quinta-feira, 19 de abril de 2018

UMA SABEDORIA ALEGRE




Acabou de ser publicado o livro Un savoir gai, de William Marx, escritor francês, ensaísta, historiador e professor da Universidade de Paris-Nanterre. Gai e não Gay, o que traduz ab initio uma opção do autor.

Trata-se de uma obra singular, em que a questão da sexualidade, particularmente da homossexualidade, é abordada de uma forma tão distinta da maneira como é habitualmente tratada que faz deste livro um espécime raro, para não dizer único, na ficção/ensaio dedicada à homossexualidade.

Transcrevo um parágrafo do Preâmbulo: «Abécédaire, dictionnaire, encyclopédie, ce livre n'est pas ce qu'il paraît: il peut se lire dans tous les sens, par tous les bouts, et veut surtout être complété par chacun, qui y apportera ses propres références, ses propres expériences. Il n'y sera pas seulement question d'amour, de drague, de fantasmes, de pornographie et de taille du pénis, mais aussi de Vélasquez, Kant, Proust, Oshima et Cat Stevens, des chauffeurs de taxi, des colonies de vacances, du mariage pour tous, d'algèbre et de la longévité des chats et des baleines bleues. De la vie érotique de Jésus, également. Et de la vie tout court.» (p. 13)

O autor entendeu desenvolver o texto utilizando a forma de um diálogo com o leitor, colocando-nos como interlocutor privilegiado. O que nos obriga a reflectir com maior acuidade sobre os temas abordados, especialmente sobre os mais polémicos e susceptíveis de não gerarem consenso. Ao longo de pouco mais do que 150 páginas (33 entradas), William Marx aborda as questões cruciais com as quais são confrontados os homossexuais (e também, pour cause, os heterossexuais) no decorrer da vida, contemplando atentamente as alterações verificadas em matéria de sexo (e afectividade) nas últimas décadas. Não subscrevo integralmente todas as afirmações (ou sugestões, ou propostas) do autor, mas confesso que este livro constitui uma contribuição excepcional para o estudo do objecto proposto.

Na entrada "Altérité" escreve: «Le même constat s'impose également, mutatis mutandis, dans les politiques de discrimination positive fondées sur la différence des sexes: les diverses lois sur la parité dans les institutions, si bénéfiques qu'elles puissent être à maints égards, te paraissent souvent n'avoir qu'un effet d'affichage facile (quoi de plus visible que la distinction d'un homme et d'une femme?) sans toucher véritablement au fonds du problème, c'est-à-dire à l'uniformité persistante des origines et des vécus de celles et de ceux qui administrent, décident et gouvernent. Pour dire les choses de façon plus critique encore, il arrive que l'exigence de parité ne soit que le cache-sexe du maintien des inégalités existantes: tu n'est pas persuadé qu'une femme bourgeoise blanche hétérosexuelle apporte un point de vue fondamentalement différent de sa contrepartie masculine. On attendrait plus aisément à la diversité nécessaire en relativisant ou en pondérant par d'autres critéres celui de la différence  des sexes, qui n'est sans doute pas le plus pertinent ni le plus apte à obtenir la pluralité recherchée.» (p. 19). Muito oportuna observação do autor. De facto, já todos sabíamos que as quotas nos governos, nos parlamentos e em outras instituições são uma falácia do politicamente correcto! E parece que em Portugal, agora, se volta a insistir neste tema, com os resultados desastrosos que se aguardam.

Curiosa a referência ao Gabinete Secreto do Museu Arqueológico de Nápoles [que tive o prazer de visitar há alguns anos]  e às peças nele exibidas e que, durante longo tempo, estiveram ocultas aos olhos do público. A propósito, o autor tece interessantes considerações a propósito do célebre quadro de Vélasquez, "A Forja de Vulcano", exposto no Museu do Prado, em Madrid, em que o pintor transgride todos os códigos da época, ao representar os ferreiros suficientemente despidos para atraírem olhares nada inocentes dos apreciadores da nudez masculina.

A entrada "Évangile" proporciona a William Marx pertinentes reflexões. Uma delas respeita à crise de vocações sacerdotais. Impossível não transcrever o respectivo parágrafo: «Dans une société ou un milieu qui ne tolèrent pas le désir gai, le célibat consacré, avec tout le discours valorisant qui l'accompagne traditionnellement, peut apparaître  comme une solution admissible. Au moins un tiers des prêtres catholiques et des religieux consacrés seraient des gais plus ou moins refoulés. En ce domaine, les enquêtes sont difficiles, mais les chiffres n'ont rien d'improbable. Probable aussi le fait que, dans les pays occidentaux, la crise des vocations dont souffre l'Église catholique soit directement liée à la plus grande tolérance dont jouit désormai dans ces mêmes pays l'existence gaie assumée comme telle: nul besoin de prononcer des voeux si l'objet véritable du désir est connu, acceptable et accessible. Le mouvement de libération gaie a vidé le réservoir de frustration et de refoulement où l'Église aimait à puiser une bonne partie de son clergé.» (p. 71)

