sábado, 7 de novembro de 2015

CLARA FERREIRA ALVES E O COMUNISMO




Publica o "Expresso" de hoje um longo artigo de opinião de Clara Ferreira Alves intitulado "Anticomunista, obrigada!".  Porque a jornalista tem desempenhado um papel importante como opinion-maker nos últimos anos, transcrevo o texto antes de comentá-lo:

Anticomunista, obrigada!


Ou António Costa é um génio político e submete os parceiros à sua imponderável vontade ou caminhamos para a mais grave crise de regime depois do 25 de Abril



Clara Ferreira Alves

Escritora e Jornalista


Não estava à espera neste ponto da minha vida e neste ponto do século XXI, dobrado o século XX há uns aninhos, de ver aparecer a acusação. Anticomunismo. Parece que qualquer pessoa que não confie na bondade intrínseca de um acordo de governo com o Partido Comunista Português é anticomunista. Confesso ter nostalgia de muitas coisas, mas não desta. A de repensar o anticomunismo privado. Sou ou não anticomunista? E se for? A questão não é meramente ideológica, é existencial. É, por assim dizer, teológica. Cheguei à conclusão, depois de muito matutar, de que sou anticomunista. Acredito na economia de mercado, no capitalismo regulado e na iniciativa privada. Não acredito na coletivização da propriedade e da economia, na eliminação da competição nem na taxação intensiva do capital. O atual Partido Comunista não partilha estas minhas convicções. É coletivista, e foi sempre, ao contrário do que nos querem convencer, pragmático. O PCP foi sempre pragmático e anti-idealista por natureza. Nunca foi um partido romântico e só teve um panfleto literário romântico, os “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes. Tirando isto, o PCP é um bloco realista e de realismo social, no sentido que a palavra tinha no século XIX. Para o PCP, a marcha da História é marxista, o sentido da História é o da extinção do capitalismo (e não a sua regulação) e o da criação de uma nova consciência social, cívica e política nas mãos do proletariado e das suas vanguardas, organizadas em comités, ou no que lhes quiserem chamar, que controlem os meios de produção e os seus instrumentos financeiros. O PCP era isto. E é isto.

Por razões históricas, fui sempre anticomunista. E por razões ideológicas, também. Sou uma anticomunista que não tem vergonha de ser anticomunista e que tem e teve amigos comunistas (mais teve do que tem, porque tudo o que se relaciona com esta doutrina é, irremediavelmente, passado). Claro que podem ler nesta frase — “tenho amigos comunistas” — a mesma desconfiança que leem quando os homofóbicos dizem que têm amigos gays. E, já que falamos disso, o PCP sempre foi ferozmente antigay. Só se mudaram. Já lá iremos.

Sou anticomunista por razões históricas e profundamente temperamentais. Como boa individualista que sou, tenho horror a coletivismos impostos, e uma boa parte da minha adolescência e entrada na idade adulta foi passada a assistir e a resistir a isto. Posso mesmo dizer que, doutrinariamente, o que me definiu foi ser anticomunista. O fascismo tinha terminado no 25 de Abril. O fascismo foi outro regime totalitário que não percebeu a História. Comecemos pelo princípio.

