera aí ao cristianismo, e que o seu pai morrera deixando-o sem meios financeiros e que se tinha tornado marinheiro por necessidade, uma vez que não tinha oportunidade de encontrar uma ocupação mais fácil. O Imperador gostou de tal maneira das respostas inteligentes do rapaz e da sua agradável aparência, que lhe sugeriu que entrasse ao seu serviço, prometendo bom cuidado dele se o servisse com honestidade e dedicação.» (p. 18)
Nesta sua primeira viagem à Europa, Pedro I visitou não só Amesterdão mas também Londres. Daí uma discrepância quanto ao encontro do rapaz com o Czar. Escreve o autor: «Em Julho de 1724, o abade português Tomás da Silva de Avelar, depois de um mês e meio em Moscovo onde como emissário de D. João V esteve presente na coroação de Isabel I, viajou para São Petersburgo onde foi amavelmente recebido por Pedro I e António de Vieira. Numa carta escrita de Dantzig datada de 26 de Setembro de 1724 para Marco António de Azevedo Coutinho em Londres, lê-se: "... em Petresbourg fui logo visitar o nosso famoso António Manuel Vieira, que o Czar trouxe comsigo de Inglaterra achado lá na marinha em pobre estado, e condição..." (p. 21) [Alguma coisa não confere neste texto. Isabel I foi coroada em 1742 (deve ser troca de 1724 em vez de 1742) e Pedro I já tinha morrido, obviamente.]
Existem outras versões sobre o surgimento de Vieira, de quem sabemos pouco durante os primeiros anos em que esteve ao serviço do Czar. Escreve Gelbig (Russkie izbrannik) que Pedro I o deu ao serviço de Alexandre Danilovitch Menshikov, como mensageiro, e só mais tarde o utilizou como pajem ao seu serviço pessoal.
Os serviços de Vieira agradaram ao imperador que, sendo ele já capitão de cavalaria, em 1708 o promoveu ao posto de major. Em 1711, foi promovido, juntamente com Pavel Yaguzhinsky, a Ajudante-General, posto especialmente criado para eles.
O seu trabalho pusera-o em contacto íntimo com a família Menshikov, tendo-se desenvolvido uma relação íntima entre Vieira e a irmã mais velha de Menshikov, Anna Danilovna. A situação desagradou a Menshikov (um rapaz que Pedro I encontrara nos estábulos, se tornara seu amigo pessoal e acabaria por ser nomeado príncipe e marechal do Império), que tentou impedir o casamento quando a irmã ficou grávida, tendo fustigado Vieira. Este queixou-se ao Czar que determinou que o casamento se efectuasse no prazo de três dias.
Segundo Shubinsky, a decisão de casar foi motivada pelo facto de Vieira pretender melhorar a sua posição social de modo a poder mais rapidamente ser aceite pela sociedade da Corte. Não ousando casar dentro da nobreza russa, devido à sua ascendência judaica, Vieira fixou a sua atenção na nova aristocracia, à qual se pertencia não por nascimento mas por serviço ao Czar.
Em 1713, Pedro I mandou Vieira para Revel (hoje Tallin) para coordenar a construção do porto. Depois de estadas em Inglaterra e na Dinamarca regressou à Rússia em 1716, continuando a servir o Czar como Ajudante-General, e depois como primeiro Comissário de Polícia em São Petersburgo, em 1718. As instruções cometidas por Pedro I a Vieira encontram-se devidamente discriminadas no livro. E também a forma, por vezes muito severa, como foram aplicadas por Vieira.
Mais do que Comissário de Polícia, Vieira foi o grande fiscal das construções da cidade e da manutenção não só da ordem mas igualmente da limpeza, da utilização das estradas e das pontes, e também da prevenção dos incêndios, da iluminação pública, do controlo das edificações.
