quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

LIBERDADE

Li, integralmente, Liberdade, no original Freiheit. Erinnerungen 1954-2021 (Liberdade. Memórias 1954-2021), autobiografia de Angela Merkel, que foi chanceler da Alemanha de 2005 a 2021 e a quem o saudoso Eduardo Pitta costumava chamar “camponesa luterana obstinada”.

Trata-se de um imenso livro, recentemente publicado, de 714 páginas em letra miúda, o que em caracteres normais significaria cerca de 1 000 páginas.

Deve dizer-se que o livro se encontra formalmente bem escrito, combinando aspectos da sua vida pessoal, da sua vida política, da sua actividade académica, da situação na República Democrática Alemã e depois na Alemanha reunificada, da sua fulgurante ascensão a deputada, ministra e finalmente chanceler do país. Com muitas descrições minuciosas, outras nem tanto, a que se juntam episódios de carácter doméstico e alguns mesmo anedóticos, tudo isto descrito, obviamente, na perspectiva da autora. Existem algumas imprecisões, notam-se várias lacunas mas há que reconhecer tratar-se de um trabalho colossal, só possível pelo facto de a autora ter reunido ao longo da sua carreira o material indispensável à realização desta obra, na qual teve como preciosa auxiliar Beate Baumann, sua colaboradora desde que ingressou na vida política. Importa também salientar que a tradução é geralmente fluente, apesar de ter sido executada por quatro pessoas, dada a compreensível urgência editorial da publicação do livro.

É possível que Angela Merkel tenha pensado, desde muito cedo, em publicar as suas memórias. Mas creio, até pelo teor da obra, que a sua decisão tenha correspondido principalmente à necessidade de se justificar, perante os alemães e o mundo, de muitas das suas decisões e indecisões, numa altura em que a Alemanha desempenhava um papel fulcral na política europeia, e até internacional, o que já não se verifica no tempo que vivemos. E também lhe dá espaço para proceder ao seu auto-elogio, de que não prescinde sempre que a ocasião se proporciona. 

 
Não permite este espaço um comentário detalhado sobre o enorme livro, pelo que se fará referência apenas a alguns aspectos que solicitaram particular atenção.

Devo acrescentar que não comungo dos pressupostos ideológicos de Angela Merkel e que, neste livro, me interessei especialmente sobre a sua intervenção na política internacional, até pelo facto de não ter acompanhado com a devida atenção o seu desempenho na vida interna da Alemanha.

É um pouco estranha a vida familiar de Angela Merkel. Casou em 1977 com o seu colega Ulrich Merkel, tinha então 23 anos e ele 25, de quem viria a divorciar-se posteriormente (1982), embora continuasse a manter o respectivo apelido. Casou pela segunda vez em 1998 com Joachim Sauer, cinco anos mais velho e pai de dois filhos de um casamento anterior. Angela Merkel nunca teve filhos, presumo que para não perturbar a sua carreira política (é uma opção), embora se possa também dever a causas biológicas que desconheço. Angela, tal como os dois maridos, é cientista na área da físico-química. O segundo marido, que raramente é mencionado na biografia (apenas a acompanhá-la em algumas visitas oficiais) deve ter-se resignado a um papel académico e de consorte.

 
Ao longo destas memórias, Angela Merkel tenta demonstrar-nos a forma como tomou as suas decisões, embora admita ter cometido alguns erros. E as suas “confissões” permitem entrever alguns actos certamente menos felizes, como a forma como puxou o tapete ao ex-chanceler Helmut Köhl, envolvido num aparente caso de corrupção, a quem ela devia a sua ascensão política, e que foi obrigado a demitir-se de presidente honorário da CDU.

Também não deixa de ser curiosa esta afirmação de Merkel no discurso de apresentação da candidatura a presidente da CDU, em 2000:

 
«… Mas quero também uma CDU que, após os debates e as discussões, tome decisões claras, aceite as decisões por maioria e siga em frente perfilhando um caminho comum…» (p. 259)
Este discurso de Angela Merkel assemelha-se muito ao de Salazar, em 27 de Abril de 1928, quando tomou posse como ministro das Finanças:

 
«Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar.» (Oliveira Salazar, Discursos, Volume I, p.6)

No que respeita à guerra do Iraque, Angela Merkel foi muito favorável à sinistra invasão protagonizada por George W. Bush e Tony Blair, em oposição ao então chanceler Gerhard Schröder. Reconhece agora o embuste das armas de destruição maciça mas não se coíbe de dizer que foi muito bom que Saddam Hussein tenha sido derrubado.

