terça-feira, 1 de setembro de 2015

PASSAGEM PARA A ÍNDIA



Foi publicada o mês passado a tradução portuguesa (Verão Ártico) do livro Arctic Summer (2014) do sul-africano Damon Galgut (n.1963), onde é ficcionada a vida do célebre escritor E.M. Forster (1879-1970), um dos mais famosos romancistas britânicos do século passado, autor de obras inolvidáveis, como Passagem para a Índia, que seria adaptada ao cinema (1984) por David Lean, obtendo uma carreira triunfal.

O romance de Damon Galgut, que recorreu a vasta bibliografia (referida em apêndice) para escrevê-lo, ainda que eu duvide que a tenha lido integralmente, centra-se fundamentalmente em quatro períodos:  a vida de Edward Morgan Forster em Inglaterra, enquanto estudante universitário, as duas estadas na Índia, e os três anos que permaneceu em Alexandria, entre as viagens àquele país.

Porque é sul-africano (além de pessoa de evidente sensibilidade), e porque a África do Sul foi outrora como a Índia, e de alguma forma o Egipto, um domínio britânico, Damon Galgut encontra-se em posição privilegiada para discorrer como os ingleses tratavam os nativos, independentemente da sua condição social e cultural. A segregação evidente entre os súbditos de Sua Majestade e os autóctones foi uma constante da política imperialista da Grã-Bretanha até ao desmoronar do seu vastíssimo Império. O apartheid na África do Sul mais não foi do que o prolongamento de uma atitude que durou séculos. Nas suas deambulações pela Índia e Alexandria, o próprio Forster se sentiu também segregado, duplamente segregado, primeiro porque sendo homossexual não podia (não devia) estabelecer relações íntimas com os indígenas, nem com os ingleses intoxicados pela moral vitoriana, depois porque a própria socialização com aqueles lhe era proibida pela situação política vigente. E eram sobretudo os indianos e os egípcios que interessavam a Forster. A sua vida, em Inglaterra ou no estrangeiro, foi sempre a de um "marginal", apesar da progressiva celebridade literária que ia conquistando.

Syed Ross Masood e E.M. Forster

O escritor viajou pela primeira vez para a Índia devido à insistência de um jovem estudante indiano que conhecera em Inglaterra, Syed Ross Masood, por quem se apaixonara. Galgut conta (reinventa) a permanência de Forster naquele subcontinente com abundância de peripécias e de locais visitados. Como não conheço a Índia, não me posso pronunciar sobre a verosimilhança desta "peregrinação". Todavia, é verdade que Masood gostava muito dele, insistia que com o seu talento deveria escrever um livro sobre o seu país, mas a relação não foi consumada devido às objecções do indiano.

Mohammed El-Adl

Mais tarde, durante a Primeira Guerra Mundial, Forster foi colocado em Alexandria, ao serviço da Cruz Vermelha Internacional. Durante a sua permanência na cidade, Forster, que ainda era virgem, tem a sua primeira experiência sexual com um soldado numa gruta de praia junto ao Palácio de Montazah, residência real mandada construir por Fuad I, no extremo leste da cidade. Em 1917, conhece o condutor de carros eléctricos Mohammed El-Adl, um jovem de 17 anos, que será a sua segunda e última verdadeira paixão. Neste caso, e apesar das reservas do rapaz, haverá um "comércio" carnal. Bem como a visão dos muitos prazeres proibidos que a cidade oferecia. Teria também a oportunidade de conhecer o grego Cavafy, o "poeta da cidade" como lhe chamava Durrell, outro grande escritor que habitou em Alexandria, também durante outra Guerra Mundial, a Segunda, e registou as suas impressões nessa inesquecível tetralogia que é O Quarteto de Alexandria. Cavafy (um dos nomes maiores da poesia do século XX), mais expedito e mais liberto do que Forster, conhecia bem o submundo da cidade, que evoca em alguns dos seus poemas, e fazia as suas conquistas no Café Billard (hoje desaparecido), na rua Safiya Zaghlul, um pouco acima do Café Elite, que ainda se mantém. Mas rapazes disponíveis não faltavam por toda a cidade, e existiam mesmo casas de prostituição masculina a par das de prostituição feminina, permitidas pelo governo egípcio e toleradas pela administração britânica. Refere Galgut as aventuras e desventuras de Forster em Alexandria, com a citação de inúmeros locais frequentados pelo escritor ou onde este se encontrava com Mohammed. Porque a maior parte desses locais continua a existir, embora a cidade tenha crescido desde então desmesuradamente, os nomes estão certos mas, por vezes, fico com a sensação de que a distância entre eles não é compatível com a descrição de Galgut. Terá Galgut estado em Alexandria e visitado os sítios? Ou será informação documental? Sobre a Índia, que não conheço, não me permiti opinar sobre as deslocações atribuídas a Forster, mas sobre Alexandria, que conheço bem, subsistem-me algumas dúvidas.

A segunda viagem de Forster à Índia será a convite de Bapu Sahib, marajá de Dewas, um conhecimento dos tempos universitários em Inglaterra, a fim de ocupar o cargo de secretário particular. Também aqui há envolvimentos físicos, mas sem especial relevo. O ambiente de fim de época continua a desiludi-lo e apressa o seu regresso à pátria, não sem passar pelo Canal de Suez, onde reencontra Mohammed, já então gravemente doente. Forster visitará a Índia uma terceira vez, mais tarde, então escritor de renome internacional, mas para participar em cerimónias oficiais.

Masood e Mohammed morrerão ainda em vida de Forster, o que lhe provocará profunda mágoa.

São ainda referidas no livro as relações de Forster com Leonard e Virginia Woolf e com Edward Carpenter. Muitas outras haveria a mencionar.

