sexta-feira, 25 de março de 2016

O "ESTRANGEIRO" VISTO POR UM ÁRABE




Li pela primeira vez L'Étranger (1942), de Albert Camus, na magnífica tradução de António Quadros (Livros do Brasil, 1964), nos finais dos anos sessenta. O romance foi prefaciado por Jean-Paul Sartre, então o papa das letras francesas e ocidentais, e  alguns aspectos do livro marcaram-me indelevelmente. Considero L'Étranger uma das mais notáveis obras de ficção de Camus, a par de La Peste e de La Chute, e o escritor, justamente considerado um dos expoentes da literatura francesa da época, haveria de receber o Prémio Nobel da Literatura em 1957, ainda antes do próprio Sartre, a quem o galardão só seria atribuído em 1964 e que, talvez pelo "atraso na concessão", o recusaria.

Este romance de Albert Camus foi transposto para o cinema por Luchino Visconti (Lo straniero, 1967), mas o filme não conseguiu atingir o nível da maioria das outras obras do imortal realizador de Il Gattopardo.

Importa relembrar aqui que a segunda parte do livro gira à volta do assassinato de um jovem árabe numa praia de Argel (local onde decorre a acção), por Mersault, o protagonista da obra.

A propósito deste homicídio, descrito segundo a visão de um escritor francês pied-noir, ainda que profundamente anti-colonialista, foi publicado em princípio do ano passado (mas só agora tive tempo para lê-lo) um livro que retoma, em perspectiva diversa da abordada por Camus, o tema do romance. É seu autor Kamel Daoud (n. 1970), jornalista argelino, e a obra, intitulada Mersault, contre-enquête, foi finalista do Prémio Goncourt 2014 e recebeu em 2015 o Prémio Goncourt do primeiro romance.

Houve quem considerasse este livro um ataque ao livro de Camus, mas a intenção do autor foi mais uma tentativa de "iluminar" a narrativa de L'Étranger do que desferir uma crítica "argelina" à celebrada obra. Sabemos que Camus, publicou  nesse mesmo ano Le Mythe de Sisyphe, que subintitulou "Ensaio sobre o absurdo",  em que de alguma forma pretendeu esclarecer o "absurdo" do romance, onde avulta o homicídio do jovem árabe.

A propósito, Jean-Paul Sartre escreve no Prefácio: «O homem absurdo não se suicidará: quer viver, sem abdicar nenhuma das suas certezas, sem dia seguinte, sem esperança, sem ilusões, e também sem resignação. O homem absurdo afirma-se na revolta. Fixa a morte com uma atenção apaixonada e esta fascinação liberta-o: conhece a "divina disponibilidade" do condenado à morte. Tudo é permitido, visto que Deus não existe e visto que se morre.» (p. 12, edição "Livros do Brasil")

O início de Mersault começa com a indignação do irmão sobrevivente, Haroun, pelo facto de Camus não referir sequer o nome do morto, Moussa, ou o destino do seu cadáver. Haroun refere-se a Moussa como Zoudj, o seu gémeo, absurdamente morto às 14 horas desse mês de Verão de 1942. E será essa dor que o levará a matar um francês, Joseph, que se acolhera na casa hoje ocupada por Haroun e sua mãe e que pertencera aos patrões desta, entretanto fugidos para França antes da independência da Argélia. Haroun será julgado e condenado porque matou um francês depois da independência, pois se fora antes isso seria considerado luta da libertação. E contribuirá também para essa condenação o facto de, durante a guerra, não se ter junto às milícias que combatiam os franceses, tal como o próprio Mersault teria como agravante da sua condenação o facto de não ter chorado no funeral da mãe...

Ao longo do livro, Kamel Daoud debruça-se várias vezes sobre a religião, não só a muçulmana mas todas as religiões, condenando-as em bloco. Este facto valeu-lhe uma fatwa do imam salafista  Abdelfattah Hamadache Zeraoui, que exigiu publicamente a sua morte. Daoud apresentou queixa perante a justiça argelina, tendo o imam sido conenado a seis meses de prisão e a uma indemnização de cerca de 450 euros.

Não cabe aqui explorar toda as facetas do livro de Kamel Daoud, incompreensível para quem não conheça L'Étranger de Camus, embora se afigure que o seu texto é demasiado extenso para a mensagem que o autor pretende transmitir. Poderia dizer-se que em L'Étranger a concisão de Camus é exemplar, enquanto Mersault de Daoud, querendo tocar sucessivamente várias  teclas, acaba por mergulhar o leitor em aspectos que de alguma forma deveriam ser marginais relativamente ao núcleo da obra. No entanto, não deixa de ser interessante que, mais de 60 anos após a publicação de L'Étranger, surja alguém, um argelino (necessarimente) pretendendo fornecer uma visão dos factos (da ficção) através de um inquérito (aqui entra Meriem, que o leitor averiguará quem é ao ler o livro) que à primeira vista parece condenar o romance camusiano.


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