Na Faculdade de Direito de Lisboa, os estudantes comunistas tinham o estranho hábito de decretar greves gerais sem consultarem todos os alunos nessa votação. Um aluno chegava à faculdade e diziam-lhe: hoje não entras, há greve. Há greve? Quem votou? Nós. Nós quem? Numa reunião secreta. Se foi secreta, como é que votámos? Nós votámos. Por causa desta discussão insana que despertava em mim instintos libertários e anarquistas, cheguei a furar uma ou duas greves com mais uns dementes como eu que não gostavam de ser paus-mandados. De um lado tínhamos os gorilas e do outro lado tínhamos as greves obrigatórias dos comunistas, que se arrogavam o monopólio da contestação. A UEC era formidável nisto, no monopólio da contestação, e quando o MRPP tentou furar este monopólio teve o apoio de boa parte dos estudantes, que estavam fartos da UEC e dos seus esbirros da MJT. A MJT era o braço armado dos comunistas e chegou a encerrar alunos dentro das aulas para bater nos maoistas à vontade depois de deixar sair os outros, os “cobardes”. Uma das vezes, escapuli-me por uma janela antes que a MJT entrasse armada de matracas e correntes de bicicleta. A MJT era o operariado da UEC para a porrada. O Movimento da Juventude Trabalhadora. Quando o COPCON entrou pela faculdade, dando cabo de tudo à passagem, esgueirei-me para Coimbra em “transferência secreta” (não podíamos fugir da revolução em curso) e implorei ao professor Rui Alarcão que me aceitasse na vetusta instituição. Em Coimbra, vigorava um comunismo soft. Os comunistas controlavam tudo muito civilizadamente. Sem pressões e mantendo o currículo académico. Restava o problema dos sovkhozes e dos kolkhozes. Sobrando em Direito professores comunistas que não abdicavam da coletivização dos bens e dos meios de produção, fomos obrigados a estudar marxismo coagidos pela frase: quem vier para as minhas provas escritas e orais defender a propriedade privada pode contar com um chumbo. Andei em guerra até ao fim do curso com um professor chamado Orlando de Carvalho, que jurou que me chumbaria em qualquer circunstância (deu-me 14 depois de eu ter encornado a sebenta toda, incluindo as cedilhas e os pontos e vírgulas e, salvo erro, a célebre nota 64). O Orlando era um comunista católico envergonhado. Era um coletivista desavergonhado e um misógino desembestado. Sem dinheiro para ir estudar para fora e fugir desta gente, achei que mais valia submeter-me e engolir a teoria, engolir os kolkhozes e os sovkhozes (que eram de outro professor comunista) e despachar-me daquilo. Foi o que fiz.

O Partido Socialista parecia-me, com Mário Soares e a doutrina do socialismo democrático, a única oposição responsável ao totalitarismo de Cunhal e dos militares que não queriam regressar aos quartéis. Estive na Fonte Luminosa, claro, e assisti ao lento e duríssimo processo da democratização de Portugal. Os comunistas eram o que tinham sido sempre, intratáveis e muito pragmáticos. Quem não era por eles era contra eles. Nunca entrevistei Cunhal até ao fim da vida dele porque sempre recusei mostrar-lhe a entrevista para ele editar à vontade. Não iria à Soeiro Pereira Gomes. Um dia, consegui negociar. Iria à Soeiro Pereira Gomes, mas editaríamos o texto juntos. No que eu não concordasse, não passaria a emenda. Cunhal aceitou, e a conversa resvalou para Shakespeare e o “Rei Lear”, que ele queria traduzir (acabar de traduzir). Não emendou nada da entrevista. Álvaro Cunhal, com perto de 80 anos, tinha adoçado e era uma figura intelectual respeitável que eu respeitava muito. Já não era o inimigo. Havia uma diferença entre conversarmos sobre Shakespeare — o “Rei Lear” é a minha peça favorita e era a dele, um tratado sobre o poder e a partilha do poder — e ter o doutor Cunhal a mandar na minha vida. Na verdade, anos antes, o doutor Cunhal quisera fazer de Portugal a jangada de pedra do estalinismo europeu. Uma espécie de little Bulgária. Do PCP tinham entretanto saído muitos dissidentes, enquistados com a ausência de democracia intrapartidária. Muitos desses dissidentes eram ou tinham sido comunistas ortodoxos, dos que aplaudiram de pé a entrada dos tanques do Pacto de Varsóvia em Praga. Eu estava, sempre estive e estarei com os dissidentes checos, com Václav Havel e com a democracia.

Em Portugal, o PCP sufocou todos os desvios à sua norma ou absorveu toda a contestação não emanada das suas instâncias representativas da massa. Da massa, sim, não da cultura de massas. Por um lado, o PCP tinha a tradição da clandestinidade e da coragem na clandestinidade e não admitia dissidências desta tradição. Julgava-se o único detentor da verdade contestatária (como se tinha julgado na Faculdade de Direito o único autor das greves estudantis). Por outro lado, a cultura de massas assente no individualismo era-lhe profundamente estranha. No meio literário português dominava largamente, não apenas através das instituições que controlava (da APE à SPA) como através dos compagnons de route sem filiação na extrema-esquerda radical e sem movimentos adequados à sua representação. O papão da direita e um esquerdismo social unia esta gente. Mais um certo aggiornamento chique que, pensavam erradamente, o PCP lhes conferia. A Festa do “Avante!” era um dos altares desta missa. O PCP pode ter muitos defeitos, mas nunca foi um partido estúpido, embora tenha sido apanhado desprevenido com a queda do Muro de Berlim. Quem não foi? O PCP olhou para Gorbachev primeiro com ódio e depois com incredulidade. O império soviético desmoronava-se. Os que acreditaram numa mudança de mentalidades dentro do PCP depressa foram expelidos ou condenados pela inquisição do partido. O PCP não mudara. O mundo mudara sem ele.

