Em 1978, quarto centenário da batalha de Alcácer-Quibir, Francisco de Sales Loureiro publicou D. Sebastião - Antes e Depois de Alcácer-Quibir, referindo, em Advertência, que indicara previamente este título à editora, sendo surpreendido pela publicação, precisamente antes desta edição, de um livro de António Belard da Fonseca com idêntica designação. Contudo, resolvera manter o título, uma vez que, na sua opinião, ele convinha perfeitamente à urdidura da obra.
O livro começa por abordar o ambiente de crise e tensões que se viviam no século XVI, onde se defrontavam dois impérios: o Turco, a Oriente, e o de Carlos Quinto, a Ocidente, face ao império português. que se estendia à Índia. Salienta que as riquezas provenientes da nossa expansão não provocaram uma melhoria na situação económica do país pois foram gastas em bens supérfluos, em luxos, sem benefício para o povo.
O confronto entre os dois "partidos" chefiados por D. Catarina de Áustria e pelo Cardeal-Infante D. Henrique contribuiu para um mal-estar da sociedade portuguesa. D. Catarina favorecia, como é óbvio, os interesses da Casa de Áustria e de seu irmão Carlos Quinto. O facto de promover o casamento dos seus dois filhos que chegaram à idade núbil, D. Maria Manuela e D. João Manuel, com os dois filhos do Imperador, Filipe II e D. Joana, causou profundo descontentamento no povo, e mesmo na nobreza, que receava a perda da independência em proveito de Espanha, como aliás viria a acontecer por morte de D. Sebastião e de D. Henrique.
Além da política castelhanófila de D. Catarina, o autor enfatiza os seus gastos sumptuários, os seus luxos e mesmo a sua influência no domínio religioso, rodeando-se de padres espanhóis como frei Luís de Granada, que foi seu confessor e de Frei Luís de Montoya, que escolheu para confessor de D. Sebastião. Mas foi a influência da Companhia de Jesus, através dos irmãos padres Luís e Martim Gonçalves da Câmara, que teve uma preponderante importância na educação e reinado de D. Sebastião.
Ainda antes de abordar o reinado do monarca, e recorrendo a diversas fontes, o autor traça um quadro da situação económica e financeira do país na época imediatamente anterior ao início do reinado de D. Sebastião.
A Segunda Parte do livro trata de "O Monarca e as suas Circunstâncias". Seguindo de perto Queiroz Velloso, Alfonso Danvila (ambos objecto de posts anteriores) e Lúcio de Azevedo, entre outros, Sales Loureiro retrata na essência o que sobre D. Sebastião já conhecemos dessas obras. Ainda que várias das suas apreciações nos pareçam um pouco desajustadas das interpretações desses autores.
Tendo D. João III instalado a Companhia de Jesus em Portugal, surgiram desde o início duas opiniões acerca da permanência dos jesuítas no país: os que entendiam que eles se deviam ocupar especialmente do Ultramar, para a dilatação da Fé, e que não eram muito necessários no Continente (opinião do cardeal-infante D. Henrique) e os que pensavam que seria melhor que eles ficassem no Reino (opinião de seu irmão o infante D. Luís). Apesar dessa opinião, o cardeal favoreceu largamente a Companhia, enquanto arcebispo e inquisidor-geral, e mais tarde ele mesmo como rei, na senda de seu irmão D. João III. Também D. Sebastião foi pródigo em relação aos jesuítas. É claro que as avultadas benesses à Companhia provocaram o ressentimento das antigas ordens religiosas, com larga tradição de serviços prestados.
A propósito da "doença" de D. Sebastião, que os principais biógrafos consideram tratar-se de espermatorreia, Sales Loureiro refere (p. 92) a hipótese de uma precoce experiência sexual, que lhe poderia ter proporcionado uma doença blenorrágica, aquando da sua primeira jornada ao Alentejo. É a primeira vez que lemos esta referência. O autor contesta que D. Sebastião fosse misógino (p. 94) o que está em contradição com as mais abalizadas opiniões a respeito do comportamento do monarca. Afirma igualmente (p. 95) que D. Sebastião não era "autocrático, despótico, atribiliário", ideia muito discutível face a tudo o que dele conhecemos. Além disso, a palavra correcta é "atrabiliário" e não "atribiliário", erro do autor ou lapso de revisão do texto.
