quinta-feira, 4 de setembro de 2025

HERODES

 


HERODES

Li, por sugestão do Miguel Castelo Branco, o mais recente livro de Martin Goodman, Herodes, o Grande (2024), na tradução portuguesa (2025) de Herod the Great.

Comprei o exemplar na FNAC de um centro comercial (onde, agora, vou às vezes), tendo o empregado que me atendeu (e que conheço há longos anos da primeira FNAC) comentado que se devia tratar de um livro bom pois só se havia vendido um exemplar, tendo os restantes em depósito, salvo o derradeiro que eu adquiri, sido devolvidos à respectiva editora.

Os empregados das FNAC’s conhecem, na generalidade, o que importa e o que não presta e sabem que nos expositores e estantes das livrarias se acumulam toneladas de papel impresso (livros de auto-ajuda, romances improváveis, alucinações históricas) cujo único destino deveria ser o caixote do lixo ou a eventual reciclagem.

Perguntei-lhe se todo esse esterco que nos ofende a vista tinha compradores. Respondeu-me que sim, que se iam vendendo alguns desses monos, mas que desconfiava que as pessoas que os adquiriam não chegavam a lê-los.

Só tenho pena da pasta para o papel!

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Voltando a Herodes (73-4 AC). De origem não nobre, eram os asmoneus que governavam então a Judeia, conseguiu que o Senado Romano o designasse Rei dos Judeus em 40 AC, efectivamente a partir de 37 AC, quando logra derrotar Antígono.

Foi um político inteligente e astuto e conseguiu contornar habilidosamente os reveses da História. Amigo de Marco António e depois de Octávio César Augusto, amigo e inimigo de Cleópatra, soberano de um país cliente e vassalo da República e do Império Romano, sobreviveu às lutas dos dois Triunviratos, às lutas vizinhas e às lutas internas. Grande construtor e administrador, foi homem de paixões e de crueldades, embora seja impossível atribuir-se-lhe a responsabilidade da “matança dos inocentes” que a Bíblia relata, por ter morrido quatro anos antes do nascimento de Cristo. Também é verdade que a conversão de datas efectuada por Dionísio, o Exíguo no século VI, pode conter entre sete a quatro anos de erro. Assim sendo, Cristo poderá ter nascido em 4 AC ou mesmo antes, o que torna aceitável a versão bíblica. Dionísio estabeleceu que Jesus Cristo teria nascido 753 anos depois da fundação de Roma (Ab Urbe Condita), o que contraria as versões de Mateus (II,1) e de Lucas (III,1-22). Quanto à “matança” ela só é mencionada por Mateus (II,16-18).

A corte de Herodes era sofisticada e procurou uma certa helenização da Judeia e o convívio com homens cultos, como Nicolau de Damasco (amigo de Augusto), que bastante o ajudou.

Para agradar a Octávio, que o protegia, Herodes iniciou em 27 AC, logo após aquele ter recebido o nome de Augusto, a transformação da cidade de Samaria em Sebaste (“Sebastos” em grego significa “reverenciado” e equivale ao latim “Augustus”), próximo da actual cidade de Naplus.

Também começou a construir em 27 AC, e terminou em 13, a cidade de Cesareia (Marítima), com grandes espectáculos romanos, combates de gladiadores e corrida de cavalos, embora tal não fosse muito do agrado dos seus súbditos judeus.

Para ganhar a simpatia destes, Herodes propôs-se restaurar o Templo de Jerusalém (o Segundo Templo), que datava do século VI AC e que se encontrava bastante danificado. As obras iniciaram-se por volta de 19 AC e a intenção de Herodes era a de assemelhá-lo a um templo romano, coisa inaceitável para os judeus, que não aceitavam sacrifícios ao imperador. Herodes instituiu uma nova prática que era a de os sacrifícios regulares serem feitos ao próprio Deus, mas em nome do imperador. O grande apoio de Augusto, e nomeadamente do seu amigo Marcos Agripa (o número dois de Augusto), para o embelezamento do Templo levou a que Herodes gravasse o nome de Agripa na porta do Templo e colocasse sobre a mesma uma águia dourada, o que provocou a indignação dos judeus. A águia foi retirada da fachada do Templo pouco antes da morte de Herodes, em 4 AC, por alguns judeus que a consideravam uma afronta religiosa. Herodes respondeu com raiva e que eles mesmos haviam cometido um sacrilégio.

