António Lobo Antunes |
A propósito da afirmação de António Lobo Antunes, em entrevista recente, interrogando-se, relativamente a Fernando Pessoa, se quem nunca fodeu pode ser um bom escritor, o professor e ensaísta Eugénio Lisboa publicou, no "Jornal de Letras", o texto que, com a devida vénia, se transcreve:
“O ratio literacia/iliteracia
é constante, mas, nos nossos dias, os iletrados sabem ler e escrever”.
Alberto Moravia
Peço, desde já, que me perdoem o tom desenfastiado desta
prosa, a começar pelo título: paráfrase libertina de um solilóquio célebre. Vou
usar, como verão, vocábulos desataviados ou mesmo crus: o culpado disto tudo é
o escritor António Lobo Antunes que, numa entrevista recente – das muitas que
ele não gosta de dar mas vai dando – sugeriu o mote, ao afirmar o seguinte,
referindo-se a Fernando Pessoa: “Eu me
pergunto se um homem que nunca fodeu pode ser um bom escritor.” Não é a
primeira vez que o autor de Memória de
Elefante nos serve este mimo.
Provavelmente, ao
tê-la, gostou tanto da ideia, que não se cansa de no-la servir, faça chuva ou
faça sol. Reajo a ela, não tanto pela crueza vicentina do tom (e do glossário),
como pelo facto de me não parecer cientificamente sustentável. E, neste ponto,
faço apelo ao que, de ciência, ainda reste na cabeça do outrora psiquiatra Lobo
Antunes.
Antunes propõe, em suma, que a falta de tesão de Pessoa não é
compatível com o equipamento profissional de um bom escritor, ou, de maneira
menos crua: a castidade não leva à criação poderosa. Ora bem: quando se põe, em
ciência, uma hipótese de trabalho, esta só se mantém de pé, até ao preciso
momento em que um novo facto conhecido a vem desmentir (ou falsificar, como diria Popper). Ora o que não faltam são factos que
perturbam, abanam e fazem desmoronar a atrevida asserção de Lobo Antunes – os
tais factos que Ronald Reagan apelidava de “estúpidos”, porque contrariavam as
suas fantasias primárias.
Isaac Newton, incontestavelmente o maior cientista de todos
os tempos, morreu virgem ou, se Lobo Antunes assim preferir, não consta que
alguma vez tenha fodido – o que não o impediu de sondar, como ninguém, os
enigmas do universo. Também não creio que um dos maiores artistas e inventor
prodigioso de artefactos tecnológicos – Leonardo da Vinci – tenha fodido por aí
além. Estes dois exemplos, só por si, bastariam para foder irremediavelmente a
hipótese científica do ex-aprendiz de psiquiatra doublé de ficcionista, que dá pelo nome de Lobo Antunes. É certo
que nenhum destes personagens que citei é, exactamente, um escritor e Lobo
Antunes referiu-se apenas à incapacidade de um casto escrever boa literatura.
