sábado, 14 de dezembro de 2024

D. SEBASTIÃO, ANTES E DEPOIS DE ALCÁCER-QUIBIR (SALES LOUREIRO)

Em 1978, quarto centenário da batalha de Alcácer-Quibir, Francisco de Sales Loureiro publicou D. Sebastião - Antes e Depois de Alcácer-Quibir, referindo, em Advertência, que indicara previamente este título à editora, sendo surpreendido pela publicação, precisamente antes desta edição, de um livro de António Belard da Fonseca com idêntica designação. Contudo, resolvera manter o título, uma vez que, na sua opinião, ele convinha perfeitamente à urdidura da obra.

O livro começa por abordar o ambiente de crise e tensões que se viviam no século XVI, onde se defrontavam dois impérios: o Turco, a Oriente, e o de Carlos Quinto, a Ocidente, face ao império português. que se estendia à Índia. Salienta que as riquezas provenientes da nossa expansão não provocaram uma melhoria na situação económica do país pois foram gastas em bens supérfluos, em luxos, sem benefício para o povo. 

O confronto entre os dois "partidos" chefiados por D. Catarina de Áustria e pelo Cardeal-Infante D. Henrique contribuiu para um mal-estar da sociedade portuguesa. D. Catarina favorecia, como é óbvio, os interesses da Casa de Áustria e de seu irmão Carlos Quinto. O facto de promover o casamento dos seus dois filhos que chegaram à idade núbil, D. Maria Manuela e D. João Manuel, com os dois filhos do Imperador, Filipe II e D. Joana, causou profundo descontentamento no povo, e mesmo na nobreza, que receava a perda da independência em proveito de Espanha, como aliás viria a acontecer por morte de D. Sebastião e de D. Henrique. 

Além da política castelhanófila de D. Catarina, o autor enfatiza os seus gastos sumptuários, os seus luxos e mesmo a sua influência no domínio religioso, rodeando-se de padres espanhóis como frei Luís de Granada, que foi seu confessor e de Frei Luís de Montoya, que escolheu para confessor de D. Sebastião. Mas foi a influência da Companhia de Jesus, através dos irmãos padres Luís e Martim Gonçalves da Câmara, que teve uma preponderante importância na educação e reinado de D. Sebastião.

Ainda antes de abordar o reinado do monarca, e recorrendo a diversas fontes, o autor traça um quadro da situação económica e financeira do país na época imediatamente anterior ao início do reinado de D. Sebastião.

A Segunda Parte do livro trata de "O Monarca e as suas Circunstâncias". Seguindo de perto Queiroz Velloso, Alfonso Danvila (ambos objecto de posts anteriores) e Lúcio de Azevedo, entre outros, Sales Loureiro retrata na essência o que sobre D. Sebastião já conhecemos dessas obras. Ainda que várias das suas apreciações nos pareçam um pouco desajustadas das interpretações desses autores.

Tendo D. João III instalado a Companhia de Jesus em Portugal, surgiram desde o início duas opiniões acerca da permanência dos jesuítas no país: os que entendiam que eles se deviam ocupar especialmente do Ultramar, para a dilatação da Fé, e que não eram muito necessários no Continente (opinião do cardeal-infante D. Henrique) e os que pensavam que seria melhor que eles ficassem no Reino (opinião de seu irmão o infante D. Luís). Apesar dessa opinião, o cardeal favoreceu largamente a Companhia, enquanto arcebispo e inquisidor-geral, e mais tarde ele mesmo como rei, na senda de seu irmão D. João III. Também D. Sebastião foi pródigo em relação aos jesuítas. É claro que as avultadas benesses à Companhia provocaram o ressentimento das antigas ordens religiosas, com larga tradição de serviços prestados.

