terça-feira, 8 de março de 2016

JUAN GOYTISOLO (MEMÓRIAS)



Juan Goytisolo é um dos maiores escritores espanhóis da segunda metade do século XX. Nascido em Barcelona, em 5 de Janeiro de 1931, viveu os anos finais da República e a instauração do regime de Franco, o qual combateu não só pela palavra, a arma mais ao seu alcance, como pela luta política, que lhe valeu ostracismo e perseguições.

Em 2014, foi galardoado com o Prémio Cervantes, a mais alta distinção literária para escritores de língua espanhola, que recebeu em 23 de Abril de 2015, em cerimónia solene presidida pelos reis de Espanha, como referi aqui.

Vem isto a propósito da releitura (ou, mais propriamente, da leitura) de duas das suas obras, que podemos considerar como "memórias", Coto vedado (1985) e En los reinos de taifa (1986), que li parcialmente no original castelhano pouco tempo após a sua publicação, e a que agora regressei, na tradução francesa, para uma mais consistente reflexão sobre o texto.


É, pois, a tradução dessas obras, intituladas em francês, respectivamente,  Chasse gardée (1987) e Les royaumes déchirés (1988), que aqui comentarei.

Inicia-se o primeiro volume com o começo da vida de Juan Goytisolo, diria mesmo antes do começo, já que o autor mergulha nas suas raízes familiares e traça o retrato dos seus antepassados. Segue-se a infância, a adolescência, a transição para a idade adulta, período assinalado pelos terríveis acontecimentos que sacudiram a Espanha, e em particular a Catalunha, e pela morte da mãe aquando de um bombardeamento durante a guerra civil, episódio que o marcou para o resto da vida. As difíceis relações com o pai, o clima intelectual asfixiante da Espanha franquista e outras circunstâncias que esta nota não comporta, levaram-no a outros países, designadamente a França, ainda então o farol das luzes que iluminavam culturalmente o mundo. Aí passou a residir e aí encontrou Monique Lange, escritora e editora na prestigiada Gallimard, com quem acabaria por casar. A vida em Paris permitiu-lhe o convívio com nomes cimeiros das letras francesas da época, em especial com Jean Genet, personagem que o marcou profundamente.


A sua aproximação ao comunismo, que foi regra nos intelectuais europeus desse período, sofreria um rude golpe com a intervenção soviética na Hungria e com a opressão do regime castrista, não obstante a sua grande e reiterada admiração por Cuba.

A grande revelação destas "memórias" (se tal constitui propriamente uma revelação), é a forma como Goytisolo assume publicamente a sua homossexualidade, latente desde a adolescência mas cuja concretização física apenas teria lugar em Paris, com um jovem imigrante árabe, quando o escritor já vivia com Monique Lange, aliás mulher de grande sensibilidade e um espírito aberto à evolução das orientações sexuais.

A preferência de Goytisolo pelos árabes, talvez influenciada desde tenra idade pelo convívio com os seus compatriotas andaluzes (não foi em vão que a civilização islâmica floresceu durante séculos em Córdova e em Granada) levou-o a privilegiar o convívio com os magrebinos, que passaram a integrar o universo erótico do escritor. Depois da morte de Monique Lange, em 1996, Goytisolo fixou-se definitivamente em Marraquexe, cidade que elegeu para passar o resto dos seus dias, na senda de visitantes ilustres como Genet, Gide, Montherlant, Barthes, Foucault - para citar apenas alguns dos maiores vultos do pensamento francês do século XX - que encontraram no Norte de África a inspiração para a alma e o alimento para o corpo, suplemento vital que se viria a reflectir nas suas obras.

A leitura, desta vez mais atenta, dos dois volumes de "memórias", suscitou-me algumas reflexões e permite-me extrair umas breves conclusões:

- A evocação dos episódios que Goytisolo descreve nestas obras é descrita com uma abundância de pormenores que transcende em muito não só o que convém a uma autobiografia como o próprio enquadramento essencial em que os factos ocorreram. A minúcia extrema que Goytisolo exibe - e para a qual teve de recorrer aos diários de Monique Lange, que tudo anotava nos seus cadernos - torna por vezes a leitura fastidiosa e confunde os acontecimentos essenciais com os meramente acidentais;

- A fixação na ditadura franquista, um período inegavelmente complexo da história de Espanha, mas que parte significativa dos espanhóis apoiou activa e passivamente (deve ler-se, sobre os sentimentos contraditórios do povo vizinho, o livro As Duas Espanhas, de Fidelino de Figueiredo, publicado em 1932), tornou-se de tal forma obsessiva em Goytisolo que o leva de alguma forma não só a "amenizar" as atrocidades cometidas pelo campo republicano como a ignorar uma renovação certamente lenta e penosa, mas real, da Espanha durante o governo do Caudillo, especialmente nos últimos anos de vida do ditador;

- Estas "memórias" constituem também uma tentativa, aliás desnecessária, de justificação da sua trajectória política, dos seus comportamentos sociais, das suas aventuras sexuais, da evolução da sua obra literária.

É particularmente interessante a descrição da viagem que efectuou com Monique Lange à União Soviética, a convite da União de Escritores daquele país, referida no penúltimo capítulo do segundo volume. A análise política afigura-se equilibrada, e apesar das críticas ao sistema soviético, não omite as reais conquistas dos russos e dos outros povos satélites (a visita, além de Moscovo e Leninegrado, levou-os também a Tashkent, Samarcanda e Bukhara) por comparação ao regime czarista.

Resumindo: Tratando-se das memórias de um escritor (redigidas antes da queda do Muro de Berlim), os dois volumes de Juan Goytisolo são de algum modo um retrato da vida literária, política e social de uma época (a segunda metade do século passado) numa parte da Europa, a que o autor frequentou e que preferencialmente lhe interessou. Neste aspecto, o resultado é obviamente positivo.

Uma última nota: Quaisquer que tenham sido as intenções de Goytisolo, resulta claramente destas "memórias" (não são abordados no meu texto, naturalmente, os seus outros livros) que o fio condutor da sua escrita obedece essencialmente a três vectores: a religião (omnipresente, desde o início da sua vida e diversas vezes evocada na obra, a muitos títulos mas em especial relativamente à atitude hipócrita da Igreja Católica de confundir intencionalmente sexo e moral, ditadura e salvação das almas); a política (onde se notam as marcas indeléveis da Guerra Civil de Espanha e da grande confusão que avassalou os espíritos decorrente dos "desvios" do socialismo real); e a (homo)sexualidade (uma orientação que condicionou desde a infância toda a sua vida mas que só viria a assumir na idade adulta e que é matéria implícita ou explicitamente recorrente em todos os seus livros).

Terminando: Quer se leiam em castelhano ou em francês, estes dois volumes de Juan Goytisolo continuam, mais de trinta anos após a sua publicação, a constituir documentos relevantes para o estudo do escritor, da sua obra e da sua época.


1 comentário:

Anónimo disse...

Como escreve o bloguista estas memórias para lá do interesse intrínseco são também uma justificação do autor relativamento a algumas das suas atitudes passadas. Mas no geral o saldo é largamente positivo.