«O que, além da aceitação de Herodes do risco de tal oposição à imagem, apesar do seu cuidado em respeitar as sensibilidades judaicas noutras partes do Templo remodelado, sugere que Herodes considerava a águia um tributo ao seu patrono romano? A águia não era uma representação habitual de Roma neste período, mas os planos para incluir imagens de águias na representação simbólica do imperador podem ter estado em curso na altura em que Herodes completou as suas principais obras no Templo de Jerusalém, em 12. A águia no Templo de Jerusalém pode, de facto, ter constituído a primeira utilização do que se tornou um elemento importante da iconografia imperial.

Segundo um relato, uma águia foi libertada da pira de Augusto aquando da sua morte em 14 DC. A águia demonstrava que o imperador tinha subido ao céu para se juntar aos deuses. Augusto estava determinado a garantir que, da mesma forma que tinha começado a sua carreira meteórica, anunciando o seu estatuto de filho do divino Júlio, deveria ser reconhecido pelos seus compatriotas romanos como divino após a morte. A águia era uma contrapartida do célebre cometa que se seguiu à morte de César, e mais fácil de arranjar.

Não sabemos quando é que Augusto começou a fazer planos para o seu funeral, incluindo esta manobra teatral, mas a construção do seu mausoléu monumental em Roma, em 28 AC, sugere que já tinha começado a fazer planos nessa altura. Em 23, quando se julgava próximo da morte, deve ter feito alguns preparativos funerários de contingência. Se a libertação de uma águia da sua pira funerária estava incluída entre esses planos nessa data – precisamente quando se iniciavam os trabalhos de transformação do Templo de Jerusalém – teria feito sentido que Herodes adoptasse a imagem da águia para honrar o seu patrono imperial no Templo, onde os judeus deviam rezar ao seu Deus em seu nome.

O Templo de Jerusalém reconstruído enquadrava-se confortavelmente no programa de Augusto para a fundação ou reconstrução de santuários em Roma, o que asseguraria a restauração do favor dos deuses após os desastres da república tardia. A alegada afirmação de Herodes, ao anunciar o seu plano de reconstrução do Templo, de que “com este acto de piedade daria a Deus a plena retribuição pela dádiva deste reino”, era um aspecto do seu governo como rei romano.» (pp. 101-102)

Apesar das desesperadas alegações de Antígono aos romanos de que Herodes era apenas meio-judeu, já que seu pai era um idumeu, os romanos consideravam-no como Herodes, o Judeu. Diz-se, aliás, que Nicolau de Damasco, para agradar ao rei, inventou uma genealogia da família de Herodes, afirmando que esta descendia de judeus de notável estirpe que tinham vindo de Babilónia para a Judeia no tempo de Ciro, no século VI AC.

[Permita-se-me esta reflexão: como no presente, para se obter a cidadania portuguesa, se confeccionam genealogias sefarditas, já no passado era possível obter uma ancestralidade judaica com vista a uma legitimação política.]

Tem-se colocado a questão de saber se Herodes acreditava verdadeiramente nos ensinamentos da Bíblia hebraica e se cumpria rigorosamente os preceitos religiosos. É sabido que nesse tempo havia interpretações divergentes relativamente a alguns aspectos da Lei, com grupos filosóficos distintos, como os fariseus, os saduceus ou os essénios. Mas pode dizer-se que, de uma maneira geral, Herodes partilhava a fé dos seus contemporâneos judeus. Apesar do seu interesse na representação da figura humana (muito presada por gregos e romanos), e porque a Torá proibia a criação de imagens, Herodes limitou as reproduções antropomórficas praticamente ao seu palácio.

«É pouco provável que, ao designar Herodes rei não só da Judeia, mas também dos Judeus, Marco António pretendesse especificamente que o Senado atribuísse ao seu protegido um papel na protecção dos interesses das comunidades judaicas que viviam em todo o Império Romano e para além dele. Também não há qualquer razão para supor que Herodes se tenha imaginado a desempenhar esse papel nos primeiros anos do seu reinado. No entanto, por volta dos anos vinte antes da Era Comum, quando estava seguro do seu poder na Judeia e a sua ambição disparou, parece ter sucumbido, por vezes, à tentação de se apresentar como um patrono dos judeus onde quer que vivessem. A tentação era especialmente forte quando podia exercer esse patrocínio perante uma audiência romana, demonstrando o alcance da sua influência não só a outros Judeus, mas também aos Romanos dos quais dependia o seu próprio poder.

