sábado, 21 de março de 2009

EDIFÍCIO YACOUBIAN


O EDIFÍCIO YACOUBIAN



Quando no Cairo, vindos da praça Tala’at Harb, caminhamos pela rua Tala’at Harb em direcção à praça Uraby, o segundo prédio à nossa esquerda, o nº 34, depois de cruzarmos a rua Abdel Khaliq Tharwat, é o agora famoso Edifício Yacoubian.(1)


Mandado construir em 1934 por um rico negociante arménio – Hagop Yacoubian - este prédio luxuoso do centro da cidade foi habitado por figuras ilustres da política e dos negócios e também por alguns estrangeiros até à revolução de 1952, que levou ao poder Gamal Abdel Nasser. Derrubada a monarquia, nacionalizado o Canal de Suez, substituída a classe dirigente e expulsos os estrangeiros, o Edifício passou a ser habitado por famílias de jovens oficiais revolucionários e as arrecadações existentes no terraço, uma por cada apartamento, passaram a albergar famílias pobres da província, chegadas ao Cairo em busca de melhor sorte. Conservando ainda traços de um passado distinto e ocupado hoje por escritórios, residências, consultórios, até uma modesta pensão - o Brothers Hotel – e lojas ao nível da rua, o Edifício Yacoubian, tornou-se novamente célebre, agora à escala mundial, por nele viverem ou trabalharem as principais personagens do romance homónimo do escritor e jornalista egípcio Alaa Al Aswany. Aliás, também parte da acção do romance se desenrola no Edifício, incluindo o assassinato do jornalista Hatim Rachid por um soldado seu amante, sendo que neste caso o autor ficciona a própria realidade, já que o prestigiado jornalista Samy N. ali foi assassinado, há alguns anos, em circunstâncias idênticas.


Publicado em árabe em 2002, com cem mil exemplares vendidos em alguns meses, e já traduzido em 27 línguas, o «Edifício Yacoubian» («’Imarat Ya’qubyan», no original), foi passado ao cinema em 2006, numa realização de Marwan Hamed, tendo no elenco Adel Imam, o mais famoso actor egípcio e um dos mais notáveis de todo o mundo árabe.


Sem exagero, poderá dizer-se que este livro nos dá um retrato da sociedade egípcia dos nossos dias com uma acuidade, e também com uma coragem, como não se via desde os romances do falecido Naguib Mahfuz, especialmente da sua Trilogia do Cairo.


Os alvos de Al Aswany, que iniciou a vida profissional como dentista, com consultório precisamente no dito edifício, são a corrupção e o oportunismo, o fundamentalismo islâmico, o terrorismo e a repressão policial, a hipocrisia moral e religiosa, a intolerância e a ignorância. Ao enfrentar e afrontar os principais tabus da sociedade egípcia o escritor primeiro e o realizador depois desencadearam a ira de muitas figuras religiosas e políticas que se acharam visadas na obra. O impacto do filme levou mesmo 112 deputados a pedir no Parlamento a introdução de cortes, o que foi recusado pelo realizador.


Na galeria de personagens que Al Aswani convoca para a sua obra, e que são modelos de pessoas reais do Egipto dos anos noventa do século passado, já que a acção do romance se situa no início da primeira Guerra do Golfo, temos em primeiro lugar o idoso e europeizado engenheiro Zaki Bey Al Dessuki, nostálgico do passado pré-Revolução, amante de whisky e de mulheres, porventura a figura central da estória, e que é personificado na tela pelo inolvidável Adel Imam. Exemplo flagrante dos tempos que correm é Hajj Muhammad Azzam, engraxador de rua na juventude e hoje um poderoso homem de negócios, que sob a capa de uma religiosidade impecável alcança, à custa do tráfico de droga, a situação de milionário e a respeitável posição de deputado ao Parlamento pelo partido governamental. Taha Al Chazli, o filho do porteiro do Edifício, aluno brilhante que não consegue ingressar na Academia de Polícia devido á profissão "inferior" do pai, é outra figura típica destes anos agitados da vida cairota; admitido pelas suas boas notas na universidade é aí aliciado pela Jama’a Al Islamiyya, envolve-se em manifestações estudantis, é detido e violado na prisão, e acaba por aderir ao jihad, vindo a morrer num atentado terrorista. Buthayna Al Sayyed, a antiga namorada de Taha, que para sustentar a família aceita manter uma relação sexual com o patrão, desde que (a conselho da mãe) conserve a virgindade, e que, pelo evoluir das circunstâncias, acaba por casar com o velho Zaki Bey, ilustra o jogo de relações entre o amor e o poder, na luta pela sobrevivência.


Outra personagem trágica do romance é Hatim Rachid. Jornalista famoso de um diário de língua francesa, iniciado no sexo ainda muito jovem por um criado núbio, torna-se cliente assíduo dos soldados que engata nas ruas do Cairo, acabando por morrer assassinado, num momento de perda de controlo, às mãos de um conscrito com quem finalmente estabelecera uma relação estável. Abd Raboh, o soldado assassino, é também vítima dos preconceitos morais da sociedade, numa altura em que um certo puritanismo ganha terreno no mundo muçulmano, graças à crescente e deliberada confusão entre o islão político e o islão religioso. Jovem provinciano a cumprir o serviço militar no Cairo, Abd Raboh acede às propostas de Hatim, mas quando lhe morre inesperadamente o filho, a mulher, que não ignora a relação homossexual com o jornalista, faz-lhe crer que a morte da criança é o castigo de Deus pelos seus pecados, e daí ao desenrolar da tragédia é um passo.


