sábado, 14 de março de 2015

VIENA HÁ MAIS DE UM SÉCULO





Por um acaso, ou talvez não, procurei na minha biblioteca um livro adquirido há uns quinze anos, Vienne Fin de Siècle, de Carl E. Schorske, e li-o. Creio que é um dos melhores livros, e são tantos, sobre a segunda metade do século XIX em Viena.

Neste livro, o autor propõe uma abordagem temática de alguns aspectos que considera fundamentais na evolução da vida política, cultural e social de Viena no último período de esplendor do império dos Habsburg. Com a morte de Francisco José em 1916 (o jovem que aos 18 anos herdara o peso da monarquia bicéfala após a revolução de 1848 e a abdicação de seu tio Fernando I), o Império Austro-Húngaro entrara no estertor, consumado com a derrota na Primeira Guerra Mundial em 1918 e a renúncia de Carlos I, que, mortos o herdeiro natural, o arquiduque Rodolfo (suicidado em Mayerling em 1889) e o arquiduque Francisco Fernando (vítima do atentado de Sarajevo em 1914), sucedera,  por dois anos, ao seu tio-avô.

Debruça-se Schorske sobre a tradição cultural austríaca (aristocrática, católica e estética) mas também burguesa, legalista e racionalista. Um capítulo é dedicado à Ringstrasse, a circular construída a partir de 1860, no terreno de antigas fortificações que protegiam o centro da cidade, o núcleo duro do Império, e que o separavam já do resto da cidade, entretanto alargada em todos os sentidos.

Há, também um capítulo dedicado à política, numa época determinante do antisemitismo, através de três dirigentes fundamentais. E um, inevitavelmente a Freud e à sua Interpretação dos sonhos, bem como outro consagrado a Klimt.

No fim, é apresentado um panorama da mutação tão completa como progressiva da arte numa época em que ela perde a sua vocação de reflectir a realidade social (o meio-século de declínio do liberalismo). E também a reestruturação criadora, ainda que dolorosa, do pensamento e da sensibilidade gerada pela falência do liberalismo e das perspectivas históricas que haviam legitimado esse regime. Por fim, o nascimento do expressionismo, em que a destruição da cultura tradicional se torna absoluta, enquanto se anuncia a reconstrução dos valores.

Schorske começa por se referir a Arthur Schnitzler e Hugo von Hofmannsthal, figuras da poesia e do teatro e também ao famoso crítico Karl Kraus. Sobre Hofmannsthal, há uma alusão curiosa à sua obra Der Tor und der Tod (O Doido e a Morte) de 1893, título antepassado de Raul Brandão, cuja publicação homónima é de 1923. Também, entre outros, Hermann Broch está presente.

Sobre o projecto e a construção da Ringstrasse, e também dos edifícios que iriam ornamentá-la, a Staatsoper, o Kunthistorisches Museum, o Museu de História Natural, o Parlamento (Reichrat), a Câmara Municipal (Rathaus), o Burgtheater, a Universidade, surgem os nomes incontornáveis dos arquitectos Camillo Sitte, Otto Wagner, Gottfried Semper, e mais tarde Adolf Loos. É também a época da construção das ruas adjacentes à Ringstrasse, com o seus imóveis de prestigio, como a Kärtner Ring, a Reichratstrasse, a Schwarzenbergplatz, a Concordiaplatz, a Herrengasse. Sobre as transformações arquitectónicas, que reflectem as transformações sociais, e sobre tudo aquilo que este livro refere, está omnipresente a figura de Richard Wagner. Nem poderia ser de outra forma.

Um dos capítulos que nos ajuda a compreender a evolução político-social da Áustria é o que aborda o "trio austríaco". A propósito deste fim de século em Viena, escreveu Robert Musil no seu O Homem sem Qualidades: «Os que não viveram nesta época, recusar-se-ão a acreditar, mas, já então, o tempo deslocava-se com a rapidez de um camelo (...). Só que não se sabia para onde ia. Assim não poderia distinguir-se claramente o que estava em cima do que estava em baixo, o que avançava do que recuava.»

As forças sociais que se sublevaram contra a hegemonia dos liberais não podiam deixar de surpreender um observador que as visse através do prisma das concepções e da visão liberais da história. Três homens se distinguem nesta cruzada anti-liberal: Georg von Schönerer (1842-1921), Karl Lueger (1844-1910) e Theodor Herzl (1860-1904).

 O grande sucesso de Schönerer foi ter metamorfoseado a tradição da velha esquerda em ideologia da nova direita. De facto, transformou o nacionalismo grossdeutsch, democrático, num pangermanismo racista. Pelo contrário, Lueger transformou uma ideologia da velha direita, o catolicismo político austríaco, em ideologia da nova esquerda, o cristianismo social. Schönerer começou a sua carreira como organizador de primeiro plano na sua circunscrição eleitoral, mas acabou em Viena como agitador com um punhado de admiradores fanáticos. Lueger começou como agitador em Viena, conquistou a capital e organizou depois um grande partido solidamente implantado no interior do país. Possuem em comum um profundo antisemitismo militante. A virulência dos ataques de Schönerer encontrou, especialmente nos jovens e  na classe média, um acolhimento favorável. Um seu fervoroso admirador iria mais tarde distinguir-se na Alemanha, na Europa e no mundo: Adolf Hitler.