A atitude intelectual totalitária que caracteriza o PCP deixou como legado a anemia intelectual portuguesa. O neorrealismo deixou de ser dominante, mas não chegou a ser substituído por movimentos herdeiros da modernidade e do modernismo. Nem por um esboço de pós-modernismo importado de Paris. Esta é a nossa tradição. Os grandes intelectuais portugueses sentiram-se sempre exilados dentro do seu país, como Fernando Pessoa e Alexandre O’Neill, ou exilados reais, como Jorge de Sena. Ou como Eduardo Lourenço, que sofreu a ansiedade da separação. E havia os açorianos, uma casta especial de solipsistas, de Vitorino Nemésio a Natália Correia. São, todos, navegadores solitários. Pessoa teve a sorte de ter tido a geração de Orpheu a fazer-lhe companhia.

Basta ir a Londres e à Tate Modern, e visitar a exposição “The World Goes Pop”, para ver como Portugal não consta desta revolução. É a única ditadura ocidental dos anos 60 e 70 que não teve representantes e cultores pop. Não teve movimento pop. Não teve a anarquia pop. O protesto pop. A arte pop. O Brasil teve, a Argentina teve, o México teve, a Espanha teve, o Chile teve. Portugal não teve. Devemos isto ao PCP e à hegemonia do PCP num país pequeno e sem mercado de ideias, vinculado ao Estado e aos ditames e subsídios e cargos do Estado. A única escritora portuguesa que verdadeiramente escapou a esta hegemonia foi Agustina Bessa-Luís, e por isso ela permanece o ícone intelectual da direita (da nova direita) e por ela é exaltada e venerada. Agustina era o triunfo do individualismo desde que decidira escrever “A Sibila”. Agustina detestava os comunistas, não por serem comunistas mas por não serem livres. Tive com ela esta discussão e sei que as palavras de Agustina eram diferentes das palavras de todos os outros escritores, incluindo os liberais cosmopolitas que estavam próximos do PS, como Sophia de Mello Breyner ou David Mourão-Ferreira. Agustina não é, não era, nunca foi de esquerda. Nunca precisou de uma moral de esquerda, tal como esse lúcido libertário chamado Mário Cesariny de Vasconcelos.

Para a nomenclatura do PCP, ser de esquerda era mais benéfico do que ser comunista, quando se tratava de escritores. Controlando as instituições, o PCP resistia a dar prémios literários a José Saramago. Porquê? Dava-os aos outros e não a ele. Deu a José Cardoso Pires e a Paulo Castilho ou Mário Cláudio. Nunca deu a “Memorial do Convento” e a “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Porquê?

Assente-se que Álvaro Cunhal não gostava de Saramago. Nem pessoalmente nem literariamente. Cunhal era um esteta, um romancista falhado, e nem no estilo nem na receção crítica do estilo, relacionados com a pureza do neorrealismo, podia identificar-se com a retórica do escritor-estrela dos comunistas. Saramago era um maneirista inspirado pelo padre António Vieira e o Século de Ouro espanhol, e mais depressa apanhariam Cunhal a aplaudir a subversão existencialista de um Albert Camus do que um missionário jesuíta do século XVII. Saramago era um escolástico, e Cunhal abominava a escolástica. Ninguém reparou nisto. Foram mais rivais do que Eça e Camilo foram. E o PCP nunca gostou de estrelas.

E a direita? A direita portuguesa foi sempre preguiçosa e tendencialmente analfabeta. Quando digo a direita, digo o capital, os capitalistas portugueses. Simbolicamente gordos e anafados como nas caricaturas de Vilhena, nutriam pelos socialismos e pela social-democracia um ódio rancoroso e viviam no passado. Sá Carneiro foi tolerado por eles, não foi amado. Até nascer o novo capital, o das novas empresas e grupos e dos novos assalariados de luxo do novo capitalismo português, a direita era uma caricatura sem ideologia com uma ou duas figuras excecionais na indústria, como António Champalimaud. Ficara presa à nostalgia do antigo regime, sem particular engrandecimento da memória imperial, às vezes por ignorância, e a uma postura cívica sem mestre intelectual. Os raros ativistas letrados e revolucionários desta direita sentiam-se órfãos. Como dizia um deles, a direita portuguesa era do género: vão andando que depois vou lá ter. Os outros converteram-se e decidiram trabalhar com quem estivesse no poder. Nascia gente na banca e nas empresas, produto da democracia e da pequena burguesia dos partidos, que não se revia na direita mumificada. Esta ficou à espera de D. Sebastião e chegou a ver nos traços endurecidos de Aníbal Cavaco Silva, um membro do povo que tinha tudo para lhes ser estranho, a face do salvador. Como vira em Salazar.