Sales Loureiro encontra também justificação para as conquistas no Norte de África, não só para dilatação do Império e expansão da Cristandade mas devido ao facto de o Mouro ser o inimigo perpétuo (p. 116) e ameaçar poderosamente a Península Ibérica. Já vimos, em respeitáveis obras que mencionámos em posts anteriores, que esta visão não corresponde à verdade. O Turco estava bastante debilitado depois da derrota de Lepanto para prestar especial auxílio a Marrocos, e o xerife manifestara disposição para ceder a D. Sebastião as praças que ele desejasse (Larache por exemplo) a fim de se evitar a guerra.
Como o autor comete muitas imprecisões, dispensei-me de ler a Terceira Parte (A Jornada ao Alentejo e Algarve e a Primeira Jornada de África), aliás já descritas em comentários a outros livros.
Na Quarta Parte ("Onde quase tudo se acaba") começa o autor por dizer: «Ao contrário do que Queiroz Velloso supõe, contestando Rebelo da Silva e Pereira Baião, foi de facto na primeira jornada de D. Sebastião ao Alentejo e ao Algarve, que D. Álvaro de Castro realizou a primeira ofensiva contra os Gonçalves da Câmara, que acusa de terem arruinado o reino, "com as leis sobre câmbios e moedas".» (p. 165) E explica as razões.
Sales Loureiro relata depois o encontro de D. Sebastião em Guadalupe com Filipe II, os preparativos para a expedição a África e a batalha de Alcácer-Quibir, assuntos que já foram objecto de outros posts. O autor sustenta que a jornada de D. Sebastião a Marrocos era essencial não só para protecção das fortalezas (agora poucas) que lá tínhamos mas também para a defesa das nossas costas e para travar o expansionismo turco até ao Atlântico. Como é provado por outras análises esta argumentação é infundada. Talvez ela estivesse na cabeça de D. Sebastião ou o rei português invocou-a apenas para satisfazer o seu desejo de combater pessoalmente o Mouro, o que nos custou muito caro, e mesmo a independência nacional.
Escreve também o autor que Filipe II «estragara dois matrimónios - o de França e o da Alemanha» a D. Sebastião (p. 180). Isto é absolutamente inexacto. Tivemos ocasião de observar, a propósito de referências a livros anteriores, que foi o próprio D. Sebastião quem provocou a não concretização desses matrimónios. O rei afastou sempre, liminarmente, qualquer ideia de casamento e só aceitou pedir a mão da filha mais velha de seu tio com a intenção de que este lhe concedesse o apoio para a expedição a África. Tivesse tudo corrido bem e certamente arranjaria um pretexto para se retractar mais tarde.
Também Sales Loureiro considera que ao desincentivar D. Sebastião da ida a África Filipe II o fez com o propósito oculto de que o sobrinho, contrariando-o, se metesse África dentro, criando-lhe as condições de entrar em Portugal. Esta hipótese é aliciante, tendo em atenção o carácter do monarca espanhol, mas os testemunhos da época vão no sentido oposto. Filipe e o Duque de Alba procuraram convencer, sem sucesso, D. Sebastião da temeridade da empresa. Sem prejuízo de que Filipe II terá tido sempre em mente a união das duas coroas, mas através de casamentos.
Sobre a batalha de Alcácer-Quibir, descreve-a Sales Loureiro sensivelmente nos mesmos termos que o fez Queiroz Velloso.