Vejamos, então, do lado dos escritores. Os exemplos – os tais factos
“estúpidos” – não faltam. Henry James, por exemplo, não consta que alguma vez
tenha ido para a cama, com menina ou menino. Walpole bem quis, um dia,
seduzi-lo para o seu leito (desconfiado que andava de tanta reticência mais
própria de solteirona ressequida), mas o autor de Portrait of a Lady recuou. Houve até uma mulher que se suicidou por
ele a ter rejeitado ou não ter descodificado bem os passes que ela lhe andava a
fazer, mas nada o levaria a fazer aquilo que Lobo Antunes considera fundamental
para uma fecunda vida literária: foder, nem que seja só um bocado. James deixou
uma obra monumental e Graham Greene só se lhe referia, chamando-lhe, com uma
vénia, “the Master”, mas Lobo Antunes é de opinião que a obra do grande
ficcionista americano ficou completamente fodida por o seu autor não ter
fodido. Jane Austen, que conseguiu o milagre de agradar simultaneamente ao
grande público, aos cineastas e aos “high-brows” universitários, também não
fodeu. Viveu solteira e virgem e produziu, no meio da mais impertinente
castidade, uma meia dúzia de obras-primas. Assim ajudando a foder
consideravelmente a hipótese antunesina. John Ruskin, que tão bem escreveu
sobre arte, merecendo até a glória de ser traduzido para francês por Marcel
Proust – que Lobo Antunes tanto e com tal exclusividade admira! – também não chegou
a foder, embora tenha tentado: na noite de núpcias, os pelos púbicos da noiva –
coisa que, pelos vistos, nunca tinha contemplado – de tal forma o horrorizaram,
que deixou a pobre rapariga intacta e nunca mais repetiu a tentativa. Fodido,
não é? A poetisa americana Emily Dickinson ficou igualmente para tia, o que
justifica, segundo Antunes, uma reavaliação da sua poesia, à luz de tanto não
foder. Por outro lado, Edgar Poe, o da literatura policial – com o inesquecível
Dupin, ínclito precursor de Sherlock Holmes – mas também o mago da literatura
fantástica e de horror – que Baudelaire admiravelmente traduziu – e o poeta
romântico que Pessoa verteu para português, Poe, dizia eu, cometeu o que
Antunes classificaria como o mais hediondo dos crimes: casou com a priminha de
13 anos, Virginia Clemm, sem ter chegado, porém, a fodê-la. Nem a ela nem a
nenhuma outra, que se saiba. O grande poeta Gerard Manley Hopkins, padre, ficou
também casto (não sei se por ser padre, mas a verdade é que ficou), o que
obrigará, em breve, a organizar-se todo um colóquio douto, para reavaliação da
sua obra: quem esforçadamente não fode, escrever bem não pode, garante Antunes
a quem o queira ouvir.
Também o emérito Yeats, um dos grandes da poesia do século
XX, permaneceu casto até aos trintas e, durante este período de espartano “no
fucking”, escreveu e publicou bastante poesia. E, já agora, para terminar,
desconfio bem que o nosso ternurento António Nobre, precursor indiscutível da
nossa poesia moderna e “a nossa maior poetisa”, segundo a perfídia mansa do
grande Pascoaes, também não era particularmente dado às fornicações que Antunes
considera fundamentais ao acto da escrita.
Por fim, ainda na referida entrevista, o autor de Os Cus de Judas dá a Virgílio o que é de
Horácio, quando alude desastradamente às odes de Ricardo Reis: assim fode, sem
apelo nem agravo, a erudição vigente. É caso de se dizer que, se quem não fode
escrever não pode, não é menos certo que quem pouco manuseia o antigo não logra
ver além do postigo.
Abrégé do texto acima, com tese (minha): quando se trata de
escrever, tanto faz foder como não foder. O importante é ter que dizer e saber
o modo de o fazer. Simples? Eu diria mesmo mais: fodidamente elementar, meu
caro Watson!
Eugénio Lisboa
3 comentários:
Perante esta prosa esmagadora, é caso para dizer: foda-se o Antunes!!! Ou então, parafraseando o Almada: morra o Antunes! Pum!
Olho Vivo
O texto de Eugénio Lisboa é verdadeiramente um Manifesto Anti-Antunes, ainda com mais consistência do que o Manifesto do Almada.
E há também a "vexata quaestio": como poderá saber Lobo Antunes se Pessoa fodeu ou não fodeu. É verdade que, até hoje, não se lhe conhecem devaneios amorosos (Ofélia é um acidente inconsequente) e muito menos consumações carnais. Mas daí a concluir pela absoluta ausência de relações sexuais vai uma grande distância. Talvez o futuro nos reserve ainda algumas surpresas.
O romancista deve pensar que chegou a idade em que lhe é permitido dizer o que lhe apetece...
Mas é no mínimo triste.
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