A propósito da "doença" de D. Sebastião, que os principais biógrafos consideram tratar-se de espermatorreia, Sales Loureiro refere (p. 92) a hipótese de uma precoce experiência sexual, que lhe poderia ter proporcionado uma doença blenorrágica, aquando da sua primeira jornada ao Alentejo. É a primeira vez que lemos esta referência. O autor contesta que D. Sebastião fosse misógino (p. 94) o que está em contradição com as mais abalizadas opiniões a respeito do comportamento do monarca. Afirma igualmente (p. 95) que D. Sebastião não era "autocrático, despótico, atribiliário", ideia muito discutível face a tudo o que dele conhecemos. Além disso, a palavra correcta é "atrabiliário" e não "atribiliário", erro do autor ou lapso de revisão do texto. 

Sales Loureiro encontra também justificação para as conquistas no Norte de África, não só para dilatação do Império e expansão da Cristandade mas devido ao facto de o Mouro ser o inimigo perpétuo (p. 116) e ameaçar poderosamente a Península Ibérica. Já vimos, em respeitáveis obras que mencionámos em posts anteriores, que esta visão não corresponde à verdade. O Turco estava bastante debilitado depois da derrota de Lepanto para prestar especial auxílio a Marrocos, e o xerife manifestara disposição para ceder a D. Sebastião as praças que ele desejasse (Larache por exemplo) a fim de se evitar a guerra.

Como o autor comete muitas imprecisões, dispensei-me de ler a Terceira Parte (A Jornada ao Alentejo e Algarve e a Primeira Jornada de África), aliás já descritas em comentários a outros livros.

Na Quarta Parte ("Onde quase tudo se acaba") começa o autor por dizer: «Ao contrário do que Queiroz Velloso supõe, contestando Rebelo da Silva e Pereira Baião, foi de facto na primeira jornada de D. Sebastião ao Alentejo e ao Algarve, que D. Álvaro de Castro realizou a primeira ofensiva contra os Gonçalves da Câmara, que acusa de terem arruinado o reino, "com as leis sobre câmbios e moedas".» (p. 165) E explica as razões. 

Sales Loureiro relata depois o encontro de D. Sebastião em Guadalupe com Filipe II, os preparativos para a expedição a África e a batalha de Alcácer-Quibir, assuntos que já foram objecto de outros posts. O autor sustenta que a jornada de D. Sebastião a Marrocos era essencial não só para protecção das fortalezas (agora poucas) que lá tínhamos mas também para a defesa das nossas costas e para travar o expansionismo turco até ao Atlântico. Como é provado por outras análises esta argumentação é infundada. Talvez ela estivesse na cabeça de D. Sebastião ou o rei português invocou-a apenas para satisfazer o seu desejo de combater pessoalmente o Mouro, o que nos custou muito caro, e mesmo a independência nacional.

Escreve também o autor que Filipe II «estragara dois matrimónios - o de França e o da Alemanha» a D. Sebastião (p. 180). Isto é absolutamente inexacto. Tivemos ocasião de observar, a propósito de referências a livros anteriores, que foi o próprio D. Sebastião quem provocou a não concretização desses matrimónios. O rei afastou sempre, liminarmente, qualquer ideia de casamento e só aceitou pedir a mão da filha mais velha de seu tio com a intenção de que este lhe concedesse o apoio para a expedição a África. Tivesse tudo corrido bem e certamente arranjaria um pretexto para se retractar mais tarde.

Também Sales Loureiro considera que ao desincentivar D. Sebastião da ida a África Filipe II o fez com o propósito oculto de que o sobrinho, contrariando-o, se metesse África dentro, criando-lhe as condições de entrar em Portugal. Esta hipótese é aliciante, tendo em atenção o carácter do monarca espanhol, mas os testemunhos da época vão no sentido oposto. Filipe e o Duque de Alba procuraram convencer, sem sucesso, D. Sebastião da temeridade da empresa. Sem prejuízo de que Filipe II terá tido sempre em mente a união das duas coroas, mas através de casamentos.

Sobre a batalha de Alcácer-Quibir, descreve-a Sales Loureiro sensivelmente nos mesmos termos que o fez Queiroz Velloso.