A Quinta Parte intitula-se "Depois de Alcácer, o Sebastianismo". O primeiro capítulo trata de "A Fenomenologia e Formas do Sebastianismo". O autor transcreve da Introdução a O Império Colonial Português, de C.R. Boxer: «Por que razão esta nação pequena, bastante pobre e culturalmente atrasada, situada na costa sudoeste da Europa, foi tão dramaticamente bem sucedida nesse grande século de empreendimentos que começou por volta de 1440? E por que razão se tornou este êxito uma pálida sombra de si mesmo no curto espaço de cinquenta anos?» (p. 222) E considera que os ingredientes principais da força propulsora da Expansão, tanto de portugueses como de espanhóis, foram a cobiça e a devoção, acrescentando, segundo Boxer, a propósito de Portugal, que «o seu nome está indelevelmente escrito na História mundial: um feito extraordinário para um país tão pequeno e pobre.» (p. 223)
O autor faz referência às Trovas do Bandarra, compostas 14 anos antes da vinda ao mundo do Desejado, as quais contêm reminiscências bíblicas, que autorizavam as interpretações dos Cristãos-Novos, implacavelmente perseguidos, desde fins do século XV, - interpretações essas que previam a chegada próxima do Messias. (p. 232) Gonçalo Anes serviu-se também das Coplas de Frei Pedro de Frias, que dão expressão literária às profecias de Santo Isidoro.
«Assim nasce, convertido em poesia, o movimento de exaltação patriótica, denominado Sebastianismo, que, em forma de crença messiânica, já andava latente no subconsciente popular, irradiando em lendas, que fizeram o Rei escondido e disfarçado na armada de D. Diogo de Sousa, ou errando solitário pela planura sem fim dos campos de Alcácer. Ou mesmo preso a uma Ilha de Bruma, da qual regressará assistido do rei Artur de Inglaterra e das nove ocultas tribos de Israel.» (p. 233)
«Não admira, pois, que elementos nacionais ou estranhos, seduzidos pelo papel que poderiam representar ou pelo aproveitamento material que essa representação lhes pudesse, porventura conferir, pretendessem encarnar a figura do Desejado. Assim surge nas múltiplas mistificações de um rei de Penamacor - o Sebastianismo sob a forma cortesã; de um rei da Ericeira - o Sebastianismo activo de Mateus Álvares, desenvolvido em expressão violenta de combate; de um pasteleiro de Madrigal - o Sebastianismo romanesco de inspiração de Fr. Miguel dos Santos; de um Marco Túlio - a aglutinação do Sebastianismo lusíada no estrangeiro.» (pp. 234-5)
«Dentro ainda dessa corrente, uma vez identificado o Sebastianismo com o partido nacional da independência, nas proximidades da Restauração e na falta do Desejado, importava, então e apenas, operar a transferência do Encoberto para uma personagem que, pela sua legitimidade, pudesse representar, no concreto, o que essa figura lendária e misteriosa simbolizava no abstracto. Assim, o messianismo sebastianista marcou encontro com D. João, o Duque de Bragança, legítimo sucessor de D. Catarina, - duquesa de Bragança - pretendente mais válida na crise da sucessão.» (p. 236)
«Mas já D. Francisco Manuel de Melo, por outro lado, nas suas Epanáforas, assinala que os Jesuítas fomentavam a crença messiânica, tornando-se a Companhia, como afirma J. Lúcio de Azevedo, "foco activo de sebastianismo".» (p. 239)
«Não restam dúvidas de que o Sebastianismo se reacende extraordinariamente nos reinados de D. Pedro II e de D. João V, favorecido pelo descontentamento popular. Caracterizando este período, Diogo Barbosa Machado, nas suas Memórias, e o Padre Pereira Baião, no seu Portugal Cuidadoso e Lastimado, patenteiam a extraordinária irradiação do Sebastianismo e o respeito que o movimento lhes merece, aparecendo simultaneamente a opinião de Lord Tirawley, que divide os Portugueses do tempo em duas metades: uma de Cristãos-Novos à espera do Messias e, a restante, a aguardar D. Sebastião!» (p. 240)