Entre as numerosas figuras que desfilam neste palco com mais sombras do que luzes, merecem ainda relevo o Cheikh Samman, que tenta justificar um aborto com argumentos religiosos, e Kamal Al Fawly, político astuto e traficante de influências, que serve de intermediário para receber, em nome do "Grande Homem" (que nunca é identificado), as comissões dos negócios mais vultosos do país.


O filme de Marwan Hamed segue de perto, tanto quanto é possível, o romance de Al Aswani, mas introduz-lhe uma alteração significativa num momento crucial: não é o soldado Raboh que mata o jornalista seu amante mas um rapaz desconhecido que aquele leva a casa num instante de desespero. Para esta modificação, que desvirtua o enredo do livro, surgem duas hipóteses: ou o realizador pretendeu dar ao espectador a imagem de um homossexual promíscuo pronto a deitar-se com o primeiro homem que aparece, independentemente de qualquer ligação afectiva; ou achou inconveniente para o grande público mostrar como um acontecimento natural (a morte de uma criança) pode ser conotado no Egipto de hoje com uma questão religiosa (um castigo de Deus), havendo por isso que encontrar uma solução alternativa para um desfecho, quiçá imprevisível, desta sequência da obra.


Aliás, já ao longo do romance, Al Aswani, tão empenhado no retrato fiel (e conseguido) das suas personagens, descreve os homossexuais, e no caso particular o jornalista Hatim Rachid, como figuras efeminadas e susceptíveis de provocarem repulsa ou desprezo, mesmo quando mantêm uma conduta irrepreensível e exercem exemplarmente as suas funções. Esta visão do romancista não corresponde porém à realidade, já que não é de forma alguma o que se verifica no Egipto, país bastante condescendente em matéria de costumes, apesar da ascensão do islamismo, quando não se ultrapassam as aparências que a religião impõe, a moral exige e a prudência aconselha.


Verdadeira metáfora da sociedade egípcia, o «Edifício Yacoubian» provocou um terramoto social no país, não só pelo perfil das personagens como pelas declarações que Al Aswani coloca nas suas bocas, algumas de vincado cariz político, como esta afirmação de Zaki Bey, porventura um alter ego do autor: "Todo aquele que gosta de Abdel Nasser ou é um ignorante ou um interesseiro. Os Oficiais Livres eram um bando de vadios saídos do refugo da sociedade... Nahhas Pacha era um homem bom. Permitiu-lhes que entrassem na Academia Militar e o resultado foi a sublevação de 1952. Governaram o Egipto, roubaram-no, despojaram-no. Açambarcaram milhões. É normal que gostem de Abdel Nasser. Era o chefe do bando".


O livro está finalmente traduzido em português (ignoro a qualidade da tradução, mas receio sempre pelas transliterações dos nomes árabes), mas o filme ainda não passou em Portugal. E apesar de todos os protestos Alaa Al Aswani não foi preso nem atentaram ainda contra a sua vida...


Há quem afirme no Cairo, nomeadamente alguns frequentadores do café Zahret al-Bustan, lugar de tertúlia intelectual nas traseiras do Café-Restaurante Riche (uma preciosidade fundada em 1908), que o verdadeiro autor do livro não terá sido Alaa Al Aswani mas seu pai, o grande escritor egípcio Abbas Al Alswany, falecido há anos e cujas obras não foram vertidas para línguas europeias. Aliás, no salão interior do Café Riche existe uma galeria de retratos de grandes escritores e artistas egípcios onde figura exactamente Abbas Al Aswany, pontificando ao fundo do salão, em enorme fotografia autografada, o Nobel egípcio Naguib Mahfuz. O livro estaria já concluído ou em vias disso quando Abbas faleceu e o filho ter-se-ia aproveitado da situação para o publicar em seu próprio nome, sustentam os defensores da tese da usurpação de autoria, salientando que as obras posteriores de Alaa são de nível inferior. Confesso que não li ainda as outras obras de Alaa Al Aswany e por isso não posso formular qualquer juízo crítico. Mas o que verdadeiramente interessa é que o "Edifício Yacoubian" não só é um retrato fiel da sociedade egípcia contemporânea como uma notável obra literária.


(1) O edifício foi projectado pelo arquitecto arménio Garo Balian (1878-1961).



1 comentário:

Anónimo disse...

Interessante a tensão que se apercebe nas suas observações ora desculpabilizadoras (país condescendente,etc) ora realistas (puritanismo crescente,tratamento do homo como efeminado,etc). Infelizmente parece-me que no mundo árabe, senão muçulmano em geral,as meias tintas que permitiam a tal "condescendência" (a escolha da palavra é já sintomática) estão a esfumar-se e fica a luz crua da intolerância, em matéria de costumes e noutras, que lamentavelmente cada vez mais avança sob a tutela de uma fanatização das sociedades islâmicas. Lá se vão as memórias dos bons tempos otomanos, da África do Norte do Gide e do Presidente Teixeira Gomes,etc. A irrelevância na política internacional tinha as suas vantagens...