sábado, 20 de março de 2010

SADDAM HUSSEIN: IN MEMORIAM



Em 20 de Março de 2003, há precisamente sete anos, uma coligação internacional liderada pelos Estados Unidos da América (governo de George W. Bush) e pelo Reino Unido (governo de Tony Blair) atacou e invadiu o Iraque. O pretexto invocado foi possuir este país armas de destruição massiva, o que constituiria uma ameaça à paz mundial. Houve em tal argumento uma trágica e suprema ironia: o primeiro e único país (até hoje) a utilizar a bomba atómica, com a agravante extrema de o fazer sobre cidades habitadas (Hiroxima e Nagasáqui), foi a América. Por outro lado, existem no Oriente (Médio e não só) países comprovadamente possuidores de armas nucleares: Israel, União Indiana, Paquistão, China, pelo menos. Sabiam os países protagonistas desta aventura que a questão das armas de destruição massiva era falsa. Tal fora sobejamente demonstrado pelo director-geral da Agência Internacional de Energia Atómica Mohamed El Baradei, pelo inspector britânico do armamento no Iraque David Kelly (que apareceu estranhamente "suicidado" num bosque nos arredores de Londres), etc. Honra seja feita à França e à Alemanha que recusaram participar nessa farsa, e evoque-se o famoso discurso proferido no Conselho de Segurança das Nações Unidas pelo ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Dominique de Villepin, que aí recebeu, pela primeira vez na história da organização, uma ovação estrondosa. O próprio papa João Paulo II, receando o pior, recebeu no Vaticano o vice-primeiro-ministro iraquiano Tareq Aziz e enviou a Bagdad o cardeal Roger Etchegaray, vice-decano do Sacro Colégio.
 
Nada, contudo, demoveu George Bush, incondicionalmente apoiado por Tony Blair, da sua pretensão de invadir o Iraque. O pretexto consistia, pois, no perigo de existência de armas nucleares e na piedosa intenção de democratizar o Iraque; a razão verdadeira era mais prosaica e menos confessável: a apropriação das reservas petrolíferas do país. Houve até alguém (cujo nome obviamente já esqueci) que disse na altura, aludindo ao conflito israelo-palestiniano, que o caminho para Jerusalém passava por Bagdad. Essa gente – e devem incluir-se Dick Cheney, Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz, e toda uma legião não só na América mas também na Europa - não teve, nem tem, o menor sentido de decência e de vergonha e deveria ser submetida a julgamento em tribunal internacional (como em Nuremberga) por crimes contra a Humanidade.
 

O Iraque, estado cujas fronteiras foram geometricamente traçadas pelos interesses das potências ocidentais (e democráticas?!?) após a queda do Império Otomano, não corresponde, de maneira alguma, ao que se entende por uma nação. Albergando uma multiplicidade de etnias, de línguas e de religiões, de muçulmanos sunitas e xiitas a cristãos de várias obediências, de árabes a curdos e até judeus, falando árabe, curdo e, em escala mais reduzida, assírio, caldeu e arménio, o país era um mosaico heterogéneo, apenas possível pela existência de um forte poder central, autor, certamente, de muitas arbitrariedades. Sempre assim foi (no Oriente sobretudo) e sempre assim será, em casos análogos, no decorrer da História.
Pretendia a coligação "democratizar" o Iraque. Esta palavra, nos nossos dias, só poderá fazer-nos tremer, pois mais não significa do que alargar a economia de mercado na sua expressão ultra-liberal a países fora da influência do "mundo ocidental". Já havia exemplos anteriores, como o célebre bombardeamento da Jugoslávia, em 1999, devido especialmente à insistência da judia-checa-americana Madeleine Albright.
Decorridos 7 (sete) anos, ao observarmos o Iraque constataremos que continua ocupado (até quando?) por tropas estrangeiras, que a invasão devastou praticamente toda uma região, a Mesopotâmia, berço de civilizações e célebre desde a História mais antiga, que foram danificados ou destruídos locais ou peças arqueológicas de valor inestimável, insubstituíveis para o estudo das épocas remotas, que se registou uma pilhagem de objectos artísticos sem precedentes nos tempos mais recentes. A juntar a tudo isto, que não é pouco, deve contabilizar-se a tragédia humana: esta guerra, e a inevitável guerrilha subsequente, provocou já milhões de mortos, feridos, estropiados, loucos, desalojados, deslocados, enfim, todo um cortejo de horrores que nenhum pintor (que eu saiba) ousou ainda retratar na tela. Sendo os iraquianos as principais vítimas, não podemos esquecer os soldados estrangeiros que, até hoje, pagaram, muitas vezes com a própria vida, o preço de uma guerra motivada pela ganância dos homens que, ao morrer, nada levarão no seu caixão além do próprio corpo. Porquê, então, toda esta obstinação do lucro, toda esta loucura de dominação, toda esta corrida desenfreada para o abismo? É uma interrogação pertinente que deverá ser colocada aos especialistas capazes de lerem os desígnios da "alma humana".
Feisal I
Nasceu o Iraque das cinzas do Império Otomano e teve como primeiro rei Feisal I (de 1921 a 1933), a cujo pai, Hussein Bin Ali, Grande Xerife de Meca fora prometida pelos ingleses a soberania de um vasto Estado árabe. Nunca o Grande Xerife reinou sobre semelhante Estado e acabou mesmo por perder Meca a favor da Casa de Saud, que passou a governar a quase totalidade da Península Arábica, dita agora Arábia Saudita. Feisal começou por ser, efemeramente, rei da Síria, e foi depois, devido às negociações anglo-francesas, transferido para o trono do novo país, o Iraque. Sucedeu-lhe seu único filho varão Ghazi, que morreu num misterioso acidente de viação em 1939. Dado que o seu único filho Feisal II (1935-1958) era ainda uma criança, assumiu a regência o príncipe Abdul Ilah, seu tio. Começou a governar em 1953 e foi assassinado, com toda a família real, aquando do golpe de estado de 1958, conhecido como Revolução de 14 de Julho, que proclamou a República. O exército, que tomou conta do poder, colocou na presidência o autor do golpe, o general Abdul Karim Qassim, que foi por sua vez derrubado em 1963 pelo coronel Abdul Salam Arif. Este morreu em 1966 e seu irmão, Abdul Rahman Arif sucedeu-lhe na chefia do Estado.


Feisal II
Assim viveu o Iraque, país artificial e heterogéneo, entre intentonas, golpes de estado, revoluções, já no tempo da monarquia e nomeadamente depois da proclamação da república. Em 1968, Arif foi derrubado pelos dirigentes do Partido Socialista Árabe Ba'ath (em árabe, Renascimento), fundado em Damasco, em 1940, pelos intelectuais sírios Michel Aflaq, um cristão, e Salah al-Bitar, um muçulmano sunita. O Ba'ath criou ramos em diversos países árabes, mas, além da Síria, onde ainda hoje está no Poder, apenas viria a triunfar no Iraque, onde Ahmed Hassan al-Bakr assumiu então a presidência (de 1968 a 1979). Em 1979, o vice-presidente Saddam Hussein al-Tikriti, que adquirira progressivamente o controlo do país, afastou o seu mentor e tornou-se presidente da república.
 

Ahmed al-Bakr
Não é possível resumir em algumas linhas o que foi o consulado atribulado de Saddam Hussein Abd al-Majid al-Tikriti. Nascido em Al-Awja (perto da cidade de Tikrit) a 28 de Abril de 1937, seria enforcado a 30 de Dezembro de 2006, na base militar iraquiana de Kadhimiya, a nordeste de Bagdad. É curioso e estranho o percurso político de Saddam Hussein. Num Iraque sujeito, desde a sua criação, às pressões externas britânicas, soviéticas, americanas e do mundo árabe, e às hostilidades internas de sunitas em relação a xiitas, de árabes em relação a curdos, de chefes tribais em relação às populações urbanas, de nómadas em relação a camponeses, Saddam procurou, ainda como vice-presidente da república e do partido (ramo iraquiano), apaziguar tensões e atingir um nível de estabilidade indispensável às reformas que pretendia implantar. Tarefa ciclópica, só possível promovendo, em simultâneo, uma elevação do nível de vida da população (num país de vastos recursos, nomeadamente o petróleo) e uma repressão violenta dos opositores.
Diga-se, en passant, que, mercê das muitas e anteriores interferências da União Soviética na política do Iraque, Saddam foi considerado pelos Estados Unidos, durante os anos 60 e 70, como um baluarte anti-comunista no Médio Oriente, onde predominava ainda o pan-arabismo socialista da época de Nasser. Considerando-se um político progressista, procurou a convergência das várias tendências do Ba'ath, tornando-o no motor das reformas que permitiriam o desenvolvimento nacional. Deve-se-lhe a criação de serviços sociais, inéditos em qualquer país da região: a Campanha Nacional para a Erradicação do Analfabetismo, a Educação Obrigatória Gratuita, a instituição de estabelecimentos de ensino de todos os níveis (centenas de milhares de iraquianos aprenderam a ler neste período), o apoio às famílias dos soldados, a hospitalização gratuita, a concessão de subsídios aos agricultores. Criou também o mais moderno serviço de saúde pública do Médio Oriente, tendo sido por isso agraciado com um prémio da UNESCO. Deve-se-lhe igualmente a criação de infra-estruturas indispensáveis como a rede de estradas ao longo do país, o desenvolvimento industrial acelerado, a electrificação de todas as cidades, a reforma agrária, a mecanização da agricultura, a instalação de cooperativas agrícolas, etc. Para financiar este ambicioso programa, Saddam superintendeu, em 1 de Junho de 1972, a nacionalização das empresas petrolíferas internacionais que operavam no Iraque. Esta operação aumentou largamente os proventos do Iraque, e provocou a crise energética mundial de 1973. O desenvolvimento do país foi tão intenso durante a década de 70, que dois milhões de pessoas, designadamente do mundo árabe mas até da Jugoslávia vieram trabalhar para o Iraque.
Sendo laico (um princípio do Ba'ath), Saddam estabeleceu a liberdade religiosa para todos os cultos, deu mais direitos às mulheres, criou um sistema de justiça ao estilo ocidental e aboliu (salvo para casos excepcionais) os tribunais da lei islâmica, a Sharia.

