terça-feira, 30 de abril de 2019

ANTÓNIO FERRO E AMÉRICA




Por razões que não vêm ao caso, reli agora Novo Mundo - Mundo Novo, de António Ferro. O livro é uma espécie de diário da viagem que António Ferro efectuou aos Estados Unidos em 1927, enquanto jornalista do "Diário de Notícias".

Nesta obra, com a marca inconfundível do estilo do autor, António Ferro mostra-se moderadamente deslumbrado pelo progresso registado no admirável mundo novo, tece grandes elogios aos avanços da técnica americana, mas não se exime, num exercício de afinada crítica, de emitir irónicos juízos sobre a suposta "superioridade" dos States, um país realmente sem história que vive sobretudo do dinheiro dos negócios para o que os wasps têm natural vocação, da importação de cérebros, da participação nas mais sujas manobras da política internacional.

Nesta altura, António Ferro ainda não era o famoso secretário da Propaganda Nacional de Salazar, verdadeiramente o primeiro ministro da Cultura avant la lettre que em Portugal houve. Por isso, mais solto nas suas apreciações, descrevendo num fresco admirável, que só uma profunda intuição permite, os mais diversos aspectos da sociedade norte-americana, deixando mesmo entrever discretamente as suas tendências pessoais, alguma admiração por certa marginalidade, que deixou bem expressa na sua peça Mar Alto, que tive o privilégio de apresentar no Teatro Primeiro Acto, enquanto seu director, 61 anos depois da sua proibição pela puritana I República, proibição que provocara um manifesto de protesto, assinado por uma dezena de intelectuais e artistas, entre os quais Fernando Pessoa, Raul Brandão, Robles Monteiro, Raul Proença, Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão, João de Barros, Alfredo Cortez, Artur Portela (Pai), Eduardo Malta, Gustavo de Matos Sequeira, etc.

Aquando da viagem de António Ferro, os Estados Unidos não haviam ainda descido tão baixo quanto hoje no lançamento de intervenções armadas por todo o mundo, levando a desgraça a milhões de pessoas. Mas já continham em si o gérmen do mal que António Ferro consegue diplomaticamente discernir nesta descrição de viagem, recheada de elogios embora matizados por uma crítica acutilante de quem sabe que uma verdadeira civilização se distingue mais pelo espírito do que pela efemeridade dos bens de consumo, do que pelo ciclo infernal de produzir para consumir e consumir para produzir.


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