«Como Comissário da Polícia, Vieira informava o Czar diariamente, servindo deste modo de intermediário entre ele e os outros funcionários. Por outro lado, Pedro I interessou-se activamente pelo trabalho de Vieira e tinha o cuidado de verificar se as suas ordens eram cumpridas com eficiência.» (p. 51)
«O facto de Vieira ser uma pessoa chegada a Pedro I permitiu-lhe ganhar a afeição da família real, e cedo se tornou um homem de confiança da mulher de Pedro I e futura governadora da Rússia (1725-1727), a qual, segundo Shubinsky, "apreciava muito a bonomia do português que a entretinha com as suas piadas e histórias inesgotáveis". Sempre que Catarina não se encontrava em São Petersburgo, era confiado a Vieira o cargo de olhar pelos estudos e saúde de suas filhas (Anna, Isabel e Natália Petrovna) e enteados (Pedro e Natália Alekseevitch), tal como podemos ver pelas notas semanais que Vieira lhe enviava. O apreço de Catarina por Vieira estendia-se também à família deste. A sua única filha N. N. Antonovna era uma ajudante e dama de honor de Catarina I, e em 1722 o seu filho Pedro Antonovitch, com dez anos de idade, foi nomeado pajem da filha mais velha da Czarina, Anna Petrovna.» (p. 52)
Vieira foi promovido a Brigadeiro a 16 de Janeiro de 1721 e a Major-General a 6 de Janeiro de 1725, vinte e dois dias antes da morte de Pedro I. Catarina I, que lhe sucedeu, querendo expressar o afecto e gratidão por António de Vieira, agraciou-o com a cobiçada Ordem de Santo Alexandre Nevsky, no dia da sua criação, em 21 de Maio de 1725. Em Fevereiro de 1726 foi designado para o Senado e a 24 de Outubro de 1726 foi feito Conde. Em Dezembro desse mesmo ano, Catarina I promoveu-o a Tenente-General, a segunda patente mais alta do exército russo.
Apesar de serem (forçadamente) cunhados, a relações de Vieira com o Príncipe Menshikov nunca foram amistosas, apesar de manterem relações de trabalho. E deterioraram-se após o episódio da Curlândia que aqui não especificaremos.
«Nos fins de Janeiro de 1727, Catarina I adoeceu gravemente o que levou as várias facções da Corte a iniciarem a sua luta no sentido de impor o candidato que lhe iria suceder.
Os favoritos incluíam as duas filhas de Catarina, Anna e Isabel, e o neto de Pedro, o Grande, Pedro Alekseevitch, de onze anos de idade.
O trono por direito pertencia ao Grão-Duque Pedro Alekseevitch, que era apoiado, portanto, pela velha aristocracia para além do poderoso embaixador austríaco, Conde Rabutin, que actuava no interesse do Imperador Carlos VI da Áustria, tio do Grão-Duque por casamento. No entanto, opunham-se à sua candidatura a maioria daqueles que, em 1718, tinham ajudado Pedro, o Grande a obter a sentença de morte para o seu filho Aleksei, o pai do Grão-Duque. Entre estes, contavam-se o Príncipe Menshikov, Pedro Tolstoi, António de Vieira, Pavel Yaguzhinsky, Grigori Skornyakov-Pisarev e Ivan Buturlin, para só mencionar algumas das figuras mais conhecidas. Receavam eles que, uma vez no poder, o jovem Grão-Duque se vingasse de todos aqueles que tinham conspirado contra o seu pai.» (pp. 65-66)
Por sugestão do embaixador dinamarquês, Menshikov mudou de opinião propondo a Catarina (sua ex-amante) que a sua filha Maria se casasse com o Grão Duque, ao que aquela em princípio acedeu. O Conde Tolstoi e outros notáveis resolveram então conspirar contra essa solução, aliciando para o caso Vieira logo que este regressou da Curlândia. Tendo a saúde de Catarina piorado, estando a morte iminente, Menshikov conseguiu, em 16 de Abril de 1727, obter a assinatura da soberana num documento em que Pedro era declarado como sucessor e a filha daquele, Maria, como sua noiva.
Naquele dia, e na cerimónia solene a que assistia toda a Corte, Vieira estaria embriagado. Menshikov aproveitou a circunstância para o mandar prender por crime de lesa-majestade, por se rir, dizer piadas e ter o Grão-Duque sentado nos joelhos, etc. Foi constituída uma comissão para averiguar dos factos, a que Vieira respondeu, tendo Menshikov obtido ainda de Catarina a autoridade necessária para "interrogar" Vieira para que este denunciasse os seus cúmplices, já que era suposto existir uma conspiração. Após ter sido chicoteado, Vieira indicou os nomes dos cúmplices a tempo de Catarina, horas antes de morrer, a 6 de Maio de 1727, ter aceite a condenação de Vieira.
«É este o texto do ukaz: "Retirar a Devier e Tolstoi os seus títulos, honras e terras e exilá-los: Devier para a Sibéria, Tolstoi e o seu filho para Solovki; retirar a Baturin os seus títulos e exilá-lo para uma região distante; retirar a Skornyakov-Pisarev os seus títulos, honras e terras, chicoteá-lo e exilá-lo; retirar a Naryskin os títulos e deportá-lo; transferir Ushakov para um regimento conveniente; afastar o Príncipe I. Dolgorukov da Corte, despromovê-lo e alistá-lo num batalhão." Segundo Shubinsky, Menshikov acrescentou um post-scriptum ao ukaz, para que Vieira se recordasse dele: Devier para ser chicoteado antes de ser exilado.» (p. 70)
Vieira foi enviado para a região de Yakutsk. Menshikov estendeu o seu rigor à própria irmã, que era mulher de Vieira, obrigando-a a ir viver no campo com os três filhos.
Quando Menshikov caiu, por seu turno, em desgraça, em 1727, e foi exilado para a Sibéria, a sua queda não melhorou a situação de Vieira mas um pouco a de sua mulher que, por decreto de Pedro II, foi autorizada a viver numa das suas melhores propriedades. Depois da morte de Pedro II, em 1729, e da ascensão de Anna Ivanovna e, consequentemente, do conde alemão Ernst Johann Biron, seu primeiro ministro não oficial e amante, não se verificou de imediato qualquer mudança na situação de Vieira ou da mulher. Só em 1735 foi permitido a Anna Vieira regressar a São Petersburgo para cuidar da educação dos filhos, Alexandre e Anton, que foram admitidos na Guarda Imperial.
António de Vieira fez a viagem de seis meses para a Sibéria com o antigo Major-General e companheiro de conspiração Grigori Skornyakov-Pisarev, mas este, em 1731, teve a sorte de ser nomeado comandante da recentemente fundada povoação de Okhotsk, na Sibéria. Tendo a gestão de Pisarev sido deficiente, em 1739, finalmente, a Imperatriz retirou Vieira do exílio e nomeou-o em substituição daquele. A actuação de Vieira foi notável, tendo mandado prender Pisarev e restabelecido o normal funcionamento da região, e o relatório sobre a sua eficiência chegou a São Petersburgo. A 7 de Dezembro de 1741, no dia seguinte à sua subida ao trono, a nova Imperatriz Isabel Petrovna emitiu a seguinte ordem para o Senado:
«"Anton Dever e Skornyakov-Pisarev que foram condenados a ir para a Sibéria, serão perdoados e libertados do seu exílio"». (p. 87)
Após o seu regresso a São Petersburgo, em 1743, Isabel I restituiu-lhe todas as suas antigas honras, títulos e propriedades.
«Tomamos conhecimento através da correspondência do Marquês Dalion (o embaixador francês na Corte russa na altura), que a Imperatriz Isabel quase não proporcionara a Vieira uma oportunidade para descansar da sua longa viagem de regresso a casa, antes que o pusesse de novo ao seu serviço. A reputação de Vieira como inquiridor rígido e leal, não se esbatera durante os anos do seu exílio. Escrevendo para o Marquês Ameiot, de São Petersburgo em 19 de Março de 1743 (C.G.), sobre um suposto golpe no palácio com o objectivo de derrubar a Imperatriz, o Marquês Dalion diz-lhe que a comissão reunida para o examinar é
"composta por Anton Manuel de Vier, recentemente chegado do seu exílio na Sibéria, português de nascimento e cunhado do falecido Príncipe Menshikov, o camareiro Schouvaloff... e o porta-bandeira Grunstein. A escolha destes homens austeros que eram devotos a Sua Majestade por inclinação e por gratidão parece indicar que irão fazer importantes descobertas..."» (p. 87)
«Em 5 de Julho de 1744, a Imperatriz promoveu Vieira ao mais alto posto do Exército russo, o de Chefe de Estado Maior ("General-anshef").» (p. 93)
António Manuel de Vieira pôde gozar tranquilamente e confortavelmente os últimos dias da sua vida. Morreu em 24 de Junho de 1745, com 63 anos de idade, e foi sepultado no cemitério do Mosteiro de Alexandre Nevsky, em São Petersburgo.
[Quando visitei São Petersburgo há alguns anos, passei uma manhã no cemitério do Mosteiro, onde observei os túmulos das grandes figuras da literatura e da música russas. Não sabia que Vieira ali repousava também, pois não teria perdido a oportunidade de ver a sua sepultura, caso fosse possível identificá-la.]
O livro inclui, em apêndice, a genealogia dos Condes de Vieira (Devier) até aos finais do século XIX.

Sem comentários:
Enviar um comentário