Hafez al-Assad
Em 1979, o presidente Al-Bakr firmou uma aliança com a Síria (governada por Hafez al-Assad, também do partido Ba'ath), para a união dos dois países, resultando que essa União seria presidida por Al-Bakr e vice-presidida por Assad. Decorreria desta situação a relegação de Saddam para uma posição secundária. Este, em 16 de Julho de 1979, forçou Al-Bakr a renunciar, alegadamente por motivos de saúde, e assumiu a chefia do Estado, do exército e do partido. Os grandes problemas do já instável Iraque começam verdadeiramente a partir deste momento. Saddam, que se apoia na população sunita, minoritária, pertencendo à classe média e habitando o centro do país, tem de enfrentar os curdos, do norte, e os xiitas, do sul, que passam a constituir uma oposição ao regime. Sentindo a sua liderança ameaçada, Saddam começa a ver conspiradores por toda a parte, iniciando uma repressão que lhe aliena muitas das simpatias iniciais. Recorre, aliás como é usual no mundo árabe (e não só) ao culto da personalidade, a sua imagem é amplamente difundida por todo o país, o Raïs julga-se descendente de Nabucodonosor e pretende para o Iraque o prestígio do antigo Califado Abássida de Bagdad.
Também em 1979 tem lugar um acontecimento que modificaria, até hoje, o status quo da região: a revolução que depôs o Xá Muhammad Reza Pahlevi e instalou um regime islâmico no Irão, sob a autoridade suprema do ayatollah Khomeini. As relações de Saddam com Khomeini eram péssimas, do tempo em que o ayatollah, em fuga do Irão e exilado no Iraque, tentara derrubar Saddam, que finalmente o expulsara para França. Em 1980, o Iraque invade o Irão, com o apoio tácito dos Estados Unidos, da União Soviética, da Europa e do mundo árabe. Todos receavam a imprevisibilidade política da República Islâmica e do seu Imam, e sobretudo o abastecimento do petróleo. A Guerra Irão-Iraque durou oito anos, de Setembro de 1980 a Agosto de 1988 e causou mais de meio milhão de mortos, sem quaisquer alterações territoriais (o Iraque reivindicava o Khuzistão), os prejuízos materiais foram incalculáveis e o regime de Khomeini não foi derrubado como pretendiam Saddam e os seus apoiantes. Foi uma guerra mortífera e inútil não só para os directamente envolvidos mas para os apoiantes de ambos os lados.
São extensos os pormenores que levaram à Guerra Irão-Iraque, também chamada Primeira Guerra do Golfo como são também complexos os motivos que determinaram a invasão e anexação do Kuwait pelo Iraque em Agosto de 1990. Diga-se apenas que o Iraque sempre considerara que o Kuwait fazia historicamente parte do seu território e que teria sido garantida a Saddam a não intervenção americana relativamente a essa invasão pela então embaixadora americana em Bagdad April Glaspie. Mas o que veio a acontecer foi a criação de uma coligação internacional, liderada pelos Estados Unidos e sancionada pelas Nações Unidas, que libertou o Kuwait em Fevereiro de 1991 e ocupou parte do território iraquiano. Terminava assim a Segunda Guerra do Golfo. Foram impostas sanções ao Iraque, limitadas as suas exportações de petróleo, reduzida a circulação no seu espaço aéreo e designados inspectores da ONU para verificar da existência de armas de destruição massiva, mas Saddam manteve-se no poder, pois julgou-se que a sua queda poderia constituir um mal maior, como acabaria por acontecer mais tarde.
Nos anos subsequentes, em que Saddam se converteu em muçulmano fervoroso, mantiveram os Estados Unidos (Bill Clinton) a esperança de que ele fosse derrubado pelos próprios iraquianos, atendendo à progressiva repressão do regime. Tal não aconteceu. O novo presidente americano, George W. Bush, por razões já apontadas, com o apoio do Reino Unido mas sem o aval da ONU, decidiu invadir o Iraque e derrubar Saddam Hussein em 20 de Março de 2003. A coligação "possível", com um poder bélico incalculavelmente superior ao destroçado exército iraquiano que se limitou a uma pequena luta de guerrilha, tomou Bagdad em 9 de Abril seguinte. Os Estado Unidos fizeram, pelo menos, duas tentativas para matar Saddam, mas enganaram-se nos alvos e, em seu lugar, mataram dezenas de pessoas inocentes. Em 13 de Dezembro, Saddam foi capturado numa quinta perto de Tikrit e transportado para uma base americana em Bagdad, tendo o anúncio da prisão sido efectuado no dia seguinte pelo administrador americano do Iraque Paul Bremer. Foi então constituído um Tribunal Especial iraquiano para julgar Saddam, e colaboradores, por crimes contra a humanidade. Durante o julgamento foi contestada a autoridade do tribunal, assassinados vários advogados de defesa e testemunhas e o próprio juiz presidente foi substituído. Em 5 de Novembro de 2006, Saddam foi considerado culpado dos crimes de que era acusado e condenado à morte por enforcamento que teve lugar em 30 de Dezembro, sendo sepultado no dia seguinte na sua aldeia natal de Al-Awja.