Theodor Herzl, judeu, foi o fundador do Sionismo político moderno. A crise do liberalismo e o impulso do antisemitismo concorreram para aquilo a que poderíamos chamar a sua conversão à causa judaica. «Plusieurs aspects de l'attitude de Herzl à la veille de sa conversion révèlent de profondes affinités avec Schönerer et Lueger: le refus de la politique de la raison et la même attirance pour un style aristocratique dans la conduite des foules, accompagné d'un goût prononcé pour le grandiloquent. Herzl avait, avec ses ennemis, un autre point commun situé sur un tout autre plan, même s'il en tira des conclusions différentes: son aversion des juifs.»!


O seu livro, Der Judenstaat (O Estado judaico), de 1895, considerando que o problema do antisemitismo só teria resolução se os judeus de todo o mundo pudessem reunir-se num só país, lançou as bases do futuro estado judaico independente, ainda que não previsse a instalação dos judeus na Palestina. Deve-se-lhe a organização do Primeiro Congresso Sionista Mundial, em Basileia, em 1897, e a criação da Organização Sionista Mundial. Sustenta que os judeus devem conceber um novo sistema simbólico, um Estado, uma ordem social que lhe sejam próprias e, mais do que tudo, uma bandeira. «"Avec un drapeau, on mène les hommes où l'on veut, et même à la terre promise". Un drapeau est "la seule chose pour laquelle les foules sont prêtes à mourir lorsqu'elles sont eduquées dans ce sens"». Mas nunca mencionou a estrela de David, mais tarde adoptada como símbolo judaico.

Como antes dele Schönerer e Lueger, também Herzl combinou elementos arcaizantes e futuristas para se dirigir às massas, tendo cada um dos membros deste trio criticado, em nome da justiça social, o fracasso do liberalismo. Todos três ligaram esta aspiração moderna a uma comunidade arcaica tradicional: Schönerer, a tribo germânica; Lueger, a ordem católica medieval; Herzl, o reino de Israel antes da Diáspora. Todos três fizeram da sua ideologia o ponto de encontro do que "avançava" e do que "recuava", da memória e da esperança, ultrapassando assim a realidade do momento, insatisfatória para as suas gentes, vítimas do capitalismo industrial: os artesãos e os lojistas, os vendedores ambulantes e os habitantes do ghetto.

«De même que la première tâche que se fixèrent Schönerer et Lueger fut de vaincre les libéraux allemands et les catholiques libéraux, de même il fallut que Herzl se battît contre les libéraux juifs. Mais, dans chaque cas, les nouveaux extrémistes cherchèrent à déborder le pouvoir libéral grâce à une autorité qui ne fut pas autrichienne, mais qui fut reconnue par leurs seuls partisans. Schönerer rechercha l'appui de Bismarck, Lueger, celui du pape, et Herzl, celui de Hirsch et des Rothschild de Paris. Tous trois échouèrent dans cette tentative: ils durent organiser leurs troupes non seulement contre les libéraux de leurs communautés, mais, de plus, sans obtenir l'appui des plus hautes autorités extérieures auxquelles ils avaient fait appel.»

Figura incontornável da Viena desta época é indubitavelmente Sigmund Freud (1856-1939), considerado o pai da psicanálise. Não cabe aqui, naturalmente, desenvolver o pensamento e a acção de Freud, ou descrever a afluência dos pacientes ao seu consultório na Berggasse, 19 (onde já estive). Mas importa referir que o capítulo que Schorske dedica à "política e ao parricídio n'A Interpretação dos sonhos" e à carreira do Mestre é fundamental para a compreensão da Áustria no reinado do penúltimo dos Habsburg.



O psicólogo Bruno Bettelheim, que nasceu na Áustria em 1903, escreveu um interessante livro sobre o tema, Viena de Freud e outros ensaios, publicado em português em 1991.

Outra figura a quem o autor dedica numerosas páginas é o pintor Gustav Klimt (1862-1918). Figura emblemática do Art nouveau austríaco, Klimt é um dos fundadores do célebre movimento da Secessão de Viena (1897). São de sua autoria algumas das pinturas mais notáveis do Kunthistorische Museum, do Burgtheater, da Universidade (os quadros originaram uma polémica), etc. Distinguem-se também na época os pintores expressionistas Oscar Kokoschka (1886-1980) e Egon Schiele (1890-1918).

"O Beijo", Gustav Klimt

Nos últimos capítulos do livro surgem os compositores Gustav Mahler (1860-1911), na transição do romantismo para o atonalismo, e o expressionista Arnold Schönberg (1874-1951), que com Alban Berg e Anton Webern foram os expoentes da Segunda Escola de Viena.

Muito mais haveria a dizer sobre esta obra fundamental para a compreensão da vida vienense (e austríaca) neste período, mas o espaço impõe limites.

Hitler proclama o Anschluss na Heldenplatz, em Viena

Acrescente-se tão só, e isso o livro não refere porque o acontecimento é posterior à época estudada, que os austríacos receberam entusiasticamente Hitler, uma verdadeira aclamação, quando o Führer entrou em Viena em 1938, por ocasião do Anschluss. É que, na sua maioria, os intelectuais e artistas a que o livro faz referência e que aqui mencionámos eram judeus.

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