Recordo, a propósito, o que me dizia, há uns bons quarenta anos, em Paris, em casa do Manuel Cargaleiro (no Quai des Grands Augustins), um amigo meu que então estudava na Sorbonne: os homossexuais têm apenas três vias profissionais, a carreira militar, a carreira docente ou a carreira eclesiástica. A evolução da sociedade encarregou-se de baralhar os dados. Na carreira militar passou a haver mulheres (lembro-me do general Lemos Ferreira, então CEMGFA, num Coffe break no Instituto da Defesa Nacional, me dizer que enquanto ele chefiasse as Forças Armadas as mulheres nunca seriam admitidas como operacionais, sendo confinadas a secretárias, enfermeiras, etc.), o que reduziu substancialmente as virtudes de tal opção. Na carreira docente, agora com turmas mistas em todos os graus de ensino, e com o espectro do assédio sexual, as possibilidades de êxito estão drasticamente reduzidas. Na carreira eclesiástica, os casos relatados nos últimos anos e a advertência papal de que as pessoas com (simples) inclinações homossexuais seriam excluídas do acesso ao sacerdócio, o problema tornou-se idêntico.

Um excerto da entrada "Étrangement": «Ailleurs, c'est le refus de jouer la mascarade hétérosexuel qui s'impose au héros: "Le dimanche des homosexuels est toujours lugubre. Car ils s'aperçoivent alors que le monde du jour, qui n'est pas leur domaine, règne sans réserve. Où qu'ils aillent, au théâtre, au café, au zoo, dans un parc d'attractions, dans un quartier quelconque de la ville, en banlieue, partout c'est le principe de la majorité qui avance triomphalement. C'était une procession de couples, vieux, entre deux âges, jeunes, amants, de familles, et d'enfants, d'enfants, d'enfants, d'enfants, d'enfants et, pour couronner le tout, de ces maudites poussettes! C'était un défilé qui avançait sous les vivats. Il aurait été très facile pour Yûichi de les imiter en se promenant en compagnie de Yasuko [son épouse]. Mais quelque part au-dessus de sa tête l'oeil de Dieu le surveillait dans le ciel limpide: les faux seront nécessairement découverts.* (p. 68)

 * Yukio Mishima, Les amours interdites

Na entrada "Évangile", o autor interroga-se sobre a sexualidade de Jesus e sobre o sistema sexual proposto pelo Evangelho, que escapa a todas as normas estabelecidas. «Le message central est d'abord celui du refus de la sexualité pour se consacrer à Dieu seul. Quand d'autres religions, le judaïsme et l'islam, promeuvent la procréation comme une poursuite de l'oeuvre de la Création et un hommage au Créateur, le message évangélique primitif se veut infinement plus radical et difficile à entendre: il exhorte à ne pas procréer et à se faire eunuque pour le Royaume des Cieux*. Les mouvements chrétiens dits de défense de la famille n'en ont évidemment cure: les textes évangéliques sont de peu de poids face à l'idéologie haineuse et réactionnaire qui les anime.» (pp.72-3)

* Mateus, XIX, 10-12

Entre outras pertinentes considerações, como o facto do discípulo amado (João) repousar a sua cabeça no seio de Jesus, William Marx manifesta a sua perplexidade sobre esta passagem do Evangelho de Marcos (XIV, 51-52), que transcrevo da tradução portuguesa de Frederico Lourenço: "Um certo jovem seguia-o envolto apenas num lençol por cima da nudez. Prenderam-no, mas ele, deixando o lençol, fugiu nu." (p. 74) Dispenso-me de comentários sobre as observações do autor sobre esta e outras passagens do Evangelho de Marcos, que não cabem neste espaço, mas não prescindo de referir a existência de um Evangelho secreto de Marcos, que, segundo Clemente de Alexandria, seria destinado apenas aos iniciados (Morton Smith, Clement of Alexandria and a Secret Gospel of Mark). Este manuscrito de Clemente, descoberto em 1958 pelo universitário norte-americano no Mosteiro de São Saba, vinte quilómetros a sul de Jerusalém, desapareceu curiosamente alguns anos depois de Smith o ter revelado ao mundo. Apesar das inúmeras referências homossexualizantes nos textos evangélicos, Dan Brown entregou-se posteriormente a uma grosseira manobra de diversão, publicando em 2003 o Da Vinci Code, onde atribui a Jesus uma relação amorosa com Maria Madalena.