Destruição de Bagdad
As consequências da invasão do Iraque são sobejamente conhecidas. Tratou-se de uma guerra desencadeada com argumentos comprovadamente falsos e provocou, e continua a provocar, danos humanos e materiais sem paralelo em comparação com conflitos congéneres. Para mais, a decisão do idiota Paul Bremer de dissolver a administração pública e o exército lançou o país no caos. A contabilidade da invasão apresenta um saldo tragicamente negativo: aumentou inequivocamente a instabilidade no Médio Oriente, em nada contribuiu para a paz na Palestina (como alguém se atreveu a dizer), favoreceu o regime iraniano, devido ao apoio que recebe da população xiita do Iraque, acabou com a convivência pacífica dos diversos credos no país (nunca, antes da invasão, alguém perguntara ao vizinho qual era a sua religião), provocou em todo o mundo árabe e islâmico um verdadeiro ódio ao Ocidente, em especial aos EUA e ao Reino Unido, permitiu a instalação na região da Al-Qaïda até então combatida por Saddam, cavou um fosso entre muçulmanos sunitas e xiitas, agravou o problema curdo, fomentou o fundamentalismo islâmico, e por aí fora. Claro que permitiu o controlo do petróleo pelas companhias internacionais e permitirá que grandes empresas ocidentais obtenham contratos milionários para a reconstrução do país. Mesmo numa cínica óptica ocidental-liberal, não chega, como parece ser hoje um consenso universal.
Saddam Hussein não terá sido, propriamente, um modelo de virtudes, com certeza que não. Mas importa recordar a data que hoje se evoca. O homem ambicioso, todavia empenhado no progresso do Iraque, durante os primeiros anos de governação, deu lugar a uma personagem megalómana, permanentemente em fuga – dos outros, por receio de um atentado, e de si mesmo, por ter perdido o leme da própria consciência. Porém, no momento da derrota face a um inimigo omnipotente, e após ter encenado uma resistência obviamente inexistente, permaneceu no seu país, quando lhe fora dada a oportunidade de fuga. Capturado devido a uma delação, foi julgado pelos vencedores (Vae victis, diziam os romanos) e (antecipadamente) condenado à morte. Pesaram-lhe directamente sobre a cabeça crimes horríveis e injustificáveis massacres, porque ele, e só ele, praticamente, incarnava todo um regime. Suscita-se, assim, uma inevitável questão: quantas atrocidades terão praticado, ainda que indirectamente, através de corpos intermédios, tantos governantes "democráticos" do passado e do presente? E nunca julgados porque foram vencedores. A História o registará, talvez...

Mencione-se, por curiosidade, que Saddam Hussein também se dedicou à literatura, tendo escrito "anonimamente", em 2000, o romance Zabiba e o Rei, que constituiu um sucesso no mundo árabe e foi traduzido para línguas europeias, entre as quais a portuguesa em 2003.

1 comentário:

Anónimo disse...

O julgamento de saddam foi uma farsa e foi julgado por iraquianos a soldo da América.

A paz não voltará ao Iraque enquanto estiverem no poder os actuais lacaios do imperialismo. Possivelmente terá de partir-se o país que é isso exacvtamente o que eles querem.