quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A QUESTÃO ESPANHOLA




Há verdadeiramente uma Questão Espanhola, que periodicamente emerge. Os recentes acontecimentos na Catalunha levam a que, mais uma vez, me debruce sobre o tema. Aquando do referendo para a independência, em 2017, escrevi aquiaqui algumas linhas sobre a situação específica daquele território.

Diferentemente de Portugal, que é um estado-nação desde o século XII, a Espanha só surgiu no princípio do século XVI com o rei Carlos I de Habsburg (Carlos Quinto como imperador do Santo Império), depois da aliança matrimonial de Castela e Aragão e da conquista do reino de Granada. E nunca foi uma nação, mas várias. A vida do Estado espanhol não tem sido fácil. Não cabe aqui proceder à história de Espanha, mas convém recordar que por morte de Carlos II de Habsburg o trono foi parar à Casa de Bourbon com Filipe V; que Fernando VII foi destronado por Napoleão que colocou no lugar o seu irmão José (1808); que reposto Fernando VII de Bourbon no trono, sua filha Isabel II foi deposta (1868). A  coroa foi então oferecida a diversos príncipes e finalmente aceite por Amadeu de Saboia (1870), que por sua vez abdicou em 1873, sendo então proclamada a I República. Os Bourbons foram restaurados em 1874, com Afonso XII, mas o filho deste, Afonso XIII teve de renunciar em 1931, sendo proclamada a II República. Aconteceu depois a Guerra Civil (1936-1939) e a Ditadura de Francisco Franco. Os Bourbons foram restaurados pela terceira vez com Juan Carlos, em 1975, sendo agora rei seu filho Filipe VI. Um percurso verdadeiramente atribulado, que não resultou apenas dos caprichos dos espanhóis mas das diversas ideologias professadas e a que não são alheias as várias nacionalidades existentes. A acrescentar a isto, a agitação social vivida especialmente nos últimos dois séculos e o longo período de terrorismo da ETA, a organização armada que lutou pela independência do País Basco e causou centenas de vítimas. Acerca da heterogeneidade da população é sempre oportuno reler As Duas Espanhas, de Fidelino de Figueiredo, que mencionei aqui

As regiões espanholas possuem idiossincrasias próprias: os castelhanos (que se revêem no Império passado) são diferentes dos catalães (com uma língua e uma cultura distintas) ou dos andaluzes (onde se encontram ainda raízes da sua ascendência árabo-berbere). A Espanha é realmente um mosaico de nações, e não custa a acreditar que uma independência da Catalunha suscitasse logo a vontade de independência do País Basco e de outras regiões autónomas (Galiza, Astúrias, etc.). A actual Constituição da Espanha unificada foi uma solução de compromisso, em 1978 a única possível, mas não resolveu o problema, apenas o adiou.

A forma como o Governo de Madrid tem lidado com as recentes reivindicações catalãs não é de molde a conduzir a uma pacificação, e o problema não é também fácil de resolver. A organização de um referendo, em condições normais e apenas na Catalunha, o que a Constituição não autoriza uma vez que determina que seja efectuado em todo o país, permitiria saber com segurança a percentagem dos catalães que desejam realmente a independência. Mas verificando-se uma vontade expressa relativamente à secessão outras questões surgiriam. A saída da Catalunha do Estado Espanhol implicaria também a saída da União Europeia, o abandono do euro, o estabelecimento de fronteiras com todas as suas consequências e grandes modificações no plano económico. Por outro lado, os defensores da Catalunha histórica pretendem integrar eventualmente no novo Estado não só Valência e as Baleares mas inclusive o Rossilhão, hoje território francês. Além do que desejam um regime republicano e não monárquico, o que inviabiliza a constituição de uma federação ou confederação chefiada por um rei.

A provável independência da Escócia, se o Reino Unido abandonar realmente a União Europeia, é de muito mais fácil resolução. A Coroa britânica aceita o referendo só na Escócia (já houve um que falhou por uns 5% , 2014), os escoceses não usam o euro e é possível que pretendam manter o regime monárquico como o Canadá e a Austrália aceitam por enquanto.

Mesmo durante os períodos pacíficos, existiu sempre um clima de conflito latente entre algumas regiões de Espanha, como ensina a História pretérita, antes e depois da unificação. No caso vertente interessa-nos o depois. Um período de maior sossego aconteceu após a Guerra Civil, que deixou muitas feridas. Para tal, contribuiu também a repressão franquista (a ETA foi uma excepção no sossego) e mais tarde o ingresso na União Europeia. Apesar disso, houve em 1981 uma tentativa militar de golpe de Estado, que fracassou.

Além das tradições, das línguas, dos costumes, concorrem para os desejos de autonomia e independência as assimetrias económicas, as ideologias prevalecentes, a influência religiosa e outros factores não negligenciáveis.

As manifestações na Catalunha têm sido geralmente pacíficas, devendo-se os actos de violência registados a alguns agitadores vindos não se sabe donde. Mas até quando durará este clima?

Ignoro, naturalmente, como tenciona o Governo Espanhol resolver a crise. Ou as crises, se outras se sucederem. Algumas soluções poderão depender da conjuntura europeia e internacional. A União Europeia é contra a secessão mas apoiou a desintegração da Jugoslávia. A coerência europeia nunca foi forte. A partição da Checoslováquia não suscitou reparos e foi tranquilíssima. A anexação da Crimeia motivou apenas leves protestos, e não poderia ser de outra forma. O Brexit, a consumar-se nos moldes previstos, poderá levar à reunificação da Irlanda.

Em qualquer caso, uma desintegração da Espanha terá consequências negativas para Portugal, como facilmente se compreenderá. Aguardemos então o desenrolar da situação.

Sem comentários: