quarta-feira, 20 de novembro de 2019

SATIRICON




Durante muito tempo obra conhecida apenas de privilegiados, Satiricon, de Petrónio, começou a tornar-se famoso depois de um filme realizado em 1951, e que foi um sucesso mundial à época: Quo Vadis, baseado no célebre romance homónimo do polaco Henryk Sienkiewicz, publicado em 1895.

É que uma das personagens de Quo Vadis é precisamente um certo Petronius Arbiter, também designado "Arbiter elegantiarum" (o Árbitro das Elegâncias), supostamente identificado com o autor de Satiricon. Não está provado que o favorito do imperador Nero, posteriormente caído em desgraça, seja o mesmo Petrónio que escreveu o texto de que nos ocupamos, e que descreve a sociedade romana de um tempo que, pelas considerações, se situa necessariamente nos reinados de Tibério, Cláudio, Calígula ou Nero. Tácito, no Livro XVI, capítulo VI, dos Anais, oferece-nos um Petrónio voluptuoso, dedicado aos prazeres e possuidor de um gosto refinado. Pro-cônsul na Bítinia, Cônsul do Império, capaz de grandes empreendimentos, foi um dos principais confidentes de Nero, que nada achava agradável que não merecesse a aprovação do seu favorito. Daí certamente a inveja do seu rival Tigelino, que o denunciou a Nero como conspirador, levando o imperador a prender a maior parte dos seus criados. Petrónio, então ausente de Roma, sabendo-se perdido, suicidou-se abrindo as veias durante um banquete que ofereceu aos seus amigos mais íntimos. É este o Petrónio que Sienkiewicz retratou no Quo Vadis. Aliás, Plínio confirma esta versão, acrescentando que Petrónio, que era celibatário e não receava represálias futuras contra mulher e filhos por parte de Nero, antes de exalar o último suspiro mandara um escravo trazer-lhe um vaso de mirra de grande valor, que o imperador ambicionava, e partira-o aos bocados.

Martin Potter em Encolpio

Além de Tácito e Plínio, também Plutarco se refere brevemente a Petrónio. Tácito chama-o Caius Petronius e Plínio Titus Petronius. É possível que essa figura tenha sido o autor de Satiricon, obra que muitos eruditos consideram ser o panfleto referido por Tácito e entregue depois ao imperador, suposição que, todavia, não resiste à crítica. O Satiricon não é um panfleto mas uma obra gigantesca de que apenas se conhecem fragmentos. O texto correntemente divulgado respeita apenas aos livros XV e XVI, umas duzentas e cinquenta páginas de tipografia actual, quando o romance completo contaria pelo menos duas mil páginas. Trata-se de um romance picaresco, uma "comédia romana", em que três jovens de muito livres costumes, Encolpio, Ascilto e Giton se entregam à depravação e circulam através das diversas classes sociais e das diversas províncias do Império. Jean Dutourd, escritor, membro da Academia Francesa, e autor do prefácio (1960) de uma das edições que mencionamos, escreve: «On ne peut être à la fois grand ministre et grand artiste. Le vrai Petronius Arbiter, auteur du Satiricon, devait être un gros homme négligé, vivant obscurément, point très riche, fils d'affranchi peut-être, citoyen subalterne en tout cas, sans aventures et sans histoire, qui mourut dans son lit (et non dans sa baignoire) vers soixante-cinq ans, après avoir publié une vingtaine de volumes dont la perte est irréparable.» O escritor e igualmente académico Henry de Montherlant, autor do prefácio (1969) da outra edição, evocando também, a propósito, Os Doze Césares, de Suetónio, relata: «Le premier fragment du Satiricon publié en français, la Matrone d'Éphèse, est traduit par un moine, l'an 1475. Et tout de suite on ajoute, on retranche, on interpole, on l'honore d'apocryphes; le titre, qui ne se réfère qu'a la satire, crée une confusion émoustillante. Le banquet de Trimalchion, la matrone d'Éphèse, les trafics maternels de Philomèle, le précepteur de Pergame, le poète lapidé, les fiascos amoureux de Polyaenos devant la belle Circé, les noces de Giton ("environ seize ans") et de Pannychis (sept ans) font les délices du public lettré. Il y a des piqués du Satiricon: le Grand Condé pensionne un lecteur spécialement chargé de le lui lire et relire. L'abbé de Rancé commence de le traduire, de concert avec Bussy-Rabutin: il volte et fonde la Trappe. Je craignais de paraître un peu polisson en goûtant Pétrone. Condé et Rancé, ce sabre et ce goupillon me rassurent: quel sabre! et quel goupillon! Et cela flatte mon patriotisme, que Pétrone ait été natif de Marseille: Sidoine Apollinaire le dit expressément. Ah! c'est bien un bouquin à avoir été écrit avec l'accent du Vieux-Port.»