Conta também algumas conversas com Vladimir Putin, entre as quais a seguinte:
«Nove meses depois, a 21 de Janeiro de 2007, visitei Vladimir Putin na sua residência de Sochi, junto ao mar Negro. Durante a conversa, ele atirou-me à cara que, na sua opinião, o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX. Esta atitude não era nova, já a havia manifestado publicamente em 2005 no discurso sobre o estado da Nação. […] Em Sochi, deixei-o falar e tentei manter-me calma. Respondi que ele deveria conversar com George W. Bush acerca do sistema antimísseis e sublinhei ainda que a maior catástrofe do século XX foi o nacional-socialismo na Alemanha e que, de um modo totalmente inesperado, o fim da Guerra Fria mudou a minha vida para infinitamente melhor.» (pp. 362-3)

Perfilho a opinião de Vladimir Putin que o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX. O nacional-socialismo, na sua hubris alucinada, foi também uma catástrofe, todavia de características diferentes. No primeiro caso, houve o desmoronamento súbito de um sistema responsável pela vida de 300 milhões de pessoas. No segundo, uma guerra devastadora que causou cerca de 80 milhões de mortos entre militares e civis. Ambos os casos foram uma tragédia, embora a queda da URSS configure a implosão de um só território.

 
Entre várias imprecisões, registo esta - confusão de Angela Merkel ou problema de tradução - a propósito de uma conversa com o secretário do Tesouro norte-americano, Henry M. Paulson:

 
«Mostrou-se particularmente interessado em saber porque diabo os países da Zona Euro estabeleceram um pacto de estabilidade no qual se comprometiam a limitar o défice orçamental a 3% do produto interno bruto (PIB) e a dívida pública a 60% do PIB. A minha resposta de que, tendo em conta a responsabilidade para com as gerações futuras, era importante fazer uma gestão sustentada, em particular num continente com uma população envelhecida, suscitou-lhe apenas um sorriso rasgado.» (p. 372)
Que Paulson se tenha rido desta afirmação de Merkel não surpreende. Um secretário do Tesouro norte-americano é por natureza um ser desumano cuja vida consiste em amontoar ouro à sua volta. A própria nota de dólar [In Go(l)d we trust] é disso prova. O que é realmente surpreendente é a afirmação do défice orçamental ser 3% do PIB; ora o que está indexado ao PIB é naturalmente a dívida e não o défice, que é meramente orçamental.

 
Há no livro uma larga descrição da crise financeira (decorrente da falência do Lehman Brothers) e da crise do Euro. Merkel descreve, à sua maneira, as diligências que fez para salvar o Euro, embora isso tenha levado a dolorosos sacrifícios das populações de Portugal, Espanha, Itália e especialmente Grécia. E enaltece a sua acção, respaldada pelo Tribunal Constitucional da Alemanha e apoiada ou forçada pelo inenarrável ministro das Finanças Wolfgang Schäuble, no sentido de encontrar uma solução “compatível com as exigências dos mercados”, frase de que posteriormente se viria a arrepender, como ela mesmo diz, pois foi geralmente interpretada como se ela quisesse uma democracia compatível com as exigências dos mercados. No fundo, interrogo-me se não seria isso mesmo que ela queria. E escreve:
«É evidente que, neste contexto, fui a todo o tempo confrontada com a pergunta sobre se não podia ter simplesmente cedido e prescindido de todas as exigências de duras medidas de austeridade e reformas económicas face á situação da Grécia, Portugal, Espanha e Itália. A minha reputação nestes países estava na lama, em particular na Grécia.» (p. 412)

Naturalmente que haveria outras soluções, não fora a sua obstinação e a inconcebível ortodoxia financeira do Bundesbank. As medidas posteriores de Mario Draghi, no Banco Central Europeu, contribuíram para ajudar a resolver a crise do Euro.

 
Mas não foi só a reputação de Merkel que andou pela lama. Nos países vítimas da sua política, muitas vozes se ouviram gritando contra ela a última fala (dita por Herodes) da peça Salome, de Oscar Wilde, escrita originalmente em francês e logo a seguir traduzida para inglês por Lord Alfred Douglas:

“KILL THAT WOMAN!”