Como referi acima, insere Damon Galgut em apêndice uma vastíssima bibliografia sobre Forster, incluindo quatro biografias do escritor. Não as li, mas creio que Galgut terá retirado delas o que de mais importante julgou para nos dar a imagem do escritor. Com este livro, penso que Galgut não pretendeu escrever uma biografia (obviamente), nem mesmo uma biografia romanceada, mas um romance biográfico. No entanto, e do que conheço sobre Forster, parece-me que se alongou em certos períodos e reduziu ou omitiu outros. Também não conheço o original de Galgut, mas algumas das transliterações dos nomes árabes são francamente más, talvez por ignorância do tradutor, já que os ingleses (ao contrário dos franceses) são quem melhor reproduz o alfabeto árabe.

Arctic Summer, é o título de um livro que Forster nunca chegou a concluir.

A obra de E.M. Forster, que começou a escrever quando ainda estudava no King's College, em Cambridge, é vasta. Importa destacar Passagem para a Índia (A Passage to India), que lhe conferiu celebridade mundial (1924); Where Angels Fear to Tread (1905); The Longest Journey (1907); A Room With a View (1908); Howards End (1910); e Maurice, escrito entre 1913 e 1914, mas publicado postumamente em 1971, o único romance homossexual de Forster. Como se disse, Passagem para a Índia foi adaptada ao cinema por David Lean (1984) . O realizador James Ivory encarregar-se-ia de transpor para o ecrã A Room With a View (1985), Maurice (1987) e Howards End (1992). Sublinhe-se que Forster escreveu também muitos contos, alguns famosos, onde se permitiu ir mais longe em matéria homossexual, mas que, por isso mesmo, só foram publicados, os mais ousados, depois da sua morte, e alguns ensaios, de que Aspects of the Novel (1927) é o mais importante.

No campo musical, Forster escreveu (de parceria com Eric Crozier) o libretto (1951) para a ópera Billy Budd, de Britten, baseada no romance homónimo de Herman Melville.

Ainda uma referência a dois livros fundamentais sobre Alexandria: Alexandria: a History and a Guide (1922) e Pharos and Pharillon (1923), o primeiro dos quais é indispensável para se compreender histórica e geograficamente Alexandria no princípio do século passado.

Dito isto, que é pouco mas poderá despertar a vontade de mergulhar na obra de Forster e no seu universo (a Índia e Alexandria, muito mais do que, por exemplo, a Itália que também visitou e amava), fico com a sensação de que fiz um resumo imperfeito. Recomendo, por isso, a leitura de Verão Ártico, que não sendo um livro notável, e apesar de algumas reservas, se lê com agrado. E, a seguir, a leitura dos principais livros do famoso escritor britânico.

2 comentários:

Zephyrus disse...

Olhando para a situação dos refugiados do mundo árabe, e inferindo que o autor deste blogue não morre de simpatias pelos ingleses, deixo aqui uma suspeita que me tem surgido na mente.

Como se sabe, os EUA, Israel e os governos «caniche» (os cães têm mais dignidade que esta canalha) da Europa, como os governos do Reino Unido ou da França, ou ainda os Governos de Durão Barroso e de Aznar, promoveram e financiaram uma série de guerras no Norte de África e no Médio Oriente, por motivações financeiras, económicas, geopolíticas e até religiosas muito obscuras.

Há muito que se previa que a Europa ficaria rodeada a Sul e a Leste por um mundo em chamas, e que a pressão migratória seria enorme. Ora a previsão cumpriu-se.

E o que andam a fazer as elites conversadoras do Reino Unido, e até algumas do partido trabalhista? A promover um estatuto especial do país no seio da UE, que lhes permita «escolher» os imigrantes da Europa Continental, e excluí-los do Estado Social. Não haverá aqui uma certo cinismo e vontade de fechar o RU aos refugiados que estão a invadir a Europa Continental? Não estará Westminster a fugir às responsabilidades e consequências das guerras que patrocinou?

Ora eu passo parte do ano em terras de Sua Majestade. E não vejo abusos dos imigrantes europeus. Eles estão lá porque os ingleses, coitados, não têm vocação para uma série de profissões práticas. Em boa verdade, os italianos, gregos, espanhóis ou portugueses têm mais talento para a cozinha, comércio ou profissões ditas técnicas ou artísticas. E mais simpatia, mais calor humano também. Mais: as pessoas do Sul são indubitavelmente mais bonitas, mais atraentes. E estão lá também porque milhões de ingleses recusam certos salários, por ventura elevados para os padrões da Europa Continental. E porque alguns ingleses abusam do Estado Social.

Digamos o que tem de ser dito: o país onde o populismo xenófobo e racista está a ter mais poder, na Europa Ocidental, é surpreendentemente Inglaterra. E digo Inglaterra e não a Escócia ou o País de Gales. Que se note como o crescimento do UKIP influenciou a agenda política de Cameron.

O eurocepticismo, o discurso contra os estudantes estrangeiros e contra os imigrantes, e a saída da UE ditarão a decadência inglesa.

O mundo não esquecerá quem na Europa Continental acolheu as pobres almas que fogem da barbárie, e quem abandonou o barco para escapar às suas responsabilidades humanitárias.

E os europeus, especialmente os portugueses e espanhóis, não esquecerão que acolhem mais de um milhão de ingleses, nas zonas turísticas. E que nunca nenhum político ibérico pensou em excluí-los dos respectivos estados sociais, apesar de muitas dessas famílias não pagarem cá impostos. Somos mais pobres, mas certamente mais correctos.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

EXACTAMENTE! A Pérfida Albion não muda.