Neste ambiente, PCP e PS dominaram tudo. Dominaram a literatura, dominaram a música, o teatro, o cinema, a fotografia, as artes, o jornalismo, a crítica, tudo. Foi preciso esperar pela agonia do século XX para esta dominação se atenuar. A revolução tecnológica capitalista pôs-lhe cobro de vez.

No século XXI, amigos meus que tinham sido comunistas desde crianças, como Miguel Portas, confessavam a sua desilusão com o comunismo e a crença numa nova esquerda. O que Miguel Portas fez, e só fez, foi tentar experiências de esquerda que escapassem à ditadura intelectual comunista. Revistas, jornais, intervenções, plataformas e, finalmente, a criação do Bloco de Esquerda. Pressagiei que as alianças entre estes esquerdistas ilustrados e estrangeirados e os radicais da extrema-esquerda e de partidos como a UDP não seria um casamento feliz. Não foi. As tensões dentro do Bloco desaguaram nas dissidências do Bloco. Assisti a isto mais ou menos por dentro e discuti isto muitas vezes. O Bloco era importante para as causas ditas fraturantes, porque o PCP era um partido ferozmente conservador e antirrevolucionário nos costumes. Tendo criado a sua moral, a sua igreja e a sua liturgia, o PCP nunca transigia. Era nisso simétrico da direita reacionária. A aliança tática entre PS e Bloco permitiu “desbloquear” certa legislação que andava pendurada há anos na boa consciência de católicos e de direitistas.

O contributo de forças como o PCP e o Bloco para a democracia portuguesa é importante, apesar destes desníveis. Mas só é importante por ter sido enquadrado e travado pelo socialismo democrático dos socialistas e a social-democracia dos sociais-democratas.

Tal como o PSD, o PS tem sofrido um desgaste e uma desvalorização intelectual preocupantes. O PS de homens como António Arnaut ou Mário Soares já não existe. Nem sequer existe o PS de António Guterres. O PS de hoje divide-se entre os socratistas, com tudo o que de nefasto essa denominação representa, os oportunistas e os apoiantes de qualquer chefe que conduza ao poder um grupo de gente que sabe que o partido precisa de lançar mão do aparelho de Estado para sobreviver politicamente. Junte-se ao caldo meia dúzia de jovens idealistas sem maturidade. À direita, o “ideologismo” (chamar-lhe ideologia seria um manifesto exagero) pseudoneoliberal de Passos Coelho e dos videirinhos amestrados, de que Relvas é a caricatura apurada, forneceu a uma gente desavinda pela História o último pretexto para a união.

Uma união que nunca se consumaria. O PS não é coletivista. Não foi. Não será. É um velho partido de católicos e de maçons que se sente ameaçado e está a jogar póquer fechado com altas paradas. E a direita de Passos perdeu esta jogada, num espanto emudecido que não provocou um texto, um pretexto, um protesto. A direita portuguesa continua a dizer: vai andando que já lá vou ter. Deixou a contestação aos jornalistas e articulistas que julga protetores do statu quo. Esta nova aliança das esquerdas descambará em novas direitas, seguramente.

A destruição do centro, à esquerda, e a insensatez de quem nos tem governado, à direita, tornaram o combate ideológico um combate tribal, como o futebol. Um combate onde não vingam a inteligência e a ilustração. Muito menos a memória. Não é preciso invocar a Europa e a sua putativa falência, ou o diktat de Bruxelas, para concluir que o PS abriu a boceta de Pandora. Convencidos de que os comunistas mudaram, os socialistas serão, como recusaram historicamente ser, chantageados por um partido que joga aqui a sua derradeira cartada da História. O comunismo acabou em toda a parte, mas não aqui, não aqui. E não acabou aqui porque a desigualdade e a pobreza que a direita exalta em Portugal como regra de vida comum, como modo operativo de um capitalismo egoísta, autodidata e desmembrado, são a bandeira do PCP. São o seu eleitorado. Juntem-lhe os funcionários públicos num país envelhecido onde todos dependem do Estado, da banca aos artistas, e temos a explicação do anacronismo chamado Partido Comunista Português. Tal como o capital, o trabalho sabe defender-se.