A questão da Ucrânia é amplamente tratada no livro. Na Cimeira da NATO em Bucareste, em 2008, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, em nome da Alemanha e da França, opuseram-se à concessão do estatuto Membership Action Plan (MAP) à Ucrânia, para grande frustração do então presidente Viktor Yushchenko. Pelas razões largamente explanadas, Merkel continua a entender que, na altura, foi a opção correcta. E menciona o facto de apenas uma minoria da população ucraniana apoiar então a pertença do país à NATO (p. 426) e da frota da Marinha russa no Mar Negro estar estacionada na península da Crimeia, de acordo com um tratado celebrado entre a Ucrânia e a Rússia, com validade até 2017. Note-se que este tratado foi prorrogado, em Abril de 2010, por um período de mais 25 anos, até 2042, por acordo entre os então presidentes Ianukovitch e Medvedev. A oposição à concessão do estatuto MAP à Ucrânia, naquela reunião, abrangeu também a Geórgia.

«Paralelamente ao alargamento da União Europeia em 2004, com a entrada de dez novos estados membros – Polónia, Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Eslovénia, Chéquia, Hungria, Malta e Chipre – a Comissão Europeia elevou a um novo patamar a cooperação com os vizinhos a leste a e a sul da EU, apresentando uma estratégia para a chamada Política Europeia de Vizinhança. Foi com esta base que, a 13 de Julho de 2008, em Paris, se fundou com os países do Sul a chamada União para o Mediterrâneo, à qual pertenciam então vinte e sete Estados-membros da União Europeia e dezasseis países mediterrânicos. Entre os países vizinhos a leste, a Arménia, Azerbaijão, Bielorrússia, Geórgia, Moldávia e Ucrânia desejavam a integração na Política Europeia de Vizinhança, mas não a Rússia, apesar de muitos países da EU, entre os quais a Alemanha, serem a favor.» (pp. 441-2)

«Depois da guerra empreendida pela Rússia contra a Geórgia, em Agosto de 2008, gerou-se no seio dos membros da União Europeia, entre os quais a Alemanha, uma maior disponibilidade para agir, mesmo sem ou contra a Rússia. Por conseguinte, a 7 de Maio de 2009, em Praga, durante a presidência checa do Conselho Europeu, teve lugar a cimeira fundadora da chamada Parceria Oriental, na qual participaram o Azerbaijão, Arménia, Geórgia, Moldávia, Bielorrússia e Ucrânia, tornando-se assim, após a União para o Mediterrâneo, dez meses antes, a segunda etapa da Política Europeia de Vizinhança. (p. 442)

«O primeiro país da Parceria Oriental a concluir em 2011, as negociações de um acordo de associação com a EU foi a Ucrânia. Antes disso, operou-se uma mudança de Governo no país. Nas eleições presidenciais de 2010, o titular do cargo, Viktor Yushchenko, ficou fora da corrida na primeira volta, com apenas 5,5 % dos votos. Na segunda volta, em Fevereiro de 2010, Viktor Ianukovitch ficou à frente de Iulia Timoshenko, que em 2005 Yushchenko tinha exonerado do cargo de primeira-ministra.» (p. 443)

Na Cimeira da Parceria Oriental, em Vilnius, em 28 e 29 de Novembro de 2013, Ianukovitch disse a Merkel que ainda não era oportuno assinar o acordo com a União Europeia, devido ao diálogo que mantinha com a Rússia e os países da CEI.

 
Segue-se a descrição dos protestos na praça Maidan, em que a multidão [comandada especialmente pelos Estados Unidos, penso eu] agrediu os próprios delegados da oposição que tinham chegado a um acordo com Ianukovitch. Verifica-se depois a fuga deste e a eleição de Oleksandr Turtchynov para presidente do Parlamento e logo a seguir para presidente da República interino. Em 23 de Fevereiro de 2014, o primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev ordenou a retirada do embaixador russo em Kiev. Em 28 de Fevereiro, homens armados de fardas verdes sem qualquer identificação oficial começaram a ocupar a Crimeia. No dia 1 de Março, Merkel telefona a Putin, que nega a intervenção. «E assim, como muito em breve vim a perceber sem margem para dúvidas, ele mentiu-me descaradamente. Jamais tal havia acontecido nas nossas conversas até àquele dia, pelo menos daquela forma. Não cortei o contacto com ele, não era uma opção que estivesse realmente em cima da mesa, mas daí em diante a nossa relação mudou.» (p. 449)

