sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

O EXÍLIO DE SALIM BACHI



O escritor argelino Salim Bachi, a residir em França, publicou recentemente L'exil d'Ovide, obra de que tive conhecimento através de uma recensão crítica. Como lera na minha juventude um livro que me marcou profundamente, Deus nasceu no exílio, do escritor romeno Vintila Horia (1915-1992), que obteve o Prémio Goncourt em 1960 (numa época em que este prémio ainda tinha algum significado) e que tratava exactamente do exílio do poeta romano, decidi encomendar a obra.


Devo confessar que ao lê-la, experimentei uma certa desilusão. É que Salim Bachi utiliza o exílio de Ovídio como pretexto para nos testemunhar quanto ele se sente também exilado, em França, país que o acolheu quando saído da sua terra natal, e na Argélia, das vezes que lá regressa e onde se considera um estrangeiro. Não viria grande mal ao mundo se o livro tivesse a profundidade da obra de Vintila Horia. Mas não tem.

O autor expressa o sentimento doloroso do exílio experimentado por Ovídio quando, por ordem de Augusto, foi desterrado para Tomis (a actual Constança, na Roménia), nas margens do Mar Negro, em 8 EC. Não são verdadeiramente conhecidas as razões do banimento, mas suspeita-se que estejam relacionadas com uma possível ligação do poeta a Júlia, a filha do imperador, ou a alguns dos textos do autor de Metamorfoses que Augusto considerasse imorais, num tempo em que este pretendia restabelecer as virtudes familiares e impor uma restrição à liberdade dos costumes em Roma.

É certo que Ovídio foi autorizado a levar para Tomis os seus bens e os seus escravos, e manteve no exílio uma confortável existência material, mas deixarar em Roma a mulher e os amigos e passou os restantes dez anos da sua vida, em que escreveu os Tristes e os Pônticos, quiçá amargurado pela solidão e pelo afastamento da pátria. E, morrendo depois de Augusto, nem mesmo o seu corpo, segundo determinação imperial, pôde regressar a Roma para ser inumado.

Esclarece-nos Bachi que para a austeridade moral de Augusto, e isso ajuda-nos a compreender a desgraça de Ovídio, pudesse ter contribuído uma progressiva dissolução dos costumes de que é um exemplo o grande escândalo que abalou Roma em 61 AC, por ocasião da festa da "Bona Dea". Esta festa, exclusivamente reservada a mulheres, era um pretexto para práticas sáficas que a cidade não ignorava mas a que fechava os olhos, enquanto não dessem motivo a especiais reparos.

Aconteceu que na festa então dada em casa de Júlio César por sua mulher Pompeia, Publius Clodius, suposto amante desta, resolveu travestir-se de tocadora de lira para a encontrar. Como ainda era imberbe, pensou enganar as convivas mas a voz acabou por traí-lo e foi desmascarado. Cícero comentou amplamente o caso e Júlio César entendeu repudiar Pompeia, pois a mulher de César deveria estar acima de qualquer suspeita, uma máxima que passou à posteridade.

À boleia do exílio de Ovídio, e do seu próprio, Salim Bachi evoca depois outros escritores exilados: James Joyce, Stefan Zweig, Thomas Mann, Fernando Pessoa, Hermann Broch (que escreveu A Morte de Virgílio, esse outro famoso poeta romano), Alfred Döblin. A propósito das viagens dos exilados, Bachi cita Sciascia (aliás é pródigo em citações): «J'étais parti sans rien comme le préconisait Sciascia, l'écrivain sicilian que plus personne ne lit à présent: "Voyager juste, c'est ne connaître personne dans les lieux où l'on va, ou fort peu de gens; n'avoir ni lettre de recommandation  à remettre ni rendez-vous auxquels se rendre; n'avoir d'engagements qu'avec soi, pour voir sans hâte les choses - d'une région, d'une ville - que nous avons désiré voir et qui d'ordinaire ne sont pas légion. Je parle aussi pour moi."» Salim Bachi não refere donde retirou a citação mas afirma, e isso não é verdade, que hoje já ninguém lê Leonardo Sciascia.

De Joyce, realça que o escritor deixou Dublin em 9 de Outubro de 1904, para não mais regressar, salvo episodicamente. E assinala que Joyce detestava a Itália, e que encontrou uma pátria provisória em Trieste, antes de viver em Paris, e finalmente em Zurich, onde morreu. Mas que, ao contrário de Ovídio, não abandonou tudo ao deixar a pátria, pois pôde levar consigo Nora, a sua companheira.

Pelo meio da narrativa, Bachi vai aludindo à Villa Médicis, de Roma, onde esteve como pensionista. E aproveita para dizer mal da Piazza di Spagna e da Piazza Navona. Mas parece que gostou da Piazza della Rotonda, da fonte de Giacomo Della Porta e do Panteão. Para evitar os colegas da Villa Médicis, vai almoçar na Via del Babuino, ou na Piazza del Popolo (e não Populo, mas Bachi engana-se muitas vezes na ortografia). 