A Quinta Parte intitula-se "Depois de Alcácer, o Sebastianismo". O primeiro capítulo trata de "A Fenomenologia e Formas do Sebastianismo". O autor transcreve da Introdução a O Império Colonial Português, de C.R. Boxer: «Por que razão esta nação pequena, bastante pobre e culturalmente atrasada, situada na costa sudoeste da Europa, foi tão dramaticamente bem sucedida nesse grande século de empreendimentos que começou por volta de 1440? E por que razão se tornou este êxito uma pálida sombra de si mesmo no curto espaço de cinquenta anos?» (p. 222) E considera que os ingredientes principais da força propulsora da Expansão, tanto de portugueses como de espanhóis, foram a  cobiça e a devoção, acrescentando, segundo Boxer, a propósito de Portugal, que «o seu nome está indelevelmente escrito na História mundial: um feito extraordinário para um país tão pequeno e pobre.» (p. 223)

O autor faz referência às Trovas do Bandarra, compostas 14 anos antes da vinda ao mundo do Desejado, as quais contêm reminiscências bíblicas, que autorizavam as interpretações dos Cristãos-Novos, implacavelmente perseguidos, desde fins do século XV, - interpretações essas que previam a chegada próxima do Messias. (p. 232) Gonçalo Anes serviu-se também das Coplas de Frei Pedro de Frias, que dão expressão literária às profecias de Santo Isidoro.

«Assim nasce, convertido em poesia, o movimento de exaltação patriótica, denominado Sebastianismo, que, em forma de crença messiânica, já andava latente no subconsciente popular, irradiando em lendas, que fizeram o Rei escondido e disfarçado na armada de D. Diogo de Sousa, ou errando solitário pela planura sem fim dos campos de Alcácer. Ou mesmo preso a uma Ilha de Bruma, da qual regressará assistido do rei Artur de Inglaterra e das nove ocultas tribos de Israel.» (p. 233)

«Não admira, pois, que elementos nacionais ou estranhos, seduzidos pelo papel que poderiam representar ou pelo aproveitamento material que essa representação lhes pudesse, porventura conferir, pretendessem encarnar a figura do Desejado. Assim surge nas múltiplas mistificações de um rei de Penamacor - o Sebastianismo sob a forma cortesã; de um rei da Ericeira - o Sebastianismo activo de Mateus Álvares, desenvolvido em expressão violenta de combate; de um pasteleiro de Madrigal - o Sebastianismo romanesco de inspiração de Fr. Miguel dos Santos; de um Marco Túlio - a aglutinação do Sebastianismo lusíada no estrangeiro.» (pp. 234-5)

«Dentro ainda dessa corrente, uma vez identificado o Sebastianismo com o partido nacional da independência, nas proximidades da Restauração e na falta do Desejado, importava, então e apenas, operar a transferência do Encoberto para uma personagem que, pela sua legitimidade, pudesse representar, no concreto, o que essa figura lendária e misteriosa simbolizava no abstracto. Assim, o messianismo sebastianista marcou encontro com D. João, o Duque de Bragança, legítimo sucessor de D. Catarina, - duquesa de Bragança - pretendente mais válida na crise da sucessão.» (p. 236)

«Mas já D. Francisco Manuel de Melo, por outro lado, nas suas Epanáforas, assinala que os Jesuítas fomentavam a crença messiânica, tornando-se a Companhia, como afirma J. Lúcio de Azevedo, "foco activo de sebastianismo".» (p. 239)

«Não restam dúvidas de que o Sebastianismo se reacende extraordinariamente nos reinados de D. Pedro II e de D. João V, favorecido pelo descontentamento popular. Caracterizando este período, Diogo Barbosa Machado, nas suas Memórias, e o Padre Pereira Baião, no seu Portugal Cuidadoso e Lastimado, patenteiam a extraordinária irradiação do Sebastianismo e o respeito que o movimento lhes merece, aparecendo simultaneamente a opinião de Lord Tirawley, que divide os Portugueses do tempo em duas metades: uma de Cristãos-Novos à espera do Messias e, a restante, a aguardar D. Sebastião!» (p. 240)