Em 16 de Março de 2014 uma esmagadora maioria da população da Crimeia votou a favor da unificação com a Rússia, embora Angela Merkel duvide da fidedignidade do referendo. A ex-chanceler [num exercício de alguma hipocrisia] recorda o Memorando de Budapeste de 1994, no qual, em troca da entrega de armas nucleares soviéticas existentes no território, se garantia à Ucrânia a protecção da integridade do país. [Em primeiro lugar, as armas nucleares estacionadas na Ucrânia eram russas, em segundo lugar, o contexto geopolítico tinha-se modificado radicalmente]. Em 21 de Março, em Viena, na reunião do Conselho Europeu, os chefes de estado e de Governo da EU e o primeiro-ministro ucraniano Arseniy Yatsenyuk assinaram a componente política do acordo de associação entre a EU e a Ucrânia que não fora assinado em Vilnius. Nesse mesmo dia, o Conselho Permanente dos 57 países-membros da OSCE, a que pertencem a Rússia e a Ucrânia, aprovou o envio de uma missão especial de observação para a Ucrânia (SMM, Special Monitoring Mission. Em 24 e 25 de Março, em Haia, o Grupo dos agora Sete excluiu a participação da Rússia, anulou o encontro previsto para Sochi e veio a reunir-se, já como G7, em Bruxelas, em 4 e 5 de Junho de 2014.

Verificam-se, depois, os confrontos no Donbass, e em 11 de Maio de 2014 uma maioria de votantes das repúblicas populares de Donetsk e Lugansk proclama a independência.

 
Para o 70º aniversário do desembarque dos Aliados na Normandia, em 6 de Junho de 2014, François Hollande convidou mais de 20 chefes de Estado e de Governo. Petro Poroshenko, novo presidente da Ucrânia, manifestara a Merkel a vontade de estar presente, até porque as tropas ucranianas tinham combatido na Segunda Guerra Mundial e seria uma oportunidade de se avistar com Putin, que estaria também presente. Assim, encontram-se todos no castelo de Benouville. Hollande conseguiu arranjar dez minutos antes do almoço, em sala à parte, para juntar com ele Angela Merkel, Vladimir Putin e Petro Poroshenko. A conversa resultou bem, embora sem acordos concretos. Nascia assim o “Formato Normandia”.

Em 20 de Junho de 2014, Poroshenko apresentou um plano de paz, em quinze pontos, em que previa a retirada dos mercenários russos e ucranianos, o desarmamento dos separatistas e critérios para a sua possível impunidade, a criação de uma zona-tampão na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia, a descentralização do poder mediante a alteração da Constituição e a antecipação das eleições autárquicas e legislativas. Mas o líder da República de Donetsk rejeitou o cessar-fogo. Em 23 de Agosto, véspera do Dia da Independência da Ucrânia, Angela Merkel, depois de conversações com Poroshenko e Yatsenyuk, declara que “sem conversações e diplomacia não se chegaria a uma solução”, acrescentando que “não haverá uma solução militar” (p. 457). Mas Oleksandr Turtchynov, novamente presidente do Parlamento [certamente um partidário da guerra] comentou que “a diplomacia era muito boa e muito bonita mas só o exército ucraniano tem condições para pôr fim a esta guerra”. O plano de paz de Poroshenko estava sob grande pressão política mas, mesmo assim, foi assinado o “Protocolo de Minsk”, em 5 de Setembro de 2014,com as duas regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, e no dia 19 de Setembro o “Memorando de Minsk”, que visava a implementação do protocolo. Contudo, o cessar-fogo nunca chegou a ser cumprido.

A 11 de Fevereiro de 2015, encontraram-se em Minsk, no Palácio da Independência, Angela Merkel e François Hollande com Vladimir Putin e Petro Poroshenko, uma nova reunião no “Formato Normandia”, tendo declinado, para poupar tempo, o jantar comemorativo que o presidente bielorrusso Alexander Lukashenko pretendia oferecer. A reunião durou 17 horas, tendo terminado por volta das 12 horas do dia 12. Era necessário chegar a acordo quanto à entrada em vigor do armistício. Putin declarou-se disponível para apresentar o pacote de medidas, que de futuro se viria a chamar Minsk II, juntamente com o Acordo de Minsk e o Memorando de Minsk de Setembro de 2014, de futuro Minsk I, como proposta de resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A 13 de Fevereiro, tal como estipulado, a Rússia apresentou a proposta de resolução com os vários Acordos de Minsk ao Conselho de Segurança, que foi aprovada por unanimidade a 17 de Fevereiro de 2015 como “Resolution 2202 (2015)”.