Ao longo dos séculos anteriores, os Judeus tinham feito de muitas partes do Império Romano do Oriente a sua casa, bem como da cidade de Roma. A diáspora tinha crescido, em parte, como resposta ao excesso de população na terra natal e, em parte, através da reinstalação de cativos de guerra. O facto de estes Judeus terem preservado os seus costumes nacionais distintos em comunidades agrupadas em torno de sinagogas tornou-os particularmente visíveis nas cidades onde se estabeleceram. Meio século após a morte de Herodes, o filósofo Filo registou a existência de Judeus no Egipto, Fenícia, Síria, Panfília, Cilícia, Ásia, Bitínia, Ponto, Tessália, Beócia, Macedónia, Eólia, Ática, Argos, Corinto, Peloponeso, Eubeia, Chipre e Creta. Todas estas comunidades judaicas estavam bem estabelecidas no tempo de Herodes, bem como outras em Cirene (a moderna Líbia) e noutros locais. A população judaica em Roma expandira-se muito a partir de meados do século I AC., na sequência da deportação para a cidade de inúmeros escravos após a tomada de Jerusalém por Pompeu em 63.» (p. 122)

Ao contrário dos romanos, que casavam e se divorciavam, Herodes, grande apreciador de mulheres (além de bonitos rapazes) convivia com elas ao mesmo tempo e debaixo do mesmo tecto, o que não era bem visto pelos judeus. Chegou a possuir nove esposas em simultâneo.

Assim, casou com Dóris (quando ainda não era rei e que lhe deu um filho, Antípatro), com Mariame (I) (que foi mãe de Alexandre, Aristóbulo, Salampsio e Cipros), Mariame (II) (mãe de Herodes), Maltace (mãe de Arquelau e Antipas), Cleópatra (mãe de Filipe), Palas (mãe de Fasel), Fedra, Élpis (mãe de duas filhas, uma chamada Salomé) e mais duas outras esposas cujo nome Josefo não mencionou nas suas listas, possivelmente por não terem tido filhos.

Profundamente desconfiado, suspeitou sempre da família, que aliás estimava, muito especialmente os irmãos. À medida que envelhecia, os receios de que o queriam assassinar avolumaram-se, não sabia em quem podia confiar. Os seus acessos de cólera levavam-no a tomar decisões precipitadas e irreversíveis.

Mandou matar Mariame (I), que amava, acto de que se arrependeu e que amargurou o resto da sua vida. As permanentes indecisões quanto à sua sucessão, que aliás teria de ser avalizada por Roma, levaram-no a escolher sucessivamente alguns dos filhos que depois mandou igualmente matar: Antípatro, Arquelau, Antipas. Ordenou igualmente a morte de Jónatas Aristóbulo (irmão de Mariame I), Alexandra (mãe de Mariame I) e Hircano (avô de Mariame I). E foi ainda responsável por outros assassinatos. O seu reinado terminou num banho de sangue.

Um dos problemas supervenientes residia no facto de saber-se se a Judeia continuaria com um único soberano ou se o reino seria dividido. Herodes tinha sido designado rei pelo Senado (por indicação de Marco António) mas tal não significava que Augusto confirmasse a sucessão individual, apesar de sempre ter reconhecido que Herodes era um bom governante da Judeia e fiel a Roma; isso, todavia, não era válido para quem lhe sucedesse.

Não cabe aqui descrever todos os episódios que antecederam a morte de Herodes e que se seguiram ao seu desaparecimento.

Herodes morreu pouco antes da Páscoa Judaica, em 4 AC. O seu funeral foi grandioso, mas logo a seguir estalou uma revolta que foi dominada pelo filho Arquelau, como executor testamentário, com o auxílio das tropas romanas da Síria, comandadas por Varo. A repressão foi brutal e Jerusalém e todo o território mergulharam num caos.

