Transcreve-se, e comenta-se, o texto de Maria de Fátima Bonifácio (MFB) no PÚBLICO:
Um simples relance pelas últimas votações do Tribunal Constitucional mostra, como já tem sido sublinhado, que as divisões de opinião entre os magistrados que se sentam nesse augusto órgão de soberania não obedecem a puras divisões partidárias.
Isto sugere uma saudável independência dos eleitos
em relação aos partidos que lhes concederam os sufrágios necessários
para que lá chegassem, em particular no que se refere aos magistrados
indicados pela Direita. Verifica-se, com efeito, uma indisfarçável
consonância entre os pronunciamentos do Tribunal e a opinião geral da
Esquerda, respaldada, neste particular, pela opinião do homem comum,
compreensivelmente empenhado em defender o seu rendimento, venha o
dinheiro lá de onde vier.
Esta indiferença pela existência ou não existência de dinheiro, questão que se reputa subalterna perante a preeminência indiscutível dos "Direitos Adquiridos" – ou simplesmente "Direitos" – ; indiferença que deixa perplexo o cidadão minimamente permeável à realidade, ocupa um lugar cada vez mais saliente no discurso da Esquerda, incluindo a do arco da governação, e conduziria, levada às suas últimas consequências lógicas, à recusa de pagar a dívida, que tantos lunáticos e até alguma boa gente reclamam.
Existe, pois, em Portugal um amplo e fundo consenso quanto à prevalência dos nossos direitos sobre os nossos deveres e os nossos meios, um pequeno problema que no entender de alguns se resolverá facilmente fazendo voz grossa na Europa. Nem a deplorável experiência do sr. Hollande levou os socialistas portugueses a compreender que as relações entre Estados se regem pela força dos interesses, e não por solidariedades afectivas ou sequer ideológicas. A parte mais substancial do "programa" de Antonio Costa para reerguer o país depende inteiramente da benevolência europeia, o que só pode inspirar a mais funda preocupação.
O Tribunal Constitucional, ao chumbar reiteradamente (ainda que com uma ou outra incoerência) medidas aprovadas pelo governo e julgadas contrárias à Lei Fundamental, beneficia pois de um larga audiência no país, na exacta medida em que o governo incorre na fúria da Esquerda e até em boa parte da opinião partidariamente desalinhada. Não será demasiado grosseiro dizer-se que os portugueses, de um modo geral, se revêem no Tribunal Constitucional. Mas não maioritariamente por escrúpulo jurídico, antes pelo prosaico e palpável motivo de que o Tribunal constitui uma peça integrante do regime, que até por mera intuição toda a gente percebe que protege as dimensões mais conservadoras da nossa Constituição. O tribunal, ao zelar – e bem – pelo cumprimento da Lei Fundamental, zela, do mesmo passo, pela conservação de toda a "tralha" socialista que nela se contém e que, como escreveu Henrique Raposo, impede a Direita de governar, como tem demonstrado a experiência em curso.
Não obstante, mau grado todos os inconvenientes resultantes dos sucessivos chumbos do TC, a verdade é que o Tribunal não se pode eximir a desempenhar as funções para que foi criado, e ao governo não resta outra solução que não seja, mesmo com muita azia, cumprir pronta e rigorosamente os acórdãos que quase sempre mais não fazem do que condenar medidas que em muitos casos se sabia antecipadamente serem inconstitucionais. A Lei é para respeitar, por dura ou incómoda que seja. Senão, quem amanhã vai punir o assaltante da minha casa?
De nada servindo protestar contra o Constitucional, parece que apenas restar a solução de reformular as suas competências - no âmbito de uma revisão constitucional que produza um texto em que a generalidade dos portugueses se possa finalmente rever e com que todas as forças políticas possam governar.
Seria óptimo mas não é possível. O PS está e estará proibido, pelas suas várias facções esquerdistas, de se entender com o Centro-Direita para beliscar uma Constituição que santifica o Socialismo como o Destino Superior de Portugal. O PS quer a todo o custo preservar o chamado Modelo Social Europeu introduzido a partir de 1976, quando, passados mais de 30 anos, o mundo está irreconhecível, esse mesmo modelo sofre em diversos países reformas que o vão desfigurando, e as populações da maior parte do planeta estão já engalfinhadas numa competição global sem tréguas, incompatível com as disposições que regulavam um mundo relativamente pacato e previsível.
Enquanto o PS se mantiver amarrado ao seu pólo radical, bloqueará toda a reforma constitucional que possa abrir caminho a uma governação mais consentânea com as exigências – e oportunidades – do mundo contemporâneo. A situação portuguesa está completamente bloqueada. Que fazer? Nada. Continuar a empobrecer enquanto esperamos resignadamente que a Europa se condoa... ou que os partidos se desagreguem e o regime chegue ao fim. Veremos o que então sobra de Portugal.
Este texto de MFB, que ela pretende virtuoso, encontra-se ferido de várias falácias. A partir dos meus sublinhados, comento:
1) Ao contrário do que afirma a autora, parece que a Esquerda, ou, pelo menos, a maior parte dela, não se recusa a pagar a dívida, mas pretende apenas reestruturá-la. Deveria saber MFB que a dívida portuguesa, nas circunstâncias actuais (Pacto de Estabilidade e Convergência e Tratado Orçamental), é impagável. Ainda não houve quem demonstrasse o contrário;
2) É evidente que as relações entre Estados se regem por interesses. Só que a União Europeia se pretende (ou pretendeu) um Estado, constituído por diversas parcelas que deveriam ser solidárias. Era a ideia dos Estados Unidos da Europa, como são os Estados Unidos da América, ou do Brasil. Aquilo a que se assiste agora é à colonização de vários países pela Alemanha;
3) Não sei quem é Henrique Raposo, nem onde ele se louvou para afirmar que a "tralha" socialista impede a Direita de governar. Desde há três anos que a Direita vem pautando a sua governação pela ignorância dos direitos dos portugueses, ou dos Direitos Adquiridos, só não indo mais além pelo travão do Tribunal Constitucional, cujas decisões MFB considera deixarem perplexos os cidadãos minimamente permeáveis à realidade;
4) A revisão constitucional que MFB deseja, para que a generalidade dos portugueses se possa rever no texto, é certamente aquela que consagre a destruição do Estado Social;
5) Não serão as facções esquerdistas do PS que impedem que ele se entenda com o Centro-Direita. Penso que até já se entendeu demasiado. O que MFB não pode pretender é que o PS, deixe de ser um partido minimamente socialista, com um projecto que justifique o seu nome, e se transforme em mais um partido da Direita, o que lhe retiraria, obviamente, o direito à existência;
6) É verdade que o Modelo Social Europeu, de algum modo consagrado na nossa Constituição, já sofreu reveses em alguns países, embora não tão profundamente como em Portugal. Tal não se deve, como se apregoa, à sua insustentabilidade mas à desregulação do sistema financeiro internacional, protagonizada por Thatcher e Reagan, e porque se afigurou desnecessário ao mundo capitalista cultivar esse modelo social susceptível de seduzir os povos do Leste, numa altura em que a União Soviética desapareceu do mapa. Já não há ninguém para convencer, ao que parece, embora não tenhamos ainda chegado ao Fim da História;
7) A competição global sem tréguas que MFB refere, e contra a qual não parece insurgir-se, só poderá conduzir a uma guerra mundial. Veremos, então, o que sobra de Portugal.
Afortunadamente, verifica-se, portanto, uma relação difícil entre as conclusões de MFB e a verdade dos factos. QED!
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