«A anexação da Ucrânia alterou dramaticamente o nível de ameaça não apenas na Ucrânia, como em toda a Europa. Ocorreu o que se tentou evitar no início da década de 1990: uma nova linha divisória atravessava o continente. Já não era possível excluir uma ameaça por parte da Rússia aos países-membros da NATO. A par de todas as tentativas de solucionar o conflito entre a Ucrânia e a Rússia pela via diplomática, a Aliança era obrigada a reagir à nova situação também pela via militar. Isto sucedeu na Cimeira da NATO a 4 e 5 de Setembro de 2014, em Newport, no País de Gales. Depois de a NATO se ter concentrado anos a fio em missões no exterior, como na ex-Jugoslávia, no Afeganistão e na Líbia, a obrigação de defesa mútua de acordo com o artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte dentro dos territórios da Aliança voltou, face à ameaça representada pela Rússia, a estar na ordem do dia. Finda a Guerra Fria, os planos de defesa tinham passado, em larga medida, para segundo plano. E eis que a situação se alterava. A cimeira acordou medidas com vista à agilização da reacção militar na Europa (Readiness Action Plan – Plano de Acção de Prontidão), em particular para os países situados no flanco oriental da NATO, como a Polónia, Estónia, Letónia e Lituânia. Além disso, foi montada uma task force de alto nível da NATO, a VJTF (Very High Readiness Joint Task Force), uma unidade militar de intervenção rápida. Os Estados-membros comprometeram-se a, no prazo de dez anos, aproximar-se do valor de referência de 2% do PIB aplicados em despesas relacionadas com a defesa.» (p. 468-9)

O tema dos gastos com a defesa foi, e continua a ser, um pomo de discórdia.
«Na Cimeira da NATO em Varsóvia, a 8 e 9 de Julho de 2016, deliberou-se o destacamento de agrupamentos tácticos (battlegroups) multinacionais na Polónia e nos Estados Bálticos. A Alemanha assumiu a liderança em 2017, na Lituânia. As tropas revezavam-se de seis em seis meses, dado que o Acordo NATO-Rússia proibia os destacamentos permanentes nos novos Estados-membros, e eu fazia questão de continuar a respeitar os acordos, apesar da tensão com a Rússia.» (p. 469)

Não sendo possível, devido à extensão do presente texto, continuar a desenvolver as mais importantes participações de Angela Merkel em política externa, passarei a indicar apenas os tópicos das acções mais relevantes.

São dedicadas largas páginas ao capítulo Imigração e, em especial, ao acordo efectuado com a Turquia para a retenção de imigrantes, nomeadamente sírios, nesse país. (pp. 489 e seguintes)

Também merecem relevo a Cimeira de Copenhaga sobre o Clima, em 2009, a Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, em 2015 (p. 545), a Cimeira do G20, em Hamburgo (p. 561), a questão do Nord Stream 1 e 2 (p. 576) e as missões da Bundeswehr no Afeganistão, na Líbia, nos Balcãs Ocidentais (pp. 587 e seguintes). Angela Merkel admite, implicitamente, o erro das intervenções armadas no Afeganistão, no Iraque, na Líbia.

Angela Merkel refere com ênfase a questão do serviço militar obrigatório (pp. 602 e seguintes). Era de opinião que se mantivesse, ainda que restringido no tempo, sendo já menos de 20% das pessoas nascidas num dado ano que prestavam serviço militar básico. Nas discussões para redução do orçamento da Defesa proposta por Schäuble, em 2010, o assunto foi vivamente debatido. Em 15 de Dezembro de 2010, o Conselho de Ministros decidiu suspender o serviço militar obrigatório, mas não aboli-lo. Foi introduzido o “serviço militar voluntário”, bem como o “serviço civil voluntário”, em substituição do “serviço civil”.