Sobre Pessoa, Bachi, que conhece Lisboa, fala de Vasco da Gama e do seu piloto Ahmed Ibn Majid, sem o qual o navegador não teria chegado à Índia. Perde-se no dédalo das ruas e tenta reconstituir o trajecto de Pessoa entre a Rua Coelho da Rocha (e não Coehlo!!!) e os cafés Martinho da Arcada e A Brasileira. Do 3º andar que alugou na Calçada do Garcia ("à deux pas de la place Dom Pedro V", o que é mentira, a calçada é bem longe da praça), Bachi compara Pessoa a Cavafy, e aqui está certo, eu mesmo já referi em público e em privado essa extraordinária semelhança. E no grande café da Praça do Comércio, evoca com os empregados a figura de Pessoa, que aqueles já esqueceram, e a de Saramago, essa bem presente, (como se Saramago, que conheci e com quem privei alguns anos, fosse um frequentador de cafés!!!). Salim Bachi deveria melhor documentar-se antes de escrever disparates. Também não se afigura que Pessoa, embora tenha passado a infância na África do Sul, se possa considerar um exilado em Lisboa. O autor de Mensagem será um exilado, mas um exilado do Mundo. E nem as referências a Bréchon e a Tabucchi conseguem confirmar a sua tese. Nem mesmo o rápido mergulho no Livro do Desassossego.

No que a Thomas Mann respeita, Bachi não sabe se o exílio lhe foi feliz, mas entende que foi fecundo, por lhe ter permitido escrever o Doutor Fausto. Considera também célebre o irmão, Heinrich Mann, mas opina que o filho, Klaus, foi um escritor menor, devorado pelo álcool, ainda que ignore a sua homossexualidade. Como também, relativamente a Thomas, além do romance já mencionado, cita A Montanha Mágica e Os Buddenbrooks (e não Buddenbroks!!!), mas omite A Morte em Veneza, o que suscita a questão do autor ter algum problema mal resolvido em relação à homossexualidade. De resto, ignora também Erika Mann, a irmã de Klaus!

Sobre Stefan Zweig, acha que Thomas Mann o considerava um autor de segunda ordem, do qual até teria inveja, atendendo ao espantoso e súbito sucesso dos seus livros, obras breves, como Vinte e quatro horas na vida de uma mulher ou A Confusão de sentimentos. Recorda, e ainda bem, O Mundo de Ontem, seu verdadeiro testamento literário e uma evocação da Mitteleuropa. Zweig, esse austríaco que a ascensão de Hitler ao poder o levaria a deixar Viena, correu mundo e acabaria por fixar-se no Brasil, onde se suicidou.

Não sei a que propósito figura García Lorca nesta galeria de exilados, a não ser porque Salim Bachi passou algum tempo na Andaluzia. Mas Lorca, que viajou, inclusive aos Estados Unidos, nunca se considerou um exilado. Nasceu e morreu em Espanha, que era para si não um lugar estrangeiro ou de adopção mas a sua verdadeira pátria. É claro que a referência a Lorca permite a Bachi lembrar o passado mourisco de Espanha, discorrer sobre Córdova e Granada, desfeitear os Reis Católicos e Carlos Quinto.

Como escrevi acima, Salim Bachi sente-se exilado em França e na Argélia, é feliz em Espanha, em Portugal, em Marrocos ou na Grécia, mas esse equilíbrio precário, incessantemente ameaçado, é destruído quando regressa a Paris.

Não conheço os outros livros de Salim Bachi, mas fico com a impressão de que o presente livro, mais do que uma obra literária é um desabafo do autor, que convocou para o efeito, a pretexto de Ovídio, alguns dos grandes exilados da literatura universal.


3 comentários:

Anónimo disse...

Depois da leitura desta crónica,fica-se com a impressão que o autor do blog andou,como diz o povo,a "gastar cera com ruim defunto". De facto,as confusões e erros óbvios do escritor fazem duvidar que mereça mais que um bocejo e o rápido esquecimento.Mistura viagens com exilios(Lorca) e asneia incompreensivelmente com Pessoa.Talvez ache que a verdadeira pátria do Poeta é a África do Sul,onde de facto fez o liceu,mas pela qual não se conhece nenhum particular desvelo. Ao menos essa referência serve para uma excelente observação do bloguista,caracterizando Pessoa como exilado do mundo,o que é certeiro.Agora que o tema Literatura e exilio,ou até Arte e exilio é um tema de grande interesse,não há dúvida,mas suponho que já deva ter sido tratado mais competentemente por outros autores.Becket,de quem não se falou,viveu e julgo que morreu em Paris sem desgosto do afastamento da Irlanda natal,como o Joyce ou o Wilde,viajantes sem obsessões de regresso à pátria.Domenico Scarlatti viveu em Portugal e morreu em Espanha sem particulares saudades da sua Nápoles natal.Ovidio sim,é um verdadeiro exilado,como Mann,Zweig,Einstein,Freud,ou Bruno Walter,foragidos da monstruosidade que se abateu sobre o su país natal. Mas o tema do exilio é sem dúvida fecundo, e merece outro tratamento.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Pois, como escrevi, pensei que o livro tratasse o autor de "A Arte de Amar", como o fez Vintila Horia no inesquecível "Deus Morreu no Exílio". Mas não, o livro é pretexto para umas divagações de Salim Bachi, mais sobre si mesmo do que propriamente sobre Ovídio, metendo, pelo meio, outros escritores exilados, ou não tanto.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Aliás, "Deus Nasceu no Exílio"!!!