O segundo capítulo intitula-se "O Anti-Sebastianismo e o Neo-Sebastianismo". Os jesuítas, muito ligados a D. Sebastião, alimentaram longamente a esperança do seu regresso e trabalharam pelo fim da dominação castelhana. Vejam-se os escritos sebastianistas do Padre António Vieira. As invasões francesas são uma ocasião para o regresso do Sebastianismo, que é combatido pelo Padre José Agostinho de Macedo. «Atingida a Restauração, verificou-se que o Reino restabelecido já não era o mesmo e que, embora livre, Portugal continuava decadente. Daí, a necessidade do Desejado, tanto mais que o Encoberto, ainda não era chegado (p. 245).  Manuel Bento de Sousa formula juízos altamente críticos sobre o Rei, que considerava degenerado, e realça perplexo em O Doutor Minerva: "É significativo isto, e prova que nas consciências da multidão não foi elle um culpado". Também António Sérgio estranha a irradiação que o Sebastianismo teve no povo português. «Anatemizando esse movimento, que galvanizou múltiplas gerações ao longo dos séculos, António Sérgio distingue do Sebastianismo o bandarrismo de 1640, e realça a semelhança "social-mental" entre o Português e o Judeu, como fundamento de reprodução entre nós do messianismo israelita.» (p. 246) «Ao espírito profundamente racionalista de Sérgio não poderia de modo algum satisfazê-lo a interpretação de um Oliveira Martins, que via no Sebastianismo "uma manifestação do génio natural íntimo da raça" e em que "o elemento primitivamente dominante nas populações é, em Portugal, o Celta". De igual forma não lhe dava maior satisfação a perspectiva de um Teófilo Braga: "O Sebastianismo era o carácter étnico do povo português, ramo da raça ligúrica, sempre animado da eterna esperança, e que irmana D. Sebastião com o rei Artur".» (p. 246)

«Também já antes Sampaio Bruno criticara a teoria histórica de Oliveira Martins, "que pretendeu, paradoxalmente, erigir o sebastianismo à altura da idiosyncrasia moral da gente portuguesa, quando, depois da épocha naturalmente compatível com a possibilidade da humana existência do rei D.  Sebastião, dentro dos limites normais da media da vitalidade, o sebastianismo foi sempre aberrante maluquice, peculiar de escassa data de alienados pacíficos, como taes julgados pelos seus contemporaneos e por seus conterraneos como taes tidos."» (p. 247)

Para Carlos Malheiro Dias o Rei foi «"uma reincarnação do Portugal do século XV; o seu misticismo, a sua bravura, a sua pureza reincarnadas." E contestando a crítica de Sérgio afirma: "De um lado está o sr. António Sérgio com o Racionalismo - e do outro a Pátria com D. Sebastião." Mais acrescenta: "O Sebastianismo é a própria nação repudiando as conclusões do Racionalismo."» (p. 248)

O autor evoca a presença de um neo-Sebastianismo na obra de Oliveira Martins (Camões, Nun'Álvares, Os Filhos de D. João I, História de Portugal, Portugal Contemporâneo, Civilização Ibérica) e afirma que a melhor Poesia contemporânea exprime um neo-Sebastianismo. Refere também a Mensagem, de Fernando Pessoa e alude à obra de António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Afonso Lopes Vieira, Guerra Junqueiro, Jaime Cortesão, António Sardinha, José Régio, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Almeida Garrett, Tomás Ribeiro Colaço, Metzner Leone.

E menciona também os pensadores e ensaístas como Fidelino de Figueiredo, António José Saraiva, João de Castro Osório, Silva Gaio, Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, José Marinho, Álvaro ribeiro e Agostinho da Silva.