É vasto o espaço dedicado às relações da Alemanha, e da própria Merkel, com Israel. A ex-chanceler, na esteira de Adenauer, considera-as uma “razão de Estado”, tendo em conta o passado nazi do país e faz o elogio do Estado judaico. A propósito de uma viagem, escreve: «A 9 de Outubro de 2021, um sábado, aterrei ao início da noite em Telavive, no Aeroporto Ben-Gurion. Daí segui directamente para Jerusalém, onde passei a noite no lendário King David Hotel. Uma parte desse hotel, inaugurado em 1931, servira até à independência do Estado de Israel, em Maio de 1948, de sede administrativa do Mandato Britânico da Palestina.» (p. 611) Não lhe ocorreu referir que para a lenda desse hotel muito contribuiu o ataque à bomba, em 22 de Julho de 1946, efectuado pela organização armada sionista Irgun, chefiada por Menachem Begin, que foi mais tarde primeiro-ministro de Israel, e de que resultaram 91 mortos (28 britânicos, 41 árabes, 17 judeus e 5 não referenciados), além de 45 feridos graves.

Também Angela Merkel se refere aos episódios de tremuras em cerimónias oficiais, ocorridos pela primeira vez aquando da primeira vista de Estado à Alemanha de Volodimir Zelensky, em 2019.(p. 631) Estes incidentes, que todos observámos pelas televisões, foram posteriormente considerados como consequência de tensões acumuladas durante muito tempo.

O último capítulo do livro é dedicado à pandemia covid-19. A autora descreve a evolução da doença, as medidas adoptadas, as restrições às liberdades e mesmo as dificuldades de harmonizar os pontos de vista do governo federal e dos governos dos Estados-federados.

Na página 668, Angela Merkel interroga-se sobre se teria sido possível evitar a invasão da Ucrânia, caso não houvesse a pandemia. «Ninguém sabe se o ataque de Vladimir Putin á Ucrânia, iniciado a 24 de Fevereiro de 2022, podia ter sido evitado se a pandemia não se tivesse instalado e se, ao invés de encontros virtuais, tivessem sido possíveis encontros pessoais, tanto bilaterais como no chamado Formato Normandia – entre Alemanha, a França, a Ucrânia e a Rússia. Certo é, porém, que a covid foi um prego no caixão dos Acordos de Minsk, celebrados em Fevereiro de 2015. Desde 2016 e até terminar as minhas funções como chanceler federal, já só houve mais um encontro no Formato Normandia, a 9 de Dezembro de 2019, em Paris, poucas semanas antes do início da pandemia. Esse encontro em Paris foi também o único em que participou o recém-eleito presidente ucraniano Volodimir Zelensky, que assumiu o cargo seis meses antes. Ganhou as eleições, tendo-se imposto na campanha ao seu antecessor, Petro Poroshenko, em boa medida graças à sua popularidade como actor e comediante e à extraordinária capacidade de comunicação. Zelensky censurou fortemente Poroshenko, que negociou os Acordos de Minsk, não só por o conflito se manter activo no Donbass como a Crimeia permanecer ocupada pela Rússia desde 2014, e prometeu que se esforçaria por devolver a paz ao seu país.»
«No Governo ucraniano e no Parlamento havia uma forte resistência contra a parte dos Acordos de Minsk que previa um elevado grau de autonomia para os territórios separatistas após a realização de eleições locais. Ainda assim, os acordos resultaram numa certa pacificação da situação, sobretudo em comparação com a altura anterior à sua entrada em vigor. […] Foi por essa razão que Petro Poroshenko, o antecessor de Zelensky, manteve as conversações com a Rússia – no Formato Normandia, juntamente com a Alemanha e a França -, além de participar no Grupo de Contacto Trilateral da OSCE.» (p. 669)

«Aquando do nosso encontro em Paris no Formato Normandia, que ocorreu a 9 de Dezembro de 2019, era grande a pressão sobre Zelensky. No início de Outubro, mostrou-se disponível para uma maior autonomia nas regiões em conflito no Donbass, defendendo a chamada “Fórmula de Steinmeier”. Esta última foi o resultado de um encontro no Formato Normandia realizado em Outubro de 2015, em Paris, no qual Frank-Walter Steinmeier e os outros ministros dos Negócios Estrangeiros participaram. A fórmula descrevia de que modo e em que condições entraria em vigor uma lei que concedesse um estatuto especial de autonomia para as regiões de Donetsk e Lugansk, após a realização de eleições locais que obtivessem reconhecimento por parte da OSCE. Servia, desse modo, como um complemento do pacote de medidas previstas pelos Acordos de Minsk. Poroshenko, o antecessor de Zelensky na presidência ucraniana, concordou expressamente com a fórmula, mas, entretanto, juntou-se a uma multidão de quase cem mil manifestantes que, em Kiev, se opunham a Zelensky e gritavam “Não à capitulação! Não à amnistia!”, protestando, no fundo, contra os Acordos de Minsk. Ao contrário do que ficou estipulado nos acordos, os manifestantes, bem como alguns representantes do Governo e do Parlamento, não aceitavam qualquer autonomia para as regiões ocupadas pelos separatistas nem qualquer amnistia para os que aí eram responsáveis.» (pp. 670-1)