Na entrada "Pédophilie", o autor desfaz a confusão que (intencionalmente) se estabeleceu entre pedofilia e homossexualidade masculina, salientando que pode haver pedofilia com homossexualidade feminina, e que uma parte substancial dos casos de pedofilia é praticada a nível heterossexual. Refere expressamente a frenética caça aos "pedófilos" desencadeada a partir de fins dos anos 90 pelos media, pelos governos e por certas instituições mais ou menos respeitáveis, em reacção a actos criminosos de repercussão mundial. Examina a propositada identificação de pedofilia e pederastia (termo grego de contornos bem definidos) e explica a situação a que se chegou hoje: «On confond sous le terme de pédophile trois types de personnes, trois types de comportements fondamentalement différents. Il y a d'abord ceux, de très loin les plus nombreux, qui se contentent de fantasmes sexuels faisant intervenir des enfants et ne passent jamais à l'acte: ils ne sont ni plus ni moins innocents et inoffensifs que  ceux qui rêvent de coucher avec des licornes, de sucer des zombies et d'enculer des dragons. Laissons-les tranquilles ou bien n'envoyons à leur poursuite que la brigade de protection des êtres chimériques. Il y a ensuite ceux qui passent à l'acte avec des enfants réels, lors de contacts sexuels plus ou moins poussés, plus ou moins sollicités ou forcés. Il y a enfin ceux, rarissimes, qui torturent et assassinent des enfants: ceux-là mériteraient plutôt d'être appelés pédophobes que pédophiles. Seules les deux dernières catégories, naturellement, devraient être justiciables de sanctions pénales et d'un contrôle social.» (pp. 125-6)

Na entrada Prostitution", William Marx discorre sobre a mais antiga profissão do mundo. E indigna-se quanto à criminalização quer das prostitutas (parece que a legislação não abrange os prostitutos), quer dos seus clientes. E propõe uma séria discussão sobre o assunto. Escreve: «Or, si tout peut être commercialisé sauf la sexualité, même entre deux adultes consentants, c'est qu'il y aurait en elle ce qu'il faut bien appeler du sacré. Libre à chacun de le croire, mais est-ce à une république laïque de s'en faire l'apôtre? Jusqu'à nouvel ordre, un péché n'est pas un crime. "Oui, te dira-t-on, mais on n'a pas le droit de vendre son corps." Nuance: les prostitués, hommes et femmes, ne vendent pas leur corps; ils vendent un service rendu avec leur corps. Ce n'est pas la même chose. Les acteurs, les danseurs, les sportifs en font autant, de même que les déménageurs ou les ouvriers du bâtiment, chacun selon les modalités propres. Cela peut aller jusqu'au sacrifice de la santé, voire de la vie: ainsi des cascadeurs, ainsi des militaires. Sera-t-il permis de gagner de l'argent en faisant la guerre, mais pas l'amour? "Oui, mais les femmes prostituées ne sont pas libres de leurs actes." Sont-elles plus aliénnées que ces femmes de ménage qui vont tous les jours à quatre heures du matin nettoyer les bureaux des grandes entreprises?» (p. 133)

Continuando: «Où s'arrêtera le processus? Si la prostitution est interdite, la pornographie doit l'être également, ainsi que la nudité sur les affiches, dans les livres, les médias et les expositions: acteurs et mannequins ne font pas moindre commerce de ce corps désormais légalement sacralisé. Une nouvelle brigade des moeurs prendra au piège les clients potentiels par des offres trompeuses d'amours tarifées. Voilà donc déjà la police entrée dans les chambres et les têtes, au mépris des valeurs fondamentales de la République et de la démocratie. Pour en arriver là, quels prêtres ou quels imams as-tu donc sans le savoir élus au Parlement?» (pp. 133-4)

Ao longo das 33 entradas deste precioso livro, muitas são as questões debatidas mas não permite o espaço alongarmo-nos sobre todos os temas. O que fica é por si demonstrativo da imprescindibilidade da leitura da obra, que vivamente se recomenda a todos os interessados na matéria.

Concluo, com a transcrição dos dois últimos parágrafos:

«Zeus passa par mille aventures charnelles: Io, Europe, Alcmène, Ganymède. Il s'ingéra dans les affaires des Grecs et des Troyens. Il s'efforça de faire régner la justice sur le champ de bataille, alors même qu'il éprouvait un faible pour les défenseurs de Troie. Puis il fit encore plus d'efforts, se spiritualisa toujours davantage, devint le dieu des philosophes, de Platon, Aristote, Cléanthe, Plotin, le moteur immuable de l'univers, le garant de la loi universelle, l'auteur de toute concorde, sans désir (puisque la divinité ne saurait rien désirer), mais non sans cette force qui, dans la vision ultime du Paradis de Dante, "meut le soleil et les autres étoiles". (pp. 164-5)

«Au- delà du désir reste peut-être, forgé et initié par lui, mais devenu désormais autonome et volant de ses propres ailes, aveugle mais déterminé, nu mais bardé de flèches, jeune quoique sans âge, celui qui tu n'oses nommer qu'en tremblant, lui qui selon Virgile, triomphe de tout et survit aussi, espères-tu, au désir lui-même: l'amour.» (p. 165)



1 comentário:

Anónimo disse...

Pela descrição presume-se que este livro deverá ser bastante interessante.