No Brasil, salienta Euclides da Cunha, Lins do Rego e Odorico Tavares; em Espanha, Miguel de Unamuno e Tomás Garcia Figueras, em França, Raymond Cantel e Jean Subirats; na Inglaterra, Mary Elisabeth Brooks. 

«A partir de Oliveira Martins, o caudal sebástico toma forma de fonte de inspiração da Literatura nacional contemporânea, com carácter de permanência tal como nos garante passar a viver, sob forma literária e, até, culturológica, o que até aí estava subjacente na História.» (p. 258)


sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

D. SEBASTIÃO E O MIRAMOLIM

O escritor Aquilino Ribeiro publicou em 1936 o romance Aventura Maravilhosa de D. Sebastião Rei de Portugal depois da Batalha com o Miramolim, que foi reeditado pela Bertrand em 1975, na edição das suas Obras Completas.

Trata-se de um texto em língua vernácula, comum às obras do autor, que tem normalmente de ler-se com um dicionário ao lado, já que Aquilino utiliza amiúde palavras que há muito saíram, ou até nunca estiveram no vocabulário habitual.

Diga-se que o termo Miramolim é decorrente da expressão árabe Amir al-Muminim, que significa comandante (príncipe) dos crentes, título ainda hoje usado pelo rei de Marrocos.

Da prosa opulenta do grande Aquilino não poderemos reproduzir senão pálida imagem, salvo as breves transcrições de algumas passagens.

Começa o livro por nos relatar, com abundância de pormenores, a batalha de Alcácer-Quibir, com base nos documentos históricos conhecidos, até ao momento em que D. Sebastião, perdida a batalha, foge pra Arzila, onde se refugia, até embarcar para o Algarve, ficando então secretamente instalado num convento no cabo de S. Vicente. Aqui, começa a ficção romanesca.

Na sua fuga e na estada oculta na cela monástica D. Sebastião é acompanhado por Frei Salvador da Torre, que se lhe torna uma espécie de "pai" e protector. Numa viagem no Mediterrâneo, acompanhado do frade, o barco em que viajam é acometido pelos corsários, sendo ambos feitos cativos e enviados para Argel, onde decorre parte da acção subsequente. São arrematados por Morato Arrais, general das galés e italiano renegado, que está ao serviço da Sublime Porta, e cuja filha fora casada com o Abdel-Malik, o Maluco das Crónicas, cujo exército vencera os portugueses em Alcácer-Quibir. A rapariga, Bianca de seu nome, e que permanece cristã, interessa-se pelos cativos, especialmente por D. Sebastião, mas este, com a sua habitual misoginia, não corresponde às manifestações da jovem. Morato Arrais desconfia que o prisioneiro mais novo tem aspecto de ser pessoa importante, e susceptível de avultado resgate, mas nem o Rei nem o frade abrem a boca a tal respeito. Bianca, que  também pressente algo de extraordinário, ajuda-os a fugir.

Numa nova viagem, e após um naufrágio, vão parar ao Monte Athos, onde os monges ortodoxos os recolhem. Estas viagens constituem para D. Sebastião um itinerário de expiação dos seus pecados de ambição e vaidade por ter provocado com a malfadada expedição a África a morte de milhares de portugueses e o prejuízo da nação. Nos delírios que o acometem enquanto dorme, o Rei acaba por revelar um segredo, o de ter estado sentimentalmente interessado em algumas damas, o que para ele, absolutamente casto, se afigura ter sido um pecado. [Os nomes das donzelas citados por Aquilino são referidos por alguns historiadores, mas não consta que tivesse havido o mínimo interesse do Rei por elas, mas, realmente, delas pelo rei. D. Sebastião, por razões que nos ultrapassam, tinha mesmo repugnância pelas mulheres]. Entretanto o convento do Monte Athos é assaltado por uma expedição chefiada por um enviado do Morato Arrais, que tivera conhecimento de que um dos cativos evadidos com a ajuda de sua sobrinha era o antigo rei de Portugal. Os corsários são derrotados pelos monges, que têm estatuto especial conferido pelo califa de Constantinopla, mas um judeu amigo de Arrais regressa ao convento e informa de que não pretendia realizar um assalto mas tão só obter a restituição dos fugitivos. O higómeno do mosteiro fica então a saber a verdadeira identidade dos seus hóspedes e facilita-lhes a fuga para Salónica antes que o judeu volte a exigir a sua entrega.