«Zelensky pretendia um controlo ucraniano antes das eleições locais, mas no pacote de medidas acordado em Minsk tal só estava previsto para o período posterior às eleições. Até lá, só mesmo os observadores da OSCE deviam ter acesso à fronteira. Putin insistia na formulação que constava nos Acordos de Minsk. Eu aconselhei Zelensky a não pôr em causa o estipulado, pois foi após cuidada reflexão que em 2015 incluímos o reconhecimento das eleições por parte da OSCE, em particular através do seu Gabinete para as Instituições Democráticas e os Direitos Humanos (ODIHR), no pacote de medidas incluído nos Acordos de Minsk. Estava convencida de que, se conseguíssemos falar o quanto antes com o ODIHR acerca das condições prévias para eleições locais livres e democráticas, haveria a possibilidade de esclarecer a questão do acesso à fronteira sem pôr em causa o que estava acordado. Pacta sunt servanda, “os acordos devem ser respeitados”, um princípio da política que tem dado provas do seu valor, mesmo quando cumpri-lo em nada nos facilita a vida. […] Zelensky manteve-se fiel ao seu ponto de vista. Para ele, havia porventura razões de política interna para não aceitar por completo o que tinha sido estipulado em Minsk, tanto mais que também o seu antecessor entretanto se demarcou desses acordos.» (p. 671)

Angela Merkel prossegue com a sua descrição de todas as diligências que efectuou, inclusive com Putin, apesar do tempo de pandemia, para alcançar uma solução satisfatória, mas teve a oposição do primeiro-ministro polaco Mateusz Morowiecki, da primeira-ministra estónia Kaja Kallas, e do presidente lituano Gitanas Nauséda. (p. 673)

«Também durante a minha última visita a Putin, em Moscovo, a 20 de Agosto de 2021, fui incapaz de alterar a situação. […] Despedimo-nos. Ao longo de duas décadas de encontros conjuntos, Putin havia-se transformado e, juntamente com ele, também a Rússia: de uma abertura inicial em relação ao Ocidente a situação evoluiu para um alheamento e depois para um completo endurecimento das relações. Em retrospectiva e apesar de toda as adversidades, considero ainda assim acertado que até ao fim do período em que ocupei o cargo de chanceler tenham sido valorizados os contactos com a Rússia, por exemplo através do Diálogo de São Petersburgo. Acho importante que a minha própria capacidade de diálogo com Putin não tenha sido abalada e que, através das relações comerciais – para lá dos benefícios económicos mútuos -, se tenham mantido activos os pontos de contacto. Na verdade, a Rússia é, a par dos EUA, uma das duas principais potências nucleares do mundo e, em termos geográficos, vizinha da União Europeia.» (pp. 673-4)

Pelo que se transcreveu, e pelo mais que Angela Merkel escreveu – e ela é uma pessoa insuspeita – pode concluir-se que a Alemanha pensava ser possível concluir-se um acordo com Vladimir Putin, satisfatório para a Rússia e também para a Ucrânia, atendendo às circunstâncias no terreno, mas que foi a obstinação de Volodymyr Zelensky que impossibilitou a sua realização. É que um acordo, ainda que com cedência de território (e essa solução nem sequer estava em cima da mesa antes da invasão) seria sempre preferível a uma guerra. Talvez o regime instalado em Kiev não previsse a duração e os danos humanos e materiais provocados pela guerra que entretanto sucedeu, mas compete ao poder político avaliar todas as consequências de decisões temerárias.

Atendendo a que este comentário ao livro Liberdade, de Angela Merkel, ocupou já um espaço demasiado extenso para a dimensão de um post, não me alongarei em outras considerações. Direi apenas que a Cultura está praticamente ausente dos 16 anos de Angela Merkel na Chancelaria Federal, uma omissão significativa.

É TUDO!