O Partido Socialista meteu-se nesta querela sem ter trunfos na manga. Perdeu as eleições, e isso faz toda a diferença na potestade. O PS não tem sobre o PCP e o BE um direito potestativo. São eles que o têm, e exigirão a submissão. Não sei como sairá disto. Sei que das duas uma. Ou António Costa é um génio político e submete os parceiros à sua imponderável vontade ou caminhamos para a mais grave crise de regime depois do 25 de Abril. E, talvez, para o fim do regime saído do 25 de Abril.

Quanto a mim, sou o que sempre fui. Portuguesa e anticomunista, obrigada. Nisso, não mudei.

* * * * *

Costumo ouvir as intervenções de Clara Ferreira Alves (CFA) no "Eixo do Mal" e leio os seus artigos, quando acontece passarem-me à frente dos olhos. Tenho apreciado, nestes últimos anos, muitas das suas intervenções, embora não subscreva, obviamente, todas as suas opiniões.

Acontece, contudo, que o posicionamento político de CFA se alterou substancialmente nas semanas mais recentes, quando se começou a consolidar a ideia da formação de um governo "à esquerda". Ao longo dos quatro anos do executivo de Passos Coelho, CFA mostrou-se sempre contrária, senão mesmo hostil, à coligação PSD/CDS, e criticou acerbamente as decisões da União Europeia  relativamente à austeridade em geral, tal como a falta de uma política externa comum europeia (maxime na crise dos refugiados), a forma como Berlim e Bruxelas trataram o Syriza e o caso grego, para já não falar das diatribes contra as medidas do ministro Vítor Gaspar e da verberação das actuações do ministério público, nomeadamente no caso Sócrates, para referir apenas alguns exemplos. Atitudes essas que lhe granjearam a admiração de grande parte dos seus leitores e ouvintes, não só de esquerda mas até de direita.

Todavia, nas últimas semanas, como escrevi acima, CFA começou a inflectir as suas posições tradicionais e a manifestar a sua progressiva preocupação com a eventualidade de um governo de esquerda em Portugal. O que surpreendeu (ou não) quem a escuta. De facto, CFA foi convidada, em 2011, do célebre Clube de Bilderberg, do qual, até há pouco, Francisco Pinto Balsemão, proprietário do "Expresso" e da SIC, era, de alguma forma, o "representante português". E o Clube de Bilderberg , associação mais ou menos secreta sobre a qual saem periodicamente alguns polémicos livros, não faz convites grátis. É por isso que não deverá estranhar-se muito a atitude de CFA no seu texto de hoje, em que, ostensivamente, se reclama de anticomunista. Não que a tenha ouvido alguma vez fazer profissões de fé no comunismo, mas a urgência deste texto, onde se proclamam algumas verdades (é bom dizê-lo) parece despropositada e desnecessária.

Começa CFA por evocar alguns problemas pessoais que teve com o PCP desde os tempos do PREC. Foi uma época de grande ebulição política e ideológica. Nessa altura, o Partido pretendia mesmo constituir-se em vanguarda do processo revolucionário. Não sei se Cunhal, que era um homem inegavelmente inteligente, acreditava no fundo o que evocava na forma, mas o certo é que em 25 de Novembro fez prudentemente marcha atrás, fiel ao provérbio "Vão-se os anéis, ficam os dedos". Quem não sendo comunista, andou, por essa altura, envolvido em acções não só políticas, mas culturais, sindicais, associativas, etc. conhece bem o desejo hegemónico dos comunistas de tudo controlarem, Tudo e todos. E todos tivemos, com certeza, as nossas querelas com o PCP.

