domingo, 1 de março de 2020

A MARCHA DE RADETZKY




Comprei, em 1986, A Marcha de Radetzky, de Joseph Roth, creio que no próprio ano da sua edição portuguesa, embora o livro, infelizmente, não mencione a data de publicação. A edição original, com o título Radetzkymarsch, é de 1932. Trata-se de um dos mais importantes romances de Joseph Roth, mas todas as vezes que me propunha lê-lo surgia sempre uma leitura prioritária pelo que o livro foi aguardando a sua vez. Chegou agora o momento desejado.

Autor de vasta obra, Joseph Roth (1894-1939) nasceu em Brody (hoje cidade da Ucrânia mas que à época pertencia ao Império Austro-Húngaro e morreu em Paris, vítima de uma pneumonia (e não como está escrito na contracapa da edição portuguesa que indica que se suicidou quando as tropas nazis entraram em França em 1939. Aliás a invasão alemã foi em 1940). Viveu em Viena, combateu no exército imperial durante a Primeira Guerra Mundial e voltou para Viena, que viria a abandonar em 1933, quando Adolf Hitler se tornou chanceler do Reich, passando a residir em Paris.

Jornalista e romancista, a sua obra mais conhecida é A Marcha de Radetzky, que conta a história de três gerações de uma família austríaca no tempo do imperador Francisco José I [É curioso que tendo havido um só imperador com o nome de Francisco José os monumentos da Áustria em que está gravado o seu nome mencionem habitualmente Francisco José I]. O romance (que é devedor da experiência do próprio Roth, especialmente da época em que esteve no exército) pretende demonstrar a desagregação do Império Austro-Húngaro perante a emergência das nacionalidades que o compunham. Começa com a batalha de Solferino (1859) e termina com o assassinato do arquiduque Francisco Fernando em Sarajevo, o deflagrar da Primeira Guerra Mundial e a morte de Francisco José (1830/1848-1916), com 86 anos de idade. As vicissitudes da família von Trotta, protagonista do livro, ocorrem durante o reinado do imperador. E é através das três gerações dos Trotta que Joseph Roth descreve o fim de um mundo, o dos Habsburgos, e o advento de novos tempos. Este livro, sobre a decadência da "velha" Áustria, recorda-nos outro livro, também célebre, O Mundo de Ontem, de Stefan Zweig, também grande romancista austríaco e também judeu, como Roth (aliás, eram amigos), que se suicidou (este sim, suicidou-se no Brasil em 1942), incapaz de assistir ao avanço das tropas nazis em toda a Europa.

 
Eu, ao lado do túmulo de Francisco José, na Cripta dos Capuchinhos, em Viena


O título do livro refere-se a uma marcha militar célebre em todo o Império Austro-Húngaro, a Marcha de Radetzky, que a famíliaTrotta ouvia tocar todos os domingos sob a sua janela. A Marcha de Radetzky foi composta em 1848, por Johann Strauss, em honra do marechal de campo austríaco Joseph Radetzky von Radetz.

Abaixo, Herbert von Karajan dirigindo a Orquestra Filarmónica de Berlim, no Musikverein, de Viena, no tradicional Concerto de Ano Novo, onde é habitualmente tocada a Marcha de Radetzky.



A tradução do livro é de Maria Adélia Silva Melo e, embora não conheça o original alemão, parece-me fluente e correcta, pela menos até sensivelmente metade da obra. Para o fim afigura-se-me menos precisa, ocorrem vários lapsos tipográficos e até uma descontinuidade de acção entre parágrafos, mas pode ter sido a opção do autor. Já não concordo quando se faz, mais do que uma vez, uma referência à Casa Real Austríaca. A Casa de Áustria era Imperial e não Real. Talvez a confusão (do autor ou do tradutor) decorra do facto de o monarca ser Imperador da Áustria e Rei da Hungria e daí o facto de a Casa de Habsburgo ser Imperial e Real. Quem alude ironicamente a este facto é o escritor austríaco Robert Musil, no seu livro O Homem sem Qualidades, publicado entre 1930 e 1943, e cuja acção se passa em Viena nos últimos anos de Francisco José. É Musil quem apelida a dupla monarquia de Kakânia, devido à abreviação alemã de K und K (kaiserlich und königlish: 'imperial e real'), pretendendo demonstrar a falta de unidade política, administrativa e afectiva que se verificava no país.

A decadência do Império era já manifesta durante o longuíssimo reinado de Francisco José. Aliás, o Império começara a esboroar-se desde que Napoleão Bonaparte derrotara os exércitos de Francisco II, Imperador do Sacro Império Romano Germânico, que se vira forçado a proclamar a sua extinção e a tornar-se Imperador da Áustria, com o nome de Francisco I. Com efeito, Francisco II, Imperador do Sacro Império havia-se proclamado Imperador da Áustria em 1804, antevendo a evolução da situação política na Europa Central. Em 1806, depois da derrota dos seus exércitos na batalha de Austerlitz, Francisco II abdicou do titulo de Imperador do Sacro Império Romano Germânico (entidade que já não fazia sentido) continuando a reinar como Imperador da Áustria. O seu túmulo, na Cripta dos Capuchinhos, menciona "Francisco II (I)".

Além de Joseph Roth, de Stefan Zweig ou de Robert Musil, outros escritores austríacos se referiram à decadência do Império, como Hermann Broch e Karl Kraus.

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