O último capítulo é o melhor do livro. A acção decorre no Escurial. Filipe II, numa cela, acompanhado de médicos e criados, encontra-se às portas da morte. «Aspirou o fedor que aspirava a cloaca rota do seu corpo; experimentou o contacto do esterquilínio, suor de tísico, fezes, humores, piolhos e vermes em miríade, e caiu em si, na vera noção de quem era: Filipe II, rei de Castela e Aragão; rei de Portugal, de Nápoles e da Sicília, soberano dos Países Baixos; duque de Milão; senhor do Franco Condado; imperador do Novo Mundo...» (p. 242). 

Está a apodrecer lentamente. Cristóvão de Moura aparece à porta com uma pasta debaixo do braço. O rei manda-o entrar. O valido entrega-lhe os papéis para despacho, que Filipe, com a mão cadavérica, assina a muito custo. Antes de se retirar, diz-lhe que um homem de meia idade, português, ronda há dias o Escurial e pretende ser recebido. O rei não tem visitas mas insiste em receber a estranha personagem. 

Entretanto, passa em revista a sua vida, o sogro (D. João III «um perfeito imbecil coroado, um papa-açorda que apenas se achava bem sentado na cadeira a ouvir as loas dos bobos. Devoto, sim, mas com as rezas atufadas com feijão e orelha de cerdo.» p. 248), o sobrinho (D. Sebastião «O meu neto não pensara noutra coisa senão em meter lança em África. Abençoada loucura que lhe valera a ele, já senhor de tantas terras, a herança do reino vizinho, como parente varão mais chegado. Vinha escrito de longa data. » pp. 248-9), as Américas, os Países Baixos, a Sicília, o Norte de África, Lisboa, de que gostaria de ter feito a capital dos seus reinos. 

Cristóvão de Moura, de mansinho, introduz o estrangeiro. O rei pergunta-lhe: "Que pretendeis?". Este observa que o monarca já não o reconhece, pois vinte anos já são passados sobre Nossa Senhora de Guadalupe. 

«Filipe teve a impressão de que um fantasma se erguia ante ele, mas recusou-se a crer. E em voz sumida, molhada desta feita de rancor, tanto mais que o esforço que fora obrigado a fazer lhe açulara as infernais pontadas, pronunciou: - Dizei depressa ao que vindes; estão-me proibidas as visitas... Mas o intruso pespegara-se diante, fisionomia aberta como se mostrasse cédula pessoal, e hesitava dizer o que supunha estampado à flor dos olhos. E Filipe impacientou-se: - Hombre!... - Sou o sobrinho de Vossa Majestade... D. Sebastião. Posto tivesse aquele nome em mente, uma revelação daquelas aturdiu-o.» (p. 255)

Então, D. Sebastião conta ao rei a sua história: Alcácer-Quibir, Arzila, Cabo de São Vicente, Argel, o Monte Athos, o Danúbio, a Flandres, Constantinopla, a Pérsia, a Abissínia, a Terra Santa. 

E Filipe pergunta: "Que propósitos trazem Vossa Majestade?" E Sebastião responde: "Que Vossa Majestade me restitua o reino." 