Refere também CFA que acredita «na economia de mercado, no capitalismo regulado, na iniciativa privada». Eu também acredito na economia de mercado, mas não no monoteísmo do mercado que conduziu à presente e aparentemente irreversível sociedade de consumo até ao infinito, onde se consome - e se desperdiça - o desnecessário, deixando morrer à fome milhões de seres humanos que tiveram a infelicidade de nascer em regiões do mundo menos "privilegiadas". Eu também acredito no capitalismo regulado, mas não existe capitalismo regulado a nível global, mormente depois que Reagan e Thatcher destruíram os últimos travões à financiarização da economia, à criação dos produtos tóxicos, à instalação despudorada dos paraísos fiscais. Eu também acredito na iniciativa privada, mas considero que os serviços estratégicos essenciais da Nação devem estar nas mãos do Estado. Não mais do que estes, mas também não menos.

Diz ainda CFA que é contra «a colectivização da propriedade, contra a eliminação da competição, contra a  taxação intensiva do capital». Não creio que o PCP (e quando CFA escreve que é anticomunista depreende-se que se refere ao comunismo do PCP) tenha hoje a ambição de proceder à colectivização da propriedade (mesmo que detivesse o Poder), quando muito à nacionalização das empresas estratégicas. Nem penso que ele seja contra a competição da inteligência e do trabalho, mas existe hoje na sociedade contemporânea (não comunista mas neoliberal) uma competição selvagem em que os mais fracos (a qualquer título) são espezinhados pelos mais fortes sem qualquer mão que os proteja. Quanto à taxação intensiva do capital, parece-me que o importante é taxar progressivamente todos os rendimentos, mas de forma realmente (e não apenas aparentemente) progressiva, e sobretudo evitar que a parte mais substancial do capital e dos seus rendimentos se escape entre as malhas do fisco para destinos (supostamente) ignorados ou inacessíveis.

Muito mais escreveu CFA, mas registo uma última nota: a questão dos costumes. O PCP (e os demais partidos comunistas ortodoxos) foram sempre de um conservadorismo acéfalo em matéria de costumes, nomeadamente sobre aborto, homossexualidade, etc. Tão conservadores quanto a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Deve-se em Portugal, ao Partido Socialista e ao Bloco de Esquerda uma abertura nesta matéria a que o PCP foi obrigado a aderir. Nem faria sentido que assim não fosse, pois - e este capítulo é mais importante do que poderá parecer - arriscá-lo-ia a um progressivo isolamento das massas trabalhadoras, já que estas questões não constituem privilégio dos ricos.

Tudo isto dito, regresso ao princípio. Qual a necessidade de CFA se apresentar hoje como anticomunista? Uma demarcação imperiosa do Governo de esquerda que se espera seja constituído nos próximos dias? Um desabafo de alma? Um ajuste de contas? A prestação de um serviço? Insondáveis são os desígnios de uma jornalista indiscutivelmente culta  e habitualmente coerente.

Porque afinal não é o PCP que vai para o Governo, é o Partido Socialista. E os acordos, que eu naturalmente hoje desconheço, são tão só de incidência parlamentar e sobre as matérias que deles constam. Não vale a pena alimentar fantasmas. O PCP pode não ter mudado assim tanto nestes últimos quarenta anos, mas não é seguramente o mesmo. E o mundo também mudou. Mudou até muito, par o bem e para o mal. Terá o PCP receio de que as suas transigências em algumas matérias o possam condenar à insignificância política, como aconteceu noutros paises europeus? Não acredito.

Assim, e não sendo de considerar a manutenção de um governo de gestão, coloca-se a vexata quaestio: preferirá CFA um governo minoritário da Coligação com o apoio parlamentar do PS??? É que, nas circunstâncias presentes, não existe alternativa.


3 comentários:

Rukka disse...

Tenho na minha mão o livro "os planos de BILDERBERG para Portugal" de Rui Pedro Antunes e, na página 45 o autor elenca todas as presenças portuguesas ao longo dos anos, e nada diz sobre o ano 2011.
Estou curioso em saber porquê. Na altura que li o livro entendi que nesse ano nenhum português tivesse estado presente. Agora leio este blogue, que foi CFA que esteve em 2011 e, sinceramente não sei que pensar.
Mas não vou de deixar de dormir por causa disto.
Tem algo a dizer?

Luis Eme disse...

Embora bem escrito como sempre, com muita coisa mal contada e mal esquecida.

E nem vou falar da "deriva". Mas o vento tem dessas coisas.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para Rukka:

Não conheço o livro que refere mas é um facto que Clara Ferreira Alves participou, a convite de Francisco Pinto Balsemão, no encontro do Clube de Bilderberg que, em 2011, se efectuou em St. Moritz, na Suiça.