Hiram Keller em Ascilto

Quem visitar as ruínas romanas de Pompeia e de Herculano, ou o Museu Arqueológico de Nápoles, para onde muitas peças foram deslocadas por uma questão de preservação, encontrará nos frescos cenas semelhantes às descritas no Satiricon. Pierre Larousse escreveu acerca do romance: «Tous les vices de l'époque la plus corrompue sont peints avec une verve et une énergie peu communes: courtisanes, parasites, poètes, gens de loi, esclaves, libertins, magiciennes, déclamateurs, chasseurs d'héritages, toutes ces figures passent successivement devant nous avec la physionomie qui leur est propre et nous reportent au milieu de cette vieille société romaine dont il nous sera difficile, sans des livres de ce genre, de pénetrer complètement les moeurs intimes. Les récits, les réflexions, les images sont non seulement immoraux, mais, le plus souvent, d'une obscénité révoltante; cependant Pétrone sera toujours lu de quiconque voudra connaître à fond l'Antiquité. Ajoutons que, si l'on ne regarde que le style, Pétrone est un écrivain très remarquable.» 
 
Max Born em Giton

É evidente que o crivo moral de Larousse é muito apertado, embora o século XIX em que viveu não fosse tão restrito nos costumes, pelo menos em privado, como se poderá depreender desta sua apreciação da obra. Ela retrata fielmente a sociedade romana do tempo, certamente mais permissiva do que Larousse entendia conveniente, e mesmo mais permissiva do que a sociedade actual, que apesar dos "progressos" alcançados relativamente a alguns costumes, os compensa com novas "restrições", em nome da recente ditadura do "politicamente correcto". O que realmente terá perturbado Larousse foi a naturalidade da prática de relações homossexuais dos jovens, de resto evidente em qualquer livro de história das civilizações clássicas.


Em 1969, o grande cineasta Federico Fellini realizou o seu filme Fellini-Satyricon, a partir de excertos da obra de Petrónio. Com o génio que lhe é reconhecido, Fellini criou uma viagem fabulosa a uma civilização tradicionalmente classificada como "decadente", oferendo-nos cenas de uma beleza visual que nos seduzem e nos chocam. Sobre este extraordinário filme, publicou Dario Zanelli, em 1969, uma volumosa obra, profusamente ilustrada, em que analisa a criação da película, as personagens, as circunstâncias. Obra que inclui também o depoimento do próprio Fellini sobre a construção do filme. Escreve Dario Zanelli: «Il primo film "in costume" di Federico Fellini. La "dolce vita" dell'antica Roma. Il capolavoro di Petronio Arbitro reinventato dalla fantasia dell'autore di Otto e mezzo. Il "viaggio di G. Mastorna" agli Inferi dei tempi di Nerone. Il racconto più pagano del regista riminese. Il più casto. Il più sensuale. Una specie di summa di tutti i classici motivi dell'erotismo: riscattata però dal fren dell'arte. L'opera più distaccata di Fellini. La meno autobiografica. La meno "felliniana". Un viaggio in un'età pre-cristiana (Petronio ignora la predicazione di San Paolo). Un viaggio in un'età post-cristiana.  Un film sull'attesa di Cristo. Un film sull'attesa di un futuro inconoscibile. Un documentario su un mondo sepolto. Un'allegoria del mondo d'oggi.»


Por tudo o que se disse, e mais ainda pelo que não se escreveu, importa ler Satiricon, de Petrónio e ver Satyricon, de Fellini.




2 comentários:

Anónimo disse...

Tendo lido ontem uma noticia sobre uma movimentação feminista pretendendo censurar e condenar quadros do Gauguin actualmente em exposição, dado representarem tahitianas menores com quem terá mantido comércio voluptuoso, temo que hoje Fellini e Petrónio estariam sobre a alçada das autoridades competentes,e as suas obras num futuro próximo seriam senão destruidas (lá chegaremos) mas retiradas do mercado. Perfilam-se para o mesmo destino os quadros do Caravaggio, os livros do Gide, e tutti quanti. De resto Roma e Grécia cheiram a esturro,é melhor esquecê-las. Assim purificaremos as almas e os corpos e vingaremos o pobre Savonarola, precursor maltratado das grandes limpezas actuais. Viva o Grande Inquisidor!

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Caminhamos rapidamente para uma nova Inquisição, se não formal pelo menos parcialmente inorgânica. Da expulsão do maestro James Levine da Ópera de Nova Iorque, ao cancelamento das actuações do cantor Plácido Domingo, às tentativas de proibição do recente filme de Polanski, "J'accuse", às suspeições lançadas sobre milhares de pessoas, especialmente figuras públicas, a sociedade actual encaminha-se, alegremente, para a instauração de um novo totalitarismo, que poderá revelar-se, com o tempo, mais violento do que os totalitarismos nazi e comunista (do tempo de Stalin). Esta onda puritana, apoiada pelas "igrejas" evangélicas, tem os seus maiores entusiastas nos movimentos feministas, protagonizados em grande parte por mulheres velhas, feias e má. Uma desgraça! E para cúmulo, na maioria dos casos, trata-se pura e simplesmente de extorsão de dinheiro.