«Com muito gosto - respondeu em voz serena, aquela voz lenta e medida que traduzia o império que exercia sobre si, depois de breve pausa, uma destas pausas de princípio do mundo, cheia de germinações monstruosas. - Estou nos umbrais da vida eterna e a coroa de rei cai-me da cabeça. Ah, se não fosse ousadia incomportável com a minha pequenez, sabeis com que coroa eu me queria ver coroado? A coroa de espinhos que picou a sagrada fronte de Nosso Senhor Jesus Cristo até as meninges. Vós vindes pela outra...!? - Deus o quer - murmurou D. Sebastião.» (p. 259)

Filipe manifesta então a D. Sebastião o seu arrependimento por ter pleiteado a sucessão de Portugal. Conta todas as decepções que teve. Fala do filho da Pelicana [o Prior do Crato], que fugiu depois da batalha de Alcântara e passou a vida a fugir. Que lhe quis vender os direitos ao trono. Que prestou cerviz a todos os fretes que França e Inglaterra quiseram. Que presenteou com brilhantes e gemas os mignons de Henrique IV quando o foram esperar a Mantes. [Aqui, Aquilino comete um lapso: o rei de França conhecido por estar rodeado de mignons foi Henrique III]. Filipe continua a sua narração, falando de Portugal e pesando como ourives as palavras: "- A nação está depauperada. Abateram-se sobre ela os três flagelos, peste, fome e guerra, e todas as suas fontes de energia e actividade secaram. Daí lavo as minhas mãos. Não cobrei mais um ceitil de impostos, não buli numa lei, não me sobrepus a nenhum uso estabelecido. Portugal está Portugal e Vossa Majestade há-de ter a impressão de que veio de lá ontem. Quando muito, encontrará a casa lusitana mais velha, mais triste... e arruinada. Mas tem muitos anos diante para a reerguer. E se volta mais assente, quebrado de ardores, se meteu a mão na consciência e apartou o grão do joio, bueno! Dou-lhe um conselho: deixe lá a mourisma para sempre! Foi a mourisma a causa da sua perda. Quantas vezes lhe disse: a África é um vespeiro! A expedição estava de antemão votada ao mais estrondoso insucesso. Tanto Vossa Majestade como os seus lugares-tenentes engenharam-se em montar uma empresa de derrota. Nisso não lhes faltou génio. Até Francisco Aldana errou quando lhe inculcou como melhor táctica a que consistia em opor tropas firmes, infantaria de arcabuz e cosselete, apoiada em mangas de cavalos à estardiota, à aluvião berbere de corcéis, fugazes e volteiros como o vento. Quem tinha razão eram os adaís de Tânger quando vos diziam: "Senhor, para os cavalicoques árabes não há como os nossos ginetes de Espanha; têm menos pé, mas sobeja-lhes a fúria e o ímpeto. Dez contra cem e não há que temer." Vossa Majestade era moço, deu ouvidos à novidade. Já lá vai, mas sempre lhe digo que para vencer um exército organizado em tais moldes bastavam a areia e o sol de África.» (pp. 263-4)

Filipe tem novo acesso de tosse e faz sinal para se retirarem os médicos, o confessor e os lacaios. D. Sebastião, perplexo, sai também.

A Cristóvão de Moura, que estava à sua beira, e referindo-se a D. Sebastião, Filipe diz: "Sua Majestade é meu hóspede. Não tem que dar mais um passo fora do Escurial..."

«E fitou o valido de olhos nos olhos, como só muito de raro em raro fazia, com fixidez tão imperativa que, acima da sua humanidade, se sentia erguer uma razão mais alta - aquela razão de Estado a que foram imolados o príncipe de Orange, Escovedo, o senhor de Montigny, o infante D. Carlos, dizem que a rainha Isabel de Valois e o Papa Gregório XIII, forte e cega por sua origem divina, situada para lá do bem e do mal. Recebeu Cristóvão de Moura, sem pestanejar, o mandato sinistro, limitando-se a responder: - Serão executadas as ordens de Vossa Majestade. E Filipe II, rei de Castela e de Portugal, das Duas Sicílias, soberano dos Países Baixos, de Tunes e de Orão, imperador daquém e dalém-mar, que já mandara fazer o caixão em que havia de ser enterrado, cerrou as pálpebras e, pela primeira vez há muitos dias, adormeceu placidamente.» (pp. 265-6)

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Para chegar ao último capitulo vale a pena ler o livro inteiro!