Os sobreviventes filhos “elegíveis” foram a Roma procurar a legitimação por parte de Augusto. Depois de ouvir o seu Conselho, o imperador decidiu-se: não haveria um novo rei. Arquelau foi nomeado etnarca da Judeia, Antipas, tetrarca da Galileia e Filipe, tetrarca da Itureia e Traconítide (a nordeste da Galileia).

Em 41 DC, Agripa I (neto de Herodes e filho do assassinado Aristóbulo) foi nomeado rei da Judeia, governando todo o território.

Muito mais haveria a dizer mas este texto vai já excessivamente longo. Os interessados poderão, e deverão, ler o livro.

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Escrevi, há dias, um texto sobre a homossexualidade na Grécia Antiga. Uma prática comum também em Roma e no Oriente Médio da época, conforme transmitem os textos.

Curiosamente, encontro agora nesta obra, a propósito de Herodes, a seguinte passagem: «A dada altura, pode ter-se apaixonado por um rapaz chamada Hípico, sobre o qual nada mais se sabe. Ele homenageou Hípico, muito mais tarde, erguendo uma magnífica torre na muralha do Palácio de Jerusalém em nome do amigo, “perdido na guerra depois de uma corajosa luta”. As paixões homossexuais entre jovens, admiradas nos círculos sociais gregos, seriam vistas com desconfiança por muitos judeus devotos, mas a designação da torre é, pelo menos, uma prova de que Herodes não tinha pudor quanto à profundidade da sua amizade.» (p. 35)

 


E Martin Goodnam remete-nos em nota para uma passagem das Antiguidades Judaicas, de Flávio Josefo, o grande historiador judeu romano do século I. Resolvi consultar o livro, e transcrevo:

«These predictions were not concealed from Salome, but were told the king; as also how they had perverted some persons about the palace itself. So the king slew such of the Pharisees as were the principally accused, and Bagoas the eunuch, and one Carus, who exceeded all men of that time in comeliness, and one that was his catamite. He slew also all those of his own family who had consented to what the Pharisees foretold.»

(THE WORKS OF JOSEPHUS – The Antiquities of the Jews, XVII, 44)

Ainda sobre a atracção de Herodes por rapazes é também Flavius Josephus que nos recorda na mesma obra a fúria do rei quando soube que os seus belos eunucos mantinham relações sexuais com o seu filho Alexandre:

«There were certain eunuchs which the king had, and on account of their beauty was very fond of them; and the care of bringing him drinking was entrusted to one of them; of bringing him his supper, to another; and of putting him to bed, to the third, who also managed the principal affairs of the government; and there was one told the king that these eunuchs were corrupted by Alexander the king’s son, by great sums of money; and when they were asked whether Alexander had had criminal conversation with them, they confessed it, but said they knew of no farther mischief of his against father;»

(THE WORKS OF JOSEPHUS – The Antiquities of the Jews, XVI, 230-231)

 

Esta atracção de Herodes por rapazes não significa que fosse insensível às mulheres. Casou diversas vezes, como se escreveu, e teve algumas grandes paixões femininas.

Eram assim os costumes no Mundo Antigo. O anátema (não no sentido grego do termo) religioso judaico, depois transmitido ao cristianismo e ao islão, interditou (mas nunca obstou) o exercício de certas práticas, embora nos nossos tempos, e em alguns lugares, elas tenham   deixado de ser cominadas judicialmente, que não socialmente.

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Este livro de Martin Goodman está particularmente bem escrito (e bem traduzido), com uma prosa elegante e acessível, e dá-nos uma imagem cuidada, rigorosa e abrangente da vida e do reinado de Herodes e da situação da Judeia no quadro do Mundo Romano. E recorda-nos também das vulnerabilidades e das paixões dos homens.

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Martin Goodman nasceu em 1953, numa família judaica inglesa, estudou no Trinity College, da Universidade de Oxford, onde se doutorou em 1980 com a tese State and society in Roman Galilee, AD 132-212, e onde é professor de Estudos Judaicos. Em 1996, foi eleito sócio efectivo da Academia Britânica. Entre as muitas obras publicadas, distingue-se Rome and Jerusalem: The Clash of Ancient Civilizations, em 2007.

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