O segundo capítulo intitula-se "O Anti-Sebastianismo e o Neo-Sebastianismo". Os jesuítas, muito ligados a D. Sebastião, alimentaram longamente a esperança do seu regresso e trabalharam pelo fim da dominação castelhana. Vejam-se os escritos sebastianistas do Padre António Vieira. As invasões francesas são uma ocasião para o regresso do Sebastianismo, que é combatido pelo Padre José Agostinho de Macedo. «Atingida a Restauração, verificou-se que o Reino restabelecido já não era o mesmo e que, embora livre, Portugal continuava decadente. Daí, a necessidade do Desejado, tanto mais que o Encoberto, ainda não era chegado (p. 245). Manuel Bento de Sousa formula juízos altamente críticos sobre o Rei, que considerava degenerado, e realça perplexo em O Doutor Minerva: "É significativo isto, e prova que nas consciências da multidão não foi elle um culpado". Também António Sérgio estranha a irradiação que o Sebastianismo teve no povo português. «Anatemizando esse movimento, que galvanizou múltiplas gerações ao longo dos séculos, António Sérgio distingue do Sebastianismo o bandarrismo de 1640, e realça a semelhança "social-mental" entre o Português e o Judeu, como fundamento de reprodução entre nós do messianismo israelita.» (p. 246) «Ao espírito profundamente racionalista de Sérgio não poderia de modo algum satisfazê-lo a interpretação de um Oliveira Martins, que via no Sebastianismo "uma manifestação do génio natural íntimo da raça" e em que "o elemento primitivamente dominante nas populações é, em Portugal, o Celta". De igual forma não lhe dava maior satisfação a perspectiva de um Teófilo Braga: "O Sebastianismo era o carácter étnico do povo português, ramo da raça ligúrica, sempre animado da eterna esperança, e que irmana D. Sebastião com o rei Artur".» (p. 246)
«Também já antes Sampaio Bruno criticara a teoria histórica de Oliveira Martins, "que pretendeu, paradoxalmente, erigir o sebastianismo à altura da idiosyncrasia moral da gente portuguesa, quando, depois da épocha naturalmente compatível com a possibilidade da humana existência do rei D. Sebastião, dentro dos limites normais da media da vitalidade, o sebastianismo foi sempre aberrante maluquice, peculiar de escassa data de alienados pacíficos, como taes julgados pelos seus contemporaneos e por seus conterraneos como taes tidos."» (p. 247)
Para Carlos Malheiro Dias o Rei foi «"uma reincarnação do Portugal do século XV; o seu misticismo, a sua bravura, a sua pureza reincarnadas." E contestando a crítica de Sérgio afirma: "De um lado está o sr. António Sérgio com o Racionalismo - e do outro a Pátria com D. Sebastião." Mais acrescenta: "O Sebastianismo é a própria nação repudiando as conclusões do Racionalismo."» (p. 248)
O autor evoca a presença de um neo-Sebastianismo na obra de Oliveira Martins (Camões, Nun'Álvares, Os Filhos de D. João I, História de Portugal, Portugal Contemporâneo, Civilização Ibérica) e afirma que a melhor Poesia contemporânea exprime um neo-Sebastianismo. Refere também a Mensagem, de Fernando Pessoa e alude à obra de António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Afonso Lopes Vieira, Guerra Junqueiro, Jaime Cortesão, António Sardinha, José Régio, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Almeida Garrett, Tomás Ribeiro Colaço, Metzner Leone.
E menciona também os pensadores e ensaístas como Fidelino de Figueiredo, António José Saraiva, João de Castro Osório, Silva Gaio, Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, José Marinho, Álvaro ribeiro e Agostinho da Silva.
No Brasil, salienta Euclides da Cunha, Lins do Rego e Odorico Tavares; em Espanha, Miguel de Unamuno e Tomás Garcia Figueras, em França, Raymond Cantel e Jean Subirats; na Inglaterra, Mary Elisabeth Brooks.
«A partir de Oliveira Martins, o caudal sebástico toma forma de fonte de inspiração da Literatura nacional contemporânea, com carácter de permanência tal como nos garante passar a viver, sob forma literária e, até, culturológica, o que até aí estava subjacente na História.» (p. 258)