sexta-feira, 25 de agosto de 2023

A ANULAÇÃO DO MATRIMÓNIO DE D. AFONSO VI

Trata este livro, D. Afonso VI (1937), de J.A. Pires de Lima e A.A. Pires de Lima, da anulação do matrimónio de D. Afonso VI com D. Maria Francisca Isabel de Saboia. É uma publicação breve e, segundo os autores, «trata-se apenas da reedição, embora bastante ampliada, de uma conferência pronunciada na Associação Médica Lusitana em 1927 e depois publicada numa revista médica.»

O trabalho reclama-se de intuitos modestos: procurar esclarecer o diagnóstico da moléstia de que sofreu D. Afonso VI e estudar juridicamente a causa da anulação do casamento.

Muito se tem escrito sobre este monarca, do seu reinado em geral e das circunstâncias em que veio a ficar separado da mulher e prisioneiro do irmão. Não julgo que este opúsculo seja uma contribuição decisiva para iluminar definitivamente o caso, mas, já que o encontrei entre velhos livros, tecerei alguns comentários.

Os autores estabelecem um quadro geral e passam depois à matéria mais delicada. Segundo testemunhos da época, D. Afonso teria comportamentos estranhos, por vezes violentos, na sequência de uma enfermidade contraída por volta dos dois ou três anos (meningite ?) e que o teria deixado semi-paralisado do lado direito. Mas não perdera propriamente o tino. O seu casamento com D. Maria Francisca, que lhe fora imposto, foi desde o início um fracasso. O Rei não gostava dela. 

O Processo de Anulação do Matrimónio implicava que D. Maria Francisca estivesse virgem (não consumação do casamento) e que o rei fosse impotente. E assim se fez. D. Afonso VI acamaradava com gente do povo, da qual muitos eram rufiões envolvidos em brigas, que acoitava no Paço. Lembremo-nos da família Conti. Tal gente levava rameiras para satisfação do soberano, que tentava manter com elas, quase sempre infrutiferamente, relações sexuais. Essas mulheres fizeram depoimentos bastante crus para constarem dos autos, uns coincidentes, outros não, mas o essencial ficou escrito. É pacífico afirmar que os órgãos sexuais do rei eram disformes, pénis minúsculo em repouso e de forma estranha quando erecto, testículos de volumes extraordinariamente desiguais; mas enquanto umas negam a existência de qualquer ejaculação, outras afirmam que o rei as teve, embora nem sempre o fizesse no vaso apropriado, por impossibilidade ou por precocidade. Inclinam-se os autores para hidrocele, também em consequência de um golpe que recebera uma vez nas partes genitais. Também é referido que o rei não conseguia desflorar as donzelas que os ditos lhe procuravam, e tinha de pedir a amigos ou criados para realizarem esse serviço para ele depois tentar penetrá-las. 

É evidente que o Processo se encontra enviesado, já que, como seria canónico, devia ter-se procedido ao exame físico dos cônjuges (inspectio corporis), para se concluir da impotência do rei e da virgindade da rainha. O promotor, nas razões finais, alegou que os autos satisfaziam «a quase todos os meios de prova», excepto «os da evidência certa», mas não se atreveu a requerer o exame, invocando o decoro régio e contentando-se com o juramento.

A rainha retirou-se para o convento da Esperança em 21 de Novembro de 1667. Em 23 de Novembro, o infante D. Pedro obteve a proclamação (assinada pelo rei ?) de que fazia desistência do Governo a favor do irmão.

A sentença que decretou a nulidade do matrimónio tem a data de 24 de Março de 1668. No dia 28 a rainha casava com o infante, sendo abençoados pelo bispo de Targa. 

«Ora para a celebração desse casamento, era necessária, além da anulação do matrimónio anterior, a dispensa chamada publicae honestatis, concedida pelo papa, por o novo marido ser irmão do anterior. E claro é que não devia ser pedida a dispensa sem que o casamento estivesse dissolvido, porque ninguém pode, estando ainda preso por um vínculo matrimonial, solicitar dispensa para casar de novo.» (p. 66)

Disse D. Afonso VI que fingiram os breves pontifícios, o que não é verdade porque ninguém teve coragem de falsificar um documento papal. Mas foi forjado um breve pelo cardeal duque de Vendôme, tio e protector da rainha, em 15 de Março de 1667, quando ainda não havia sentença de anulação. 

Os autores explicam a pressa na realização do casamento devido ao facto de D. Maria Francisca se encontrar grávida do infante D. Pedro e do escândalo público que decorreria da exibição dessa gravidez, tendo a rainha feito um juramento de virgindade. E concluem: «As três pessoas reais de quem nos ocupamos têm sido julgadas de maneiras muito diversas. Para nós, todas elas são bem repugnantes; ou digno de piedade só achamos D. Afonso, vítima desgraçada da doença, e da hipocrisia e traição dos políticos.» (p. 73)

Importa ainda dizer que o original do processo desapareceu, bem como a cópia autêntica que dele requereu o Duque de Cadaval, procurador da rainha. Só é possível estudar esta curiosa peça pelas cópias extraídas por alguns coevos.

Concluo, considerando que este opúsculo é confuso, desorganizado, omitindo elementos essenciais e apresentando outros desordenadamente. Não é através dele que se poderá esclarecer quem deseje aprofundar este caso, a todos os títulos lamentável na história do país.


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