domingo, 2 de março de 2025

SOBRE A ORDEM DE MALTA E NÃO SÓ

O embaixador Fernando Ramos Machado acabou de publicar Textos sobre a Ordem de Malta e Outros Temas, em que reúne textos que, na sua maioria, serviram de base a conferências apresentadas na Sociedade de Geografia de Lisboa, agora corrigidos, reformulados ou aumentados, e a que, oportunamente, fiz referência neste blogue.

Divide-se o livro em duas partes: 

A I Parte (Três Damas Ilustres), aborda os 200 anos da composição de Dona Branca, de Almeida Garrett, a conversão da rainha Cristina da Suécia e o estatuto de Macau, reformulado no tempo de D. Maria II. 

A II Parte (Trilogia Maltesa), trata do crepúsculo da Ordem de Malta, no tempo de D. João VI, de três  (+ 1) Grão-Mestres portugueses e de uma "Ordem Ecuménica de Malta" em São Tomé e Príncipe.

No Capítulo I, o texto sobre o poema de Garrett (1826) começa por nos informar acerca da infanta D. Branca, filha primogénita de D. Afonso III de Portugal e de D. Beatriz de Castela, que chegou a ser encarregada de missões diplomáticas no tempo de seu irmão D. Dinis. Não foi monja cisterecience no Mosteiro de Lorvão mas sua Senhora e Protectora. Viria, contudo, a professar no Mosteiro de Holgas (Las Huelgas), em Burgos, em 1295. Teve amores com o cavaleiro Pero Esteves Carpinteiro (ou Pero Nunes Carpinteiro), de que nasceu um filho ilegítimo, Juan Nunes de Prado, que foi Mestre da Ordem de Calatrava. Em consequência do relacionamento com os mouros do Algarve, D. Afonso III foi amante de Madragana ben Aloandro (depois de baptizada, Mór Afonso), que era filha de Aloandro ben Bakr, último alcaide de Faro. O autor refere em Post scriptum que, depois de realizada a conferência sobre este tema, teve conhecimento do "romance histórico" O segredo de Afonso III (2011), de Maria Antonieta Costa, em que esta refere que o "segredo" de Afonso III era a sua ligação homossexual com o seu jovem pajem mouro Abdul-Malik, para a qual Madragana serviria de fachada. [A minha edição de Dona Branca (Obras de Almeida Garrett Volume II, 1963), menciona o prólogo de Garrett à 2ª edição, em que o poema passa de 7 para 10 cantos, escrito na Cruz Quebrada em Agosto de 1848]. A figura de D. Branca serviu de tema à peça de teatro O Almançor Ben-Afan, último rei do Algarve (1840), de José Freire de Serpa Pimentel e à ópera Donna Bianca (1888), de Alfredo Keil.

O Capítulo II é dedicado à conversão da rainha Cristina da Suécia (1626-1689) ao catolicismo, atitude que assombrou o mundo da época. Filha de Gustavo II Adolfo, subiu ao trono com apenas seis anos, tendo ficado como regente o conde Axel Oxenstierna. Em 1647, o embaixador sueco em Lisboa, Lars Skytte, converteu-se ao catolicismo, e a rainha seguiria os seus passos em 1654, depois de ter abdicado em seu primo, que se tornou Carlos X Gustavo. Na decisão de Cristina pesou a influência do padre jesuíta António de Macedo, que fazia parte da missão de João Pinto Pereira, embaixador de Portugal em Estocolmo. Muito curioso o percurso de Cristina, que abandonando a Suécia, se estabeleceu em Antuérpia, depois Bruxelas e finalmente Roma, onde morreu. Nunca casou, mas teve várias amizades femininas, e até masculinas. Em Post scriptum, o autor formula a hipótese de que a figura representada no célebre quadro "Palas Atena", de Rembrandt (e de um seu discípulo?), e que se encontra no Museu Gulbenkian, em Lisboa, seja a rainha Cristina. Admite-se que a rainha tenha tido contactos com o famoso pintor, concorrendo para a suposição o facto de o quadro ser também designado por vezes como "Retrato de Alexandre" e Cristina professar uma ilimitada admiração por Alexandre Magno.

No Capítulo III o autor trata da clara afirmação da plena soberania portuguesa sobre Macau em 1849, no reinado de D. Maria II. É historiado o passado desse território, desde que os portugueses se estabeleceram contínua e pacificamente em Macau em 1557 até à transferência de Macau para a China em 1999. O estatuto da região como "província ultramarina", tal como estudámos, não era de facto transparente antes de 1849, quando foi assassinado o governador Ferreira do Amaral. Nessa data, o governo português reivindicou a integridade dos Direitos de Soberania da Coroa sobre aquele estabelecimento, cujo reconhecimento foi efectuado pelo Tratado de Comércio e Navegação Luso-Chinês de 1887. As relações diplomáticas de Portugal com a China foram rompidas em 1949 (com o advento de Mao Tsé -Tung) e restabelecidas em 1979. Em Post scriptum é mencionado o artigo 5º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau  (RAEM) estipulando que «Na RAEM não se aplicam o sistema e as políticas socialistas, mantendo-se inalterados durante cinquenta anos o sistema capitalista e a maneira de viver anteriormente existentes».

Os três Capítulos da II Parte (IV a VI), a Trilogia Maltesa, serão comentados em conjunto.

O embaixador Ramos Machado fornece-nos uma panorâmica da Ordem de Malta, especialmente depois de Bonaparte se ter apossado da ilha, e destaca a presença dos portugueses que exerceram o cargo de Grão-Mestre. 

A Ordem Hospitalária de São João (Baptista) de Jerusalém, depois chamada Ordem Soberana Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta, foi criada em Jerusalém no princípio do século XII por Frei Gerardo Tum, com a missão de assistir e proteger os peregrinos na Terra Santa, no tempo das Cruzadas. Devido às conquistas muçulmanas, a Ordem mudou-se depois para São João de Acre e mais tarde, sucessivamente, para Chipre, para Rodes e finalmente para Malta, por cedência do imperador Carlos Quinto. Após Bonaparte ter tomado a ilha de Malta, em 1798, praticamente sem resistência, o Grão Mestre Ferdinand von Hompesch partiu para Trieste com alguns cavaleiros, enquanto outros se acolheram à protecção do czar Paulo I da Rússia. A Ordem de Malta não foi, todavia, abolida.

«Quando chegou a São Petersburgo a notícia da queda de Malta, os membros do Grão-Priorado Russo exprimiram a sua indignação, decretando, a 26 de Agosto de 1798, a destituição de Hompesch, e convidando os outros Priorados a aderir a essa decisão. Finalmente, a 7 de Novembro do mesmo ano, o Czar viu satisfeito o sonho que há muito acalentava: todos os Cavaleiros presentes em são Petersburgo elegeram-no Grão-Mestre da Ordem de São João de Jerusalém. Pela primeira e única vez na História, um soberano tornava-se também Grão-Mestre da Ordem de Malta. Um mês depois, criou, ao lado do já existente Grão-Priorado Russo, católico, um novo, ortodoxo ou, mais propriamente, não católico. A eleição de Paulo I foi, manifestamente, ilegal, já que o Czar era leigo, casado e ortodoxo. Além disso, o Papa não fora consultado e Hompesch, em Trieste, não se demitira; acabou por fazê-lo só a 6 de Julho de 1799, forçado pelo Imperador Germânico, Francisco II, de quem, em última análise, era súbdito e para quem as relações com Paulo I se revestiam da maior importância.» (p. 55)

«Um acontecimento imprevisto veio alterar substancialmente a situação na Europa - a 23 de Março de 1801, Paulo I era assassinado. Alexandre I retomou o título de Protector da Ordem de São João de Jersalém, mas procurou pôr termo à situação irregular em que seu pai a colocara. Desistiu de pretensões sobre a ilha e, não podendo ser Grão-Mestre, devolveu a escolha do seguinte. Na impossibilidade, dadas as circunstâncias, de reunir um Capitulo Geral, foi decidido um procedimento excepcional, submetendo-se ao Papa uma lista de nomes apresentados pelos Priorados dela constando os portugueses Rodrigo Manuel Gorjão e Francisco Carvalho Pinto, já aqui mencionados). Pio VII acabou por escolher, em Fevereiro de 1803, Giovanni Battista Tommasi. (p. 60)

Pelo Tratado de Amiens de 1802, entre a França e a Inglaterra foi reconhecido o direito da Ordem à ilha de Malta mas os ingleses nunca cumpriram, como é hábito, essa disposição e assim o Grão-Mestre Tommasi não foi autorizado a entrar na ilha, ficando na Sicília. Quando morreu, em 1805, Pio VII considerou não estarem reunidas as condições para a eleição de um Grão-Mestre, pelo que, até 1879,  a Ordem foi dirigida por Lugar-Tenentes.

Em 1806, Gustavo VI da Suécia pôs à disposição da Ordem a ilha de Gotland, que fora ocupada na Idade Média pela Ordem Teutónica, mas os Cavaleiros não aceitaram na esperança de recuperar Malta. No Congresso de Viena (1814-1815), Metternich e Talleyrand tiveram projectos para a instalação da Ordem, sugerindo o primeiro a ilha de Elba e o segundo a ilha de Corfu, mas não foram concretizados, nem mesmo no posterior Congresso de Verona, em 1822. Em 1823, aquando da luta dos gregos pela independência, houve também a ideia de restabelecer a Ordem na sua antiga sede na ilha de Rodes, o que igualmente não aconteceu. Depois das tentativas fracassadas, e da sua peregrinação por Trieste, São Petersburgo, Catânia, Messina e Ferrara, a Ordem de Malta estabeleceu-se por fim em Roma, em 1834, onde ainda hoje se encontra, gozando de extraterritorialidade. 

Em 1879, a Ordem teve novamente um Grão-Mestre, Giovanni Battista Ceschi a Santa Croce. Um dos sucessores, Matthew Festing (2008-2017), tendo entrado em conflito com o Papa Francisco, foi obrigado por este a demitir-se, sucedendo-lhe Giacomo Dalla Torre del Tempio di Sanguinetto (2018-2020). Em 2023, foi eleito 81º Grão-Mestre John Timothy Dunlap, o primeiro não aristocrata e não europeu (é canadiano) a ocupar o cargo, em consequência das revisões da Constituição da Ordem ordenadas em 2022 pelo Papa Francisco, que dispensaram a prova de ascendência nobre.

O autor acrescenta um Post scriptum ao Capítulo IV: «A Ordem de Malta dedica-se, actualmente, à sua vocação inicial, a Hospitalária, e deixou, há muito, de ter carácter militar. Mantém-se Soberana? Inclino-me a pensar que, perdida Malta, em 1798, ultrapassado o bizarro Episódio Russo, desvanecida a esperança de recuperar ou de obter um território e acolhida a Ordem em Roma, em 1834, a sua Soberania é, simplesmente, uma ficção diplomática. A questão é complexa e bem merece ser analisada com alguma profundidade, sobretudo tendo em conta os abalos sofridos pela Ordem de Malta, sob o Pontificado do Papa Francisco.» (p. 64)

Houve quatro Grão-Mestres portugueses da Ordem de Malta:  D. Afonso de Portugal (1202-1206), filho natural de D. Afonso Henriques, Luís Mendes de Vasconcelos (1622-1623), António Manoel de Vilhena (1722-1736) e Manuel Pinto da Fonseca (1741-1773). Os últimos três foram figuras distintíssimas da Ordem de Malta. Não cabe aqui traçar a sua biografia, que é apresentada nesta obra com o devido pormenor. Importa notar que este livro do embaixador Ramos Machado contém informações preciosas para o estudo da Ordem de Malta em Portugal, sendo certamente pioneiro na investigação das relações entre a Ordem e Portugal nos séculos XVII e XVIII.

Relembro que os textos originais que integram o livro (textos agora reformulados) foram por mim publicados integralmente neste blogue, com a permissão do autor, em 2014, 2017, 2018 e 2023. Podem pesquisar-se no índice do blogue.

São salientadas no livro duas curiosidades. 

A primeira é a existência de um Luís Mendes de Vasconcelos homónimo daquele que foi o 55º Grão-Mestre da Ordem de Malta, e a que se referem o padre José da Felicidade Alves e o prof. Moses Amzalak. Viveu na mesma época de que o Grão-Mestre, serviu nas tropas espanholas, foi governador de Angola, escritor e historiador. É possível que fossem parentes.

A segunda é mais complicada. Eleito em 1623, o francês Antoine de Paule foi o 56º Grão-Mestre da Orem de Malta até 1636, tendo sucedido a Luís Mendes de Vasconcelos. Teve uma juventude agitada, acabando por ingressar na Ordem em 1590. Quando morreu o Grão-Mestre Alof de Wignacourt (1622), candidataram-se à sucessão Luís Mendes de Vasconcelos e Antoine de Paule, tendo o primeiro sido preferido, ainda que não tenha ocupado o cargo por mais de seis meses. Por sua morte, em 1623, Antoine de Paule foi finalmente eleito. Mas logo surgiu um memorial de vários Cavaleiros dirigido ao Papa, em que se afirmava que era um "homem dissoluto nos seus costumes, grande simoníaco e que comprara a sua Dignidade com dinheiro".

«Acusação particularmente grave dizia respeito aos seus "costumes dissolutos". Que se quereria dizer com esta expressão? Não é claro, mas parece-me depreender se pretendia aludir a práticas homossexuais. E teriam algum fundamento? Numa publicação relativamente recente na Internet, destinada a visitantes franceses a Malta, lê-se: "Eis aquele a quem os malteses trocistas chamavam Paola". Talvez o Grão-Mestre tivesse um estilo de vida de um refinamento julgado impróprio de uma Ordem Religiosa e Militar. Quarenta anos antes, o comportamento requintado e extravagante dos "mignons" de Henrique III, incluindo o "archimignon" Anne, primeiro Duque de Joyeuse e parente chegado de Antoine de Paule, tinham estado na base de idênticas acusações.» (p. 108)

Mas o Papa Urbano VIII não aceitou s reclamações dos Cavaleiros.

Luís Mendes de Vascomcelos «foi o segundo Grão-Mestre a ser tratado por Alteza Sereníssima. O seu predecessor [Alof de Wignacourt] fora feito Príncipe do Império, em 1607, por Rodolfo II e, em 1620, Fernando II tornara esse estatuto permanente para os Grão-Mestres; mas, após os "primeiros anos de seu Sucessor Fr. António de Paula (...) resolveu a Santidade do Papa Urbano VIII, que aos Grão-Mestres de S. João se lhes falasse por Eminência, e aos Cardeais do Sacro Colégio de Roma, e aos Arcebispos Eleitores do Império, Mogúncia, Colónia e Tréveres, com que se acomodaram os Grão-Mestres, por serem pessoas Eclesiásticas, e filhos muito obedientes à Igreja Romana".» (p. 81)

Antoine de Paule foi o terceiro Grão-Mestre a receber o tratamento de Alteza Sereníssima. Em meados do século XVIII, com Pinto da Fonseca, o tratamento atribuído aos Grão-Mestres foi elevado a Alteza Eminentíssima, assim se mantendo até hoje. 

[A propósito das acusações de vida dissoluta formuladas contra Antoine de Paule, recordo que este tinha sido quase um braço direito de Alof de Wignacourt antes de lhe vir a suceder no Grão-Mestrado. E quanto a Alof de Wignacourt subsistem as suspeitas de que se entregava à pederastia. Quando o célebre pintor Caravaggio se refugiu em Malta, fugindo à justiça papal por ter cometido um homicídio, Wignacourt encomendou-lhe um retrato em que ele aparece na companhia de um jovem pajem, supostamente seu amante. Parece que Caravaggio também se terá interessado pelo rapaz, o que levou a que fosse preso, embora conseguisse posteriormente fugir da ilha. A história é relatada em duas biografias do pintor, La course à l'abîme, de Dominique Fernandez e M - The Man Who Became Caravaggio, de Peter Robb, que comentei aqui. O quadro encontra-se hoje em Paris, no Museu do Louvre. Haveria, pois, uma conjunção de sensibilidades entre Alof de Wignacourt e Antoine de Paule.]

«Com o nome de Luís Mendes de Vasconcelos, houve duas personagens históricas, contemporâneas, uma das quais 55º Grão-Mestre da Ordem de Malta, cujas biografias aparecem, com frequência, fundidas, como se se tratasse de uma só; já no que toca a Antoine de Paule/António de Paula, 56º Grão Mestre, houve uma só personagem mas, ao lado da versão propriamente histórica, a fantasia de Ferreira de Castro criou uma figura diferente; duma parte, temos a História, da outra, a Literatura.» (p. 92)

Na sua obra Pequenos Mundos, Ferreira de Castro apresenta um António de Paula sendo Grão-Mestre português como pessoa de costumes dissolutos. Mas porque razão se teria empenhado Ferreira de Castro em transformar em português um Grão-Mestre francês com uma imagem tão negativa, como que movido por uma antipatia pessoal. O embaixador Ramos Machado presume que ele pretendeu retratar alguma personalidade nacional e aventa algumas hipóteses: em primeiro lugar Manuel Teixeira Gomes, escritor, diplomata, presidente da Republica, figura brilhante, geralmente conotado com inclinações homossexuais ou, pelo menos, bissexuais. Mas esta ideia é rapidamente arredada pelo autor, não só pelo respeito que Ferreira de Castro nutria por Teixeira Gomes mas também porque não eram adversários no campo político no qual estavam irmanados. Outra hipótese é sugerida através de uma obra de Paul Morand, pelo que passo a transcrever o texto: «Em Maio de 1924, Paul Morand, diplomata e escritor francês, que alcançou grande sucesso, sobretudo no período de entre as Duas Guerras, esteve, pela primeira vez, em Lisboa. Dessa visita, resultou a curta novela "Lorenzaccio ou o Regresso do Proscrito", incluída na colectânea "Europa Galante", publicada no ano seguinte. É a estória de um ex-ditador português, Tarquínio Gonçalves, derrubado em tempos, preso em S. Tomé, exilado em Londres e que, graças a uma reviravolta política, retornou a Lisboa, após uma longuíssima ausência. Termina com uma cena de cariz sexual, em Sintra, entre Tarquínio e um jovem marinheiro, enviado pelos seus inimigos para o assassinar. Por curiosa coincidência, quando Morand visitou Lisboa, o Presidente era Teixeira Gomes, homem de hábitos e requintes mundanos, tal como Tarquínio Gonçalves, e regressado, há pouco, como ele, de uma longa ausência em Londres; as iniciais de ambos - T.G. - eram as mesmas. Mas não foi Teixeira Gomes que, numa entrevista concedida em 1956, Paul Morand referiu, ao revelar: "Construí a personagem de "Lorenzaccio" inspirando-me num amigo meu, um jovem português que era o chefe dos pederastas de Lisboa. Divertiu-me transformá-lo num ditador, isto dois anos antes de Salazar ter aparecido e quando Portugal estava muito longe da ditadura! Mas os portugueses julgaram que eu tinha feito um retrato de Salazar, e andámos de candeias às avessas durante vinte anos". É muito duvidoso que "os portugueses" tivessem visto em Tarquínio Gonçalves um retrato de Salazar; poucos, aliás, teriam lido a novela. Ferreira de Castro talvez tenha sido um deles, mas o próprio Salazar foi-o certamente, quando lha mostraram, em 1943, quase vinte anos depois de ter sido escrita. O texto irritou profundamente Salazar, a ponto de ter recusado o "agrément" à nomeação de Morand como Encarregado de Negócios do Regime de Vichy, em Lisboa. Assim, "António de Paula" não era Teixeira Gomes que, tão pouco, teria inspirado o retrato de Tarquínio Gonçalves. Este último, por seu lado, não era uma representação de Salazar. E Salazar, homem de costumes austeros, certamente não era "António de Paula".» (p. 99)

A terceira hipótese suscitada pelo autor é a de que a inspiração de Ferreira de Castro tenha sido o prof. doutor Gustavo Cordeiro Ramos, que foi ministro da Instrução Pública em governos da Ditadura Militar e do Estado Novo, procurador à Câmara Corporativa e presidente do Instituto de Alta Cultura e que era conhecido por ser um homossexual militante. Morreu em 1974, com 86 anos [Ainda me lembro de vê-lo, já velho, a procurar um marinheiro numa cervejaria da Rua das Portas de Santo Antão e a ser empurrado para a rua por um empregado]. Sendo um germanófilo convicto, e um apoiante de Hitler, compreende-se que possa ter sido uma pequena "vingança" de Ferreira de Castro.

No Capítulo V, o autor faz ainda referência a uma Ordem Ecuménica de Malta, uma criação recente que pretende ser a legítima herdeira da Ordem Hospitalária de São João de Jerusalém, a partir do Grão-Mestrado do Czar Paulo I e do Grão-Priorado Russo. Uma genealogia demasiado complicada para explicitar neste texto. Contudo, reclama-se de soberana e até tem uma representação diplomática em S. Tomé e Príncipe, que parece cessou agora as suas actividades.

Porque este post já vai longo, importa terminar. Leia-se, pois, o livro, para a conveniente compreensão de todas estas fascinantes matérias.

Acrescento apenas uma última nota:

«De natureza supranacional e multinacional, a ordem estruturava-se nas chamadas Nações ou Línguas:  França, Provença, Auvergne, Itália, Alemanha, Inglaterra e Aragão. Desta última separou-se, no Séc. XV, a de Castela (com Leão e Portugal); a de Inglaterra foi suprimida no Séc. XVI, sendo, já no final do século XVIII, criada a Anglo-Bávara. A cada Língua pertencia, de Direito, um cargo na estrutura governativa da Ordem, sendo que, à de Castela, cabia o de Grão-Chanceler, alternadamente exercido por um castelhano e por um português. Outros cargos eram os de Grão-Preceptor (Provença), Grão-Marechal (Auvergne), Grande Hospitalário (França), "Drapier" (Aragão), Almirante (Itália), "Turcopilier" (Inglaterra), Grão-Balio (Alemanha